Vanessa Beco – Vanessa Cristina de Jesus

Eu fui criança e adolescente nos anos 1980 e concluí minha juventude por volta dos anos 1990, princípio dos anos 2000. No início da adolescência, entre doze, treze, quatorze anos, comecei a participar de grupos de jovens da Igreja Católica perto do Morro das Pedras, no conjunto Santa Maria, que é um bairro próximo. A comunidade aqui sempre foi muito conectada com os moradores de lá, assim, muita coisa acontecia do outro lado da Avenida Raja Gabáglia.

Em determinado momento, eu tive a oportunidade de participar do grupo de jovens da Igreja e foi muito importante pra mim, porque conheci um pessoal bacana, com o qual eu me identificava. Fiz um pouco de teatro nesse grupo de jovens e havia algumas reflexões conectadas com a realidade social. Não eram muitas coisas, mas eu gostava muito. Eu me identificava em especial com uma turma de jovens de idade um pouco maior que a minha. Era um pessoal que, felizmente, tinha ideias de esquerda e comentava algumas coisas que me chamavam a atenção. Havia uma rotina um pouco padrão: a reunião do grupo de jovens, a hora da missa, o pós missa e o momento de conversa dos jovens, quando planejávamos algumas coisas, marcávamos um ensaio. Esse pessoal mais velho realizava eventos e o grupo de jovens sempre se envolvia. Assim, começamos a fazer umas atividades das quais eu gostava de participar.

A situação financeira da minha família era muito precária e muito instável. Eu já tinha experenciado na infância o trabalho doméstico, com idas e vindas. Então, venho de um contexto em que, ainda criança, já trabalhava como doméstica para uma família no Rio de Janeiro. Comecei aqui em BH, com as pessoas para as quais a minha mãe fazia faxina, mas o princípio de fato foi no Rio. A minha mãe tinha meu irmão pequeno e, depois, nasceu a minha irmã e eu dividia as tarefas com ela. Depois de um tempo, voltei a trabalhar como doméstica. Ou seja, a minha situação tinha muitos altos e baixos

Apesar de todas as precariedades, eu tinha essa veia, esse desejo de estudar e de participar de atividades coletivas e criativas. Eram coisas de que eu gostava e que me desafogavam da situação de muita pobreza e miséria que eu vivia, de muita vulnerabilidade. Minha mãe vivenciava muitos altos e baixos com a questão do alcoolismo, em um período estava bem e no outro não. Muitas questões. Mas o fato é que o grupo de jovens me fazia muito bem e havia muita coisa positiva ali. Eles me tratavam bem e eu tinha uma boa relação com todos. Havia eventos, como uma serenata nos sábados à noite, que eram utilizados para arrecadar recursos. Posteriormente, começamos a realizar uns eventos para as crianças, como ruas de lazer, e fazíamos ações para arrecadar o dinheiro para viabilizá-las. Alguém teve a ideia de ir para o sinal da Avenida Raja Gabaglia, que era muito movimentado e frequentado por pessoas de bom poder aquisitivo, que circulavam de carro ali. Fomos para a Raja com Contorno, porque assim poderíamos abranger vários públicos. Fizemos uma faixa em que pedíamos apoio para as crianças do conjunto Santa Maria e adjacências – era a frase que estava na faixa. Dessa forma, quando o sinal fechava, pedíamos as contribuições. Nesses momentos extra, fora da igreja, eu observava muito as conversas da turma mais velha e dos amigos que coordenavam o grupo, e me identificava com muitas coisas que eles falavam. Por conta disso, fui participando cada vez mais, me envolvendo.

Sou da primeira geração que foi liberada para votar aos 16 anos. Lembro de tirar o título e pensar que na eleição seguinte eu já votaria. Era a disputa entre Collor e Lula e eu poderia votar no Lula, senti aquela identificação. Então, acho que o período de participação no grupo de jovens na Igreja foi quando compreendi um pouco as questões relacionadas à participação política. Era uma compreensão nascida daquela prática, construída a partir das nossas ações. Não havia muita elaboração, eu não tinha muita compreensão desse lugar de possibilidade de ser liderança ou qualquer coisa do gênero, nem mesmo tantos planejamentos. Porém, existia essa turma mais velha, que coordenava e que estava ali, com quem eu aprendia e, principalmente, essa participação era um respiro para mim. Acredito que me proporcionou uma experiência importante, foi positivo.

Aquelas pessoas mais velhas falavam e eu compreendia melhor algumas coisas. Outras eu não compreendia, mas eu me identificava com boa parte do que elas diziam. Boa parte delas vivia uma outra realidade, morava do lado de lá da avenida, tinham uma vida mais estruturada. Lembro da referência de uma das amigas, com quem eu ainda tenho um bom contato, a Brígida, que era de uma família daqui do Morro e que se diferenciava muito. Ela era de uma família negra, classe média, dentro do Morro, naquele período. Me recordo que eu observava as casas da região, construções bem precárias, poucas tinham lage. Mas a família dela já tinha uma casa de lage de dois andares. Uma vez, em um daqueles momentos em que fomos na Raja arrecadar recursos para as atividades de rua de lazer com as crianças, eu cheguei um pouco atrasada e a Brígida estava tensa porque um cara passou de carro e fez alguma besteira lá, quase atropelou alguém. Diante disso, ela falou: “Ah, pode deixar que eu anotei a placa dele. Vou dar uma multa pra ele lá na rua tal e outra na rua tal”. Eu fiquei curiosa, pensando em como ela aplicaria aquela multa. Depois, fui me aproximando e descobri que ela, tão jovem, já era servidora pública, trabalhava em um setor ligado ao Detran. O irmão mais velho dela já cursava Direito e ela já estava combinando de fazer Direito também, para trabalhar no escritório dele. Conhecendo as histórias e as pessoas, era sensacional acompanhar aquela família, ter contato com aquele perfil de família negra. 

Acho que eu sempre quis participar de alguma coisa, viajar, participar de grupo de jovens, ir para alguns lugares com as amigas. A primeira vez que eu fui a um show pago com a turma, nos anos 80/90 – era um show do Paralamas do Sucesso, eu adorava rock nacional –, eu estava com essa amiga, a Brígida. Eu tinha alguns amigos que, como ela, experimentavam outras coisas, estavam muito longe da minha realidade. Mas, quando possível, eu experimentava algumas coisas com eles. Como um piquenique no domingo de manhã no parque: fazíamos umas coisinhas gostosas e colocávamos no gramado forrado. Existiam essas coisas. 

Houve uma época em que eu trabalhava em uma dessas casas dos bairros ricos aqui próximos. Um dia em que eu estava em uma casa, uma amiga disse que estava indo na creche comunitária, no Leonina, fazer inscrição para trabalhar lá, e me convidou para acompanhá-la. Fui porque ela era uma amiga que eu conhecia há muito tempo, mas somente ela faria a inscrição. E assim aconteceu: ela fez a inscrição e eu a aguardei concluir. Quando estávamos retornando, subindo o morrão ali da Juthay, encontrei a Brígida. Naquela época, eu não frequentava mais no grupo de jovens, não estava mais tão dentro da Igreja como em outros tempos. Mas a amizade com as pessoas permanecia. Encontrei com essa amiga, a Brígida, e contei que fui com a Luciana fazer inscrição na creche, que a Luciana havia me chamado para fazer inscrição para trabalhar como monitora lá. Ela respondeu “Ah, que legal! Você foi fazer inscrição?” e passou um tempo conversando com a Luciana. Depois desse encontro, a Brígida fez contato comigo, deixou um recado para mim: “Ô, Vanessa! Depois você passa lá na creche que o pessoal vai conversar com você sobre aquela vaga”. Eu fiquei pensando “Gente, uai! Conversar o quê?”, mas fui à creche. Quando cheguei, a coordenadora me entregou uma ficha, me pediu para preencher rapidamente e me perguntou se eu tinha interesse de trabalhar lá. Explicou que a Brígida havia procurado minha ficha, mas essa ficha não existia. A coordenadora disse: “Eu nem sabia que você ia fazer inscrição aqui. Não te conhecia. Mas a Brígida falou que você é a cara da vaga”.

O que aconteceu foi o seguinte: àquela altura, a Brígida já estudava Direto e ajudava a irmã, que era assistente social na creche, a resolver questões burocráticas. Ela havia ficado super animada com a notícia da minha inscrição quando conversamos rapidamente no encontro no morrão, mas em nenhum momento eu tinha dito que me inscrevi. Ela chegou lá perguntando, pediu minha ficha e não tinha ficha. Eu estava lá no meu lugar de trabalhadora doméstica. Eu não tinha pensando naquela possibilidade. Assim, ela mandou o recado para mim, para eu ir lá e fazer minha ficha para trabalhar na creche. Ela aguçou isso em mim. Foi muito legal, porque deu uma sacudida na minha autoestima, me apontou uma possibilidade que eu não considerava. 

Então, fui selecionada e trabalhei na creche no princípio dos anos 1990, época em que o Patrus batalhava para se tornar prefeito, para fazer parte da história. Ainda era um tempo em que a educação infantil era totalmente negligenciada pelo poder público, o que só viria a melhorar um tempo depois, com as gestões do PT, quando os convênios entre município e creches ganharam mais investimento e foram melhor institucionalizados, possibilitando certas garantias e condições de trabalho. Mas, naquele período em que atuei, tudo era bem precário. Recebíamos, mas o convênio com a prefeitura garantia apenas parte do pagamento das pessoas. As creches ainda viviam de doações, parcerias e voluntariado.

De toda forma, foi muito bom trabalhar na creche. Uma das coisas boas eram as oportunidades formativas: eram oferecidos vários cursinhos para a equipe. Muitos que trabalhavam lá não tinha muita escolaridade, a maioria nem tinha concluído o ensino médio. Mas a Associação de Luta Pró-creche dava cursos, dos quais ainda tenho guardados os certificados – cursos de férias na UFMG, curso não sei onde, curso de não sei mais o que. Eles me possibilitaram algumas compreensões – por exemplo, sobre a forma de lidar com as crianças por faixa etária. Era bem interessante a possibilidade de aplicar os conhecimentos na minha prática profissional ali. 

No final da minha adolescência, por volta dos dezoito anos, eu engravidei da Pabline e a vida ficou um pouco puxada. Eu ainda morava na casa da minha mãe, com toda a precariedade, e o relacionamento não ia bem. Depois, eu tive uma segunda gravidez, que fez a situação apertar de tal forma que eu pensava muito em alguma maneira de sair dali. Avaliei e reavaliei como eu conseguiria meu lugar pra morar. Assim, optei por voltar a trabalhar como diarista, porque conseguiria um ganho melhor. Fui assim, cheia de conflito, mas fui. Fui doméstica por um bom tempo, enquanto as crianças iam crescendo. Em determinado momento, resolvi voltar para a escola. Pedi ajuda da família para cuidar das crianças à noite, enquanto eu ia estudar. 

Essa decisão ocorreu depois de uma época em que juntei um dinheiro, com a expectativa de adquirir a minha casa própria. Comprei uma área de um moço que estava vendendo um pedaço do quintal dele, pois ele precisava de dinheiro para acabar de construir a casa e, para isso, vendeu um pedaço do próprio terreiro. Em uma das casas em que trabalhei, recebi 13º e entreguei tudo na mão dele. Porém, eu não conseguia construir, e ficava num grande dilema. Mas eu não queria ficar estagnada, então decidi voltar a estudar.

Em paralelo, trabalhava como diarista durante a semana e pegava uns trabalhos na construção civil nos fins de semana. As empreiteiras que construíam aqui no morro contratavam adolescentes, mulheres e alguns homens para fazer uma faxina pesada quando acaba a obra – faxina em que você precisa arrancar cimento e cola que sobram nesses prédios. Lembro que trabalhávamos muito com tiner, ácido muriático… e que o acesso ao prédio era muito precário. Trabalhei no 17º andar num prédio na Savassi que não tinha elevador. Era necessário subir pelas escadas todos aqueles andares, todos os dias, para limpar lá em cima. Limpava as janelas quase pendurada.

Assim, eu ia levando, trabalhando com faxina em casa e nas obras. No colégio, todo dia, quando dava o horário do recreio, os colegas me acordavam para eu copiar o dever, os exercícios das duas primeiras aulas. O horário era dividido em 4 ou 5 aulas por dia: tínhamos três aulas, que eram seguidas do recreio. Mas, geralmente quando chegávamos na terceira aula, eu já estava dormindo. Meus colegas me acordavam, eu copiava e depois continuava. Às vezes dava para merendar. Um dia, um colega me acordou dizendo que as duas últimas aulas não aconteceriam porque no horário ocorreria uma palestra. Eu adorava palestra, porque eu tinha sido picada pela veia do conhecimento, da conversa, do diálogo, da informação. Me interessava. Então quis ficar, falei que ia ver a palestra e depois subia (subíamos um morrão) para ir embora para casa. Fui para a palestra e era o polêmico Hamilton Borges Walê, que anos depois criou a campanha Reaja ou Será Mort@.

O Hamilton viveu em BH dos anos 1990 até o início dos anos 2000. Ele tem uma filha mineira e nessa época estava casado com a Mari, aqui em BH. Naquele período, ele realizou, junto com uma turma mais jovem, muita coisa aqui na cidade. Eu falo que o Hamilton foi lá no colégio dar a palestra pra mim. Ele estava desenvolvendo um projeto no aglomerado Santa Lúcia, que era próximo do colégio. Muitos aqui do Morro estudavam no colégio, pois não havia escola de ensino médio aqui na região, portanto precisávamos ir para o Coração de Jesus, para o Santo Antônio, essas escolas do lado de lá para poder estudar. Eu estudava no Sagrado Coração de Jesus, próximo do Santa Lúcia.

O Hamilton, vem de uma experiência de jovem de favela na Bahia, que passou inclusive pelo sistema prisional: ele foi um jovem em conflito com a lei. Uma pessoa ligada ao movimento negro era carcereira do lugar em que ele ficou e o MNU (Movimento Negro Unificado) tinha um trabalho com os jovens de oferecer curso de boxe, de luta, de cozinheiro, essas coisas. Foi assim que ele se envolveu com o movimento.

Aqui em BH, o trabalho dele enquanto articulador do MNU era com a juventude de favela e, em alguns momentos, contava com alguma parceria dentro dos presídios – nós até fomos em alguns presídios com ele, nos finais de semana, para desenvolver algumas atividades. Mas, voltando à palestra, o Hamilton foi falar na minha escola e eu me identifiquei com o que ele dizia. Tudo fazia sentido para mim. No final, ele convidou o pessoal que estava na palestra para ir conhecer o Projeto Morro Arte, que ele desenvolvia com a juventude do Santa Lúcia. 

Eu trabalhava com faxina para essas empreiteiras e, ao mesmo tempo, tinha conseguido um curso do SENAI. Quando avisava que precisava sair para ir ao curso, deixava a colega nervosa. Ela me falava que eu estava estudando para ser faxineira. O mesmo acontecia quando eu falava que iria para uma palestra ou outra atividade. Não foi diferente no dia em que avisei que iria numa atividade do projeto do Hamilton. Mesmo assim eu fui, apesar da chateação. 

Quando cheguei no centro catequético da Barragem, onde funcionava o Morro Arte, conheci umas meninas que faziam parte do projeto, que são umas figuras super bacanas. Naquela época, elas já eram uma atração na comunidade, porque, no final dos anos 1990, já estavam concluindo faculdade, numa comunidade de favela. Elas foram simpáticas comigo, me acolheram bem, me trataram bem. E ali eu me encontrei. Elas são minhas amigas há mais de duas décadas. Naquele dia, eu pensei: “gente, mas não chegou ninguém no colégio até agora”… E, no fim das contas, elas apresentaram o projeto só para mim. As energias vibram para as coisas acontecerem daquela forma, e foi um marco na minha vida.

No ano seguinte, eu comecei a participar das atividades do projeto com os jovens. Levava o Juninho e a Pabline comigo. Por esse motivo, muitas dessas turmas conhecem os meninos desde pequenos. Comecei a participar de um monte de coisa e, ao mesmo tempo, trabalhava como doméstica. Na mesma época, começou em BH o piloto do “Agente Jovem”, que era um programa do governo federal que oferecia atividades formativas a adolescentes. Depois, o programa se tornou o Pró-Jovem. O Agente Jovem tinha três núcleos e um deles era no Santa Lúcia, no CAC (Centro de Apoio Comunitário) Parque das Águas. Os outros núcleos eram no Taquaril e Alto Vera Cruz, e depois o programa foi ampliado para diversos outros lugares. Àquela altura, eu já estava desenvolvendo várias coisas com a juventude do Santa Lúcia e com a juventude daqui do Morro.

Quando o projeto piloto do Agente Jovem começou em BH, como as meninas estavam muito ativas no Santa Lúcia, elas foram procuradas pelo poder público para indicar os educadores. E elas não tiveram dúvida. Falaram: “uma das nossas indicações é a Vanessa. Ela não mora aqui, mas ela está aqui constantemente conosco fazendo as coisas”. Foi assim o meu retorno ao trabalho como educadora. Antes, eu estava trabalhando numa casa no Gutierrez, e já estava muito cansada daquilo. O nível de desgaste varia muito no trabalho como empregada doméstica. Em algumas casas, é mais tranquilo; em outras, a exploração é muito grande e isso gera um estresse enorme. A indicação aconteceu justamente quando eu estava num trabalho bem ruim.

Então, foi muito bom quando elas me indicaram, experimentei um sentimento de dignidade. A prefeitura conseguiu uma parceria, incialmente com a ASPROM (Associação Profissionalizante do Menor), para o registro dos educadores contratados. Isso conferiu um reconhecimento maior, pois a ASSPRON é uma instituição estruturada e eles assinaram a nossa carteira. 

Os outros educadores eram o Nil, da Casa do Beco, e a Suzana, que fazia teatro em creches da comunidade. O salário que a ASSPROM nos pagava era baixo, mas o trabalho era maravilhoso. Não era o dia inteiro e nem era todos os dias. Havia os encontros de planejamento com os jovens três vezes na semana e um dia de planejamento das atividades semanais, além de outro dia de formação. Era dividido assim. A equipe estava ligada à secretaria da prefeitura. Era muito bacana.

Atuar no Agente Jovem foi uma experiência incrível e que me abriu outras oportunidades. Os núcleos da cidade foram redesenhados, de forma que aqueles três dias se tornaram só dois dias de atividades com os adolescentes. Aí, eu pedi à coordenadora que me indicasse para mais um núcleo. A partir de então, passei a trabalhar também no Castanheiras e na região do Taquaril. Com isso, foi possível complementar a renda e fui me reconfigurando e me tornando educadora. Depois, por mudanças na gestão, na coordenação, alguns núcleos fecharam, outros abriram. Mudaram as comunidades, houve muita modificação. Mas, ainda assim, foi uma experiência muito boa.

Uma das coisas legais em que me envolvi no mesmo período, que nasceu de uma ideia do Hamilton, foi a realização de um Encontro da Juventude Negra e Favelada, que deu super certo. Dois ônibus lotados com jovens das periferias de São Paulo e muitas pessoas de outras cidades vieram a BH para participar daquele evento. 

O encontro ocorreu em 1997 e, naquela época, era uma ousadia enorme ser juventude de favela. Discutíamos a importância de a cidade pensar a forma como ela se relacionava com a favela e com seus moradores. Apontávamos o fato de termos que dar o endereço do bairro ao lado porque nos discriminavam por morarmos naquele local. Não conseguíamos, por exemplo, pedir uma pizza, mesmo se tivéssemos dinheiro pra pagar por ela. Não conseguíamos receber encomendas. As discriminações eram muito pesadas. 

O Encontro da Juventude Negra e Favelada foi um acontecimento muito importante, que teve outras edições e muitos desdobramentos. Ele criou um contexto de mobilização que se conecta, por exemplo, com a construção, anos depois, do Hip Hop Chama, que o Juarez Dayrell desenvolveu com a juventude do hip hop.Estiveram presentes nos encontros da juventude negra e favelada (eu não vou lembrar de todos, porque é muita gente das favelas da cidade): o Arautos do Gueto, o Flávio Renegado (músico e ativista cultural do Alto Vera Cruz), o Fred (depois ele viria a adotar o nome artístico Negro F, à época, ele tinha uns 14, 15 anos e começava a trajetória como artista do hip hop e ativista cultural do Alto Vera Cruz), a Dani, a Márcia, (que foi lá conversar com a mãe do Alex, e de outros adolescentes, para ganhar a confiança delas e, assim, conseguir que autorizassem que eles participassem), a Marilda, , com a filha da Dona Valdete (grande liderança do Alto Vera Cruz, fundadora do grupo Meninas de Sinhá, falecida em 2014), que já mobilizavam no Alto Vera Cruz. A comunidade do Alto Vera Cruz, inclusive, era muito ativa. A Marilda foi ao encontro com uma turma de adolescentes do Alto Vera Cruz. E o Inácio participou com outra aqui do Morro das Pedras.

A articulação dos encontros foi uma experiência muito significativa. Para fazer o primeiro acontecer, começamos a ir todo final de semana nas comunidades para mobilizar, chamando as pessoas: “Nós vamos fazer o Encontro da Juventude Negra e Favelada, vocês vão? Vamos participar!”. Nos reuníamos nos ensaios do Arautos, na parte baixa do Morro. Foi assim que fizemos, e deu super certo! Tanto que, depois, aconteceram vários outros encontros. No início dos anos 2000 aconteceram atividades do Fórum Social Mundial, na Casa do Conde, e foi um momento especial, no qual marcamos presença. A essa altura, já estavam mobilizadas inúmeras redes de juventudes periféricas. E a Áurea estava junto, ajudando na construção.

A experiência com o Hamilton foi de um aprendizado muito grande. Ele era um cara polêmico, de vez em quando brigava conosco. Lembro que eu o observava muito, o modo de fazer, de conversar com as pessoas, subir os morros, entrar nos becos. Comíamos na casa de fulano, de beltrano. Era um tipo de disposição que eu tinha também, de conexão com as pessoas para conversar, mobilizar, construir os projetos. 

Outra ação marcante de que participei naquela época ocorreu quando a Comissão de Direitos Humanos do Aglomerado Santa Lúcia se mobilizou para captar recurso e desenvolver uma ideia da juventude da comissão: um Kit de Sobrevivência para Tempos de Exclusão. Esse era um material, uma cartilha, com várias orientações para moradores de favela sobre como lidar com as discriminações e com os preconceitos que enfrentavam. Trazia algumas reflexões sobre os erros que a sociedade cometia com esses moradores e moradoras por serem daquele local. Reforçava o direito das pessoas de se reconhecerem, inclusive, como faveladas, caso quisessem. Muitas pessoas faveladas bacanas ajudaram na elaboração da cartilha. Naquele tempo, já fazíamos uma construção racial reflexiva, pois a favela é construída por pessoas negras e essas discriminações estão relacionadas com o racismo.

No final de 1997, buscamos apoio e desenvolvemos uma discussão com meninas de favela. Criamos um espaço que se chamava “Conversa de Negra” e fizemos várias rodas de conversa no centro catequético, que era o espaço em que atuávamos. No Santa Lúcia, o pessoal dos movimentos era muito parceiro dos padres. Eu me lembro do padre Bernardino, do padre Henrique, de padres estrangeiros que cuidavam da paróquia. Um participava da pastoral carcerária e o outro era professor. Eles ajudavam a movimentar muita coisa. Depois que eles saíram, veio o padre Mauro que, mesmo após mudar de paróquia, ainda é muito amigo da turma do Santa Lúcia.A partir de todos esses processos, me conectei com muitas pessoas. No D-ver.Cidade Cultural, conheci a Elisângela, que havia participado do Encontro da Juventude Negra e Favelada, e também o Hugo, que foi da minha turma.

Integrantes de diversas redes se misturavam muito com o pessoal do D-ver.Cidade Cultural. O projeto era um ponto de referência, assim como o Centro Cultural UFMG. As pessoas, os professores e as professoras que realizaram o projeto fizeram um trabalho muito especial, pois compreendiam e sabiam lidar com pessoas com o nosso perfin; nos valorizavam, dialogavam e construíam junto. Isso fez toda a diferença. Vez ou outra, surgiam incômodos, mas era algo muito potente.

Lembro que, em determinado momento, começamos a pautar o lugar da mulher em todas as relações com as redes, com os coletivos. Éramos realmente muito ativas nisso. Era muito o nosso perfil. Veio daí o nome Negras Ativas, que criamos naquele início dos anos 2000. Aconteceu assim: eu e um grupo de amigas começamos a reunir aos sábados à tarde para conversar sobre o lugar da mulher na cultura, no hip hop, sobre os machismos que aconteciam. Depois de um tempo, estávamos formando um grupo bem conectado e permaneceu esse desejo de continuar conversando sobre hip hop e outros assuntos que nos tocavam naquele momento. Chamei outras amigas, a Larissa e a Rosilane. Assim, surgiu o Negras Ativas.

Naquele período, a AIC foi muito positiva para nós, porque muitas coisas que organizamos foram a partir da Rede Jovem de Cidadania, que dava um gás para quem tinha o perfil de realizar, de fazer as coisas acontecerem. Percorríamos os bailes, os eventos de rap, tanto os mais distantes, quanto os mais centrais. Fizemos um panfletinho chamado “recado das minas” e ficávamos na porta conversando com as meninas, com os meninos. Os meninos às vezes torciam a cara, falavam que iam deixar a namorada conversar conosco, mas não deixavam. A cultura de mulher obedecer homem era muito mais forte naquela época. Mas, mesmo diante disso, conseguimos mobilizar umas meninas. Nós escrevíamos do nosso jeito sobre violência doméstica, sobre racismo, e imprimíamos. Quem tinha estrutura de xerox no trabalho fazia as cópias.

Também foi naquele começo de milênio que eu fiz faculdade. Era uma luta. Comecei cursando Administração e depois fui para outro curso, Gestão de Pessoas, no qual o tempo para formar era mais curto. Eram muitos altos e baixos, pois era uma faculdade particular, paga. Se conseguia me organizar, tinha dinheiro, se não tinha dinheiro, era aquela luta. Mas eu me lancei naquele desafio.

Houve uma época em que eu fui bolsista de um projeto, por conta de uma dessas articulações também ligadas ao movimento social. Era uma formação muito bacana de moderação de processos em grupo. Quase não havia negras nesse curso, porque era muito caro. Tentei num ano e não passei, tentei no outro ano e não passei novamente, mas depois fui aprovada. Era um curso em que você viajava para São Paulo e ficava um período de uma semana lá, estudando.

Em uma das idas a São Paulo para o curso, eu não tinha nem o dinheiro do ônibus, só uma parte do ônibus para Bragança Paulista, nem o dinheiro para ficar a semana inteira em uma pousada. Diante disso, falei com a Analise Silva (professora da Faculdade de Educação da UFMG) e ela me disse para passar na AIC. Ela deixou lá um envelope com o dinheiro do que faltava para eu ir. Então, tive na minha história essas coisas também: a solidariedade das pessoas, o apoio com oportunidades.

Quando fui selecionada para a secretaria executiva do Fórum, eu precisava concluir a faculdade, e a oportunidade de trabalho no Fórum me deu um gás. Incrementou minha autoestima e me permitiu reorganizar um pouco as finanças. Fui encontrando outras oportunidades. Depois, eu cursei Pedagogia. Ou seja, acabei fazendo dois cursos. Isso fez muita diferença.

Quando havia surgido a vaga para a secretaria executiva do Fórum, eu não pensava que seria algo para mim, achava que eu não estava preparada para esse trabalho. Mas a Áurea me perguntou se eu não ia participar da seleção, então eu fui e deu certo. Me lembro bem que a banca me entrevistou de forma tranquila, num clima de conversa, e isso fez muita diferença. Me recordo que disse na entrevista que havia parado um tempo da faculdade porque tinha priorizado a minha filha. Hoje ela já está com quase trinta anos. Fizemos muitas coisas bonitas e potentes com os projetos do Fórum. Trouxemos jovens que são referências nacionais, como o Douglas Belchior e uma indígena do Acre. Reunimos vários tipos de jovens de vários lugares do Brasil em 2014 para discutir, propor e construir a plataforma política. 

Atualmente, assumi uma tarefa que toma muito tempo da minha vida: a de conselheira tutelar. Com a pandemia e as sequelas pós pandemia, demandas que já eram reprimidas se ampliaram. Durante a pandemia, muitas violações foram constatadas com as crianças e os adolescentes isolados dentro de casa. Então, tem sido necessário um foco maior para dar conta do trabalho, do qual gosto muito e que acho muito importante.Mas, mesmo nos momentos em que estou super atribulada, eu sou um pouco viciada em participação, é preciso me vigiar. Ainda integro algumas coisas. Por exemplo: sou uma das fundadoras das Pretas em Movimento, que é um coletivo, nascido em 2015

, cuja proposta é fortalecer pessoas negras para que ocupem espaços de poder. Nos unimos por essa causa e nos organizamos, temos colocado muita energia nesse projeto.

Também contribuí com a mostra de arte e feminismo Diversas, que começou a ser realizada em 2015, debaixo do viaduto Santa Tereza. Eu estive em algumas mobilizações dessa mostra. Também participei de uma roda de conversa com a Benilda e a Leda Costa. Elas fizeram um café da manhã em volta da roda, debaixo do viaduto. Foi muito bonito, com muita cultura, muitos elementos das artes e do teatro.

Em outro momento, as meninas me comunicaram de uma atividade na Pedreira: uma conversa sobre o ano eleitoral que estava se aproximando (isso foi no início de 2015). Me incluíram em um grupo do WhatsApp (eu estava começando a usar o WhatsApp, aprendendo) e apresentaram um monte de nomes de possíveis candidaturas, dentre os quais eu estava citada. Havia na lista pessoas como a Luana e a Larissa, que haviam trabalhado no governo federal e eram apoiadoras, conseguiam recursos para as atividades dos coletivos. Então, eu não me senti confortável em integrar a lista. As pessoas eram bacanas, mas pedi para conversar depois com elas para desfazer aquela ideia de eu ser da política, não era meu interesse.

Quando cheguei ao encontro na Pedreira, a Áurea estava lá, sentada no sofá. Ela já estava em articulação com a turma, porque atuava na construção das Muitas. E ali foi também o ponto de partida das reuniões das Pretas em Movimento. Começávamos a nos articular para a ocupação dos espaços de poder político, já pensando em 2016, que seria um ano eleitoral.

A Áurea já havia comentado comigo que ia se candidatar a algum cargo – o que já sabíamos, ninguém tinha dúvida de que ela tinha que se lançar naquele lugar. Ela já era aquela grande força e todo mundo ia abraçar a candidatura. Nós éramos amigas, sempre nos encontrávamos em algumas atividades. Fazíamos coisas juntas, estávamos juntas nas mobilizações. Ela sempre falava de uma turma que estava se juntando para construir espaços na política. Mas eu só fui compreender aquele processo como um todo numa reunião que aconteceu no Santo André, ao lado da Pedreira, logo depois daquele primeiro encontro sobre possíveis candidaturas. 

Na reunião no Santo André, entendi um pouco mais as estratégias de articulação, as conversas e os traçados. Era um chamado. Uma das estratégias era que todos se filiassem ao PSOL e a outra era pôr o corpo à disposição, para trazer voto. Enfim, existia uma estratégia maior, um caminho para alguém se eleger. A maior chance era da Áurea e talvez alguns outros. Mas algumas pessoas precisavam trilhar aquele caminho, era preciso desenvolver ações robustas para abrir as possibilidades. 

Na época, eu estava trabalhando no setor de mobilização do Canal Futura, um trabalho que veio na sequência da secretaria executiva. Foi mais uma ação em que participei com a Benilda. O trabalho do Futura me colocava em diálogo com parceiras históricas como ela e a Macaé, que estava no governo do Estado e tinha interface com o canal, em função de ações de educação a distância. Eram muitas as conexões e parcerias.

Em 2015, quando começaram as ações em torno das candidaturas, eu ia realizar uma ação em vários lugares de Minas com o canal Futura, a partir da parceria com a Macaé. Era muito trabalho, porque transitávamos em várias cidades, com pessoas do Brasil inteiro prestando serviço, além da equipe de Minas. Era um negócio grande. Então, eu estava num momento muito atribulado.

Mas, de volta às conversas em torno das candidaturas populares, fomos tecendo as articulações. O grupo das Pretas tinha um objetivo: estruturar um coletivo negro, com foco em pessoas negras para ocupar a política. A Áurea estava trazendo o objetivo das Muitas, uma coletividade com o objetivo de construir uma frente diversa para essa missão de ocupar. As propostas se conectavam. Enfim, eu topei atuar naquela movimentação toda. Depois, as Pretas acabaram contribuindo para além da ocupação da política. Houve toda uma mobilização para fortalecer a inserção na pós da UFMG e de algumas outras faculdades. Foi um período de várias ações muito legais. 

Das quatro candidaturas, nós apoiamos o Du Pente, a Crystal, a Áurea e o Evandro Nunes. O Evandro não conseguiu resolver a situação dele de documentação e acabou não conseguindo se candidatar. Foram essas que conseguimos nos organizar para apoiar. Depois, as atividades foram se ampliando. Foi um período bem interessante e de sucesso, com aquele fenômeno eleitoral que a Áurea se tornou e que, embora acreditássemos muito nela, não esperávamos. 

Na sequência, com o gás da eleição da Áurea, foi realizada uma mobilização forte para somar com a articulação mineira da rede #partidA , à qual eu estou ligada. Mas não tenho conseguido participar das atividades da #partidA como gostaria, em função da carga de trabalho do Conselho Tutelar, que é meu compromisso principal.

Além disso, eu tenho desejo de estruturar melhor o processo do Mulher de Favela em Destaque, iniciativa, da qual também faço parte, cuja proposta é construir conteúdos sobre / dar destaque às favelas, às culturas periféricas, a partir do olhar das mulheres. Ainda estamos dando os primeiros passos mas, na pandemia, a ação que engatinhava se tornou um projeto para garantir alimento e itens de primeira necessidade para algumas famílias que se viram em situação de pobreza absoluta. No processo, nos conectamos com o projeto Comunidade Viva Sem Fome, da AIC, e com a campanha Tem Gente Com Fome, da Coalizão Negra Por Direitos.

Em 2018, o Pretas em Movimento havia participado da construção e da inauguração da Coalizão Negra por Direitos, uma rede na qual vale muito a pena atuar. O evento de lançamento aconteceu em São Paulo, em um grande seminário. Ela já começou internacional, pois as forças que se somaram conseguiram mobilizar pessoas negras de outros países e de todas as partes do Brasil.

A Coalizão já começou com muita força. E ela tem sido muito importante na incidência política no Congresso Nacional, defendendo pautas dos direitos das pessoas negras; e também fortalecendo mobilizações pela ocupação dos espaços da política. Além disso, quando veio a pandemia, construiu a campanha “Tem gente com fome”, que também foi importantíssima. E ela é uma rede de coletivos e de instituições muito diversas, desde coletivos pequenos até os mais institucionalizados. Tem uma proposta bem bacana e conseguiu ir além da incidência política: articulou movimentos e entidades para que mobilizassem recursos para a distribuição de alimento para as pessoas extremamente vulneráveis no período de pandemia.

Enfim, essas são as frentes que eu mais participei nesses últimos dois anos.

Sobre a minha experiência na Secretaria Executiva do Fórum, realizamos várias coisas legais. Foram muitos momentos de criação coletiva intensos. Realizávamos encontros de chuvas de ideias, de conexão de propostas, e depois alguém transformava aquilo em desenho. Juntávamos tudo e partíamos para as ações.

Das ações que mais me emocionaram foi o trabalho de mobilização e diálogo que nos permitiu adentrar no sistema socioeducativo, atuar diretamente com os adolescentes em conflito com a lei. Isso ocorreu na época da campanha Juventudes Contra a Violência. A ação integrou um amplo trabalho de mapeamento de espaços, coletivos e lideranças das comunidades – levantamos várias redes, das maiores, até as menores da cidade. Buscávamos diálogo e parceria para disseminar a campanha. No processo, tentamos identificar todos os espaços do sistema socioeducativo da cidade, ou seja, tanto os de meio aberto, quanto os fechados. 

Nossa estratégia para levar a campanha a esses espaços era uma oficina de curta duração (quatro horas), que utilizava muitas charges do Latuff (que estava numa fase especialmente intensa e criativa), além de alguns desenhos e de músicas do rap, para provocar questionamentos. 

Conseguimos, então, levar a oficina às casas de semiliberdade. A proposta era apresentar pra eles a ideia e as reflexões da campanha Juventudes Contra a Violência. Tínhamos um traçado geral para as oficinas, mas em cada espaço ela funcionava de um jeito, pois era uma proposta aberta. Por exemplo, em uma das casas de semiliberdade, a educadora começou a bater no menino na nossa frente. Ela ficou nervosa, não deu conta dele e começou a bater, foi super tenso. Era, inclusive, uma casa em que o Russo trabalhava. Problematizávamos situações como essa que eu mencionei e criávamos um espaço de escuta e diálogo – oportunidades que aqueles jovens não tinham de modo algum.

O Russo foi uma das figuras ligadas ao Fórum que ajudou, na época, na articulação para adentrarmos em todas as casas. E realmente estivemos em todas. Frequentávamos desde o Jaqueline, passando por Venda Nova, região Norte, Pampulha, fomos em todas as casas.

Lembro que o contexto era muito diverso: havia casas muito tranquilas, em outras, houve tensão com a direção e/ou com educadores. Mas, de maneira geral, com os adolescentes a relação foi boa, fluiu. Fomos em um centro de internação fechado no Santa Clara, coordenado, inclusive, pela Cris Ribeiro, da Rede Mães de Luta.

O que mais me marcou naquela ação foi a possibilidade de chegar e verificar que boa parte da metodologia que organizamos deu certo com eles. Houve aceitação e eles entraram na conversa. Assim, conseguimos possibilitar que discutissem perspectivas de vida além da negação absoluta de direitos à que estavam submetidos. A realidade do socioeducativa é muito dura. Foi um trabalho muito difícil, mas que também nos marcou muito, trouxe muitos aprendizados.

Na divulgação da campanha, trabalhamos muito. Íamos à noite nas escolas, interagíamos com variados tipos de jovens que estudavam nos EJAS. Nas experiências com esse outro público, verificávamos a mesma realidade. Existe um sentimento de que há diferença entre quem foi preso e quem nunca foi, entre quem está numa comunidade no trabalho doméstico e quem está em uma loja de departamento. Autoestima, dignidade, remuneração são aspectos que certamente as diferenciam, mas ainda assim há questões que se atravessam. Com os jovens, não é diferente. No socioeducativo, muitas vezes, nos deparávamos com realidades e posturas relacionadas ao mito da democracia racial, de negação do racismo. Às vezes, percebíamos homofobia na forma de dizer. É interessante perceber essas coisas e buscar modos de lidar com elas. Aquela experiência nos ensinou muito isso.

Nas avaliações da ação, foi perceptível como, em algum momento, uma parte considerável (ou às vezes todos) conseguia rever seus preconceitos. Eram momentos muito pontuais, não havia novos encontros com cada turma. Mas não eram também encontros de 20 minutinhos, e isso fazia muita diferença. Penso que a forma como conseguimos articular e conversar com a direção e com os educadores do socioeducativo, e como dialogamos com os adolescentes, criou uma parceria.

A metodologia dos processos era detalhadamente pensada, tudo muito pensado por uma turma muito potente. Havia um cuidado com o lanche – do qual o pessoal da cantina acreditava que eles não iam gostar, mas eles gostavam. Era natural, mas saboroso, quebrava também com a ideia de que o lanche saudável não é saboroso. Tinha muita coisa legal no processo.

Naquela época, não se falava tanto da pauta do genocídio. Essa foi uma coisa que caminhou com o tempo. Mas se falava, de alguma forma, nas violências raciais e policial. Penso que isso foi se construindo também. A discussão foi sendo ampliada, fomos compreendendo mais com o tempo, encontrando a maneira mais adequada e construindo mais argumentos, conquistando mais respeito. Usávamos também alguns argumentos, como “a faca é violenta, porém há outras violências também”. Então, para algumas pessoas, ser desumanizado, chamado por nome de bicho, de macaco, dentre outras coisas, é tão violento quanto. Enfim, tentávamos conversar coisas assim com os jovens, para pensar as variadas formas de violência. 

Ao longo do tempo, houve mudanças nas formas do Fórum mobilizar e comunicar, o que é natural. O modo de falar muda, as gírias mudam. Alguns recursos que não existiam em outro tempo são fundamentais hoje. Eu acho que, hoje em dia, tudo é bem diferente, mas todas as formas de comunicação e mobilização são positivas, porque são tentativas, são exercícios.

A própria rede do Fórum vai mudando. Não tem jeito, faz parte do processo. A mudança é importante para assegurar o dinamismo, e a única coisa essencial é que a juventude não perca a perspectiva do quão importante é continuar a luta pela garantia direitos, sem perder a conexão com o que foi construído antes. É importante continuar a luta pela transformação e ampliação das políticas públicas, e essa luta precisa abranger muito mais do que só as juventudes ligadas aos partidos políticos, às instituições mais estruturadas ou a projetos específicos, as quais continuam com essa veia da participação nos espaços de luta política. É preciso ir além desses âmbitos institucionalizados e contemplar a maior diversidade possível de jovens e de grupos em que os jovens estão.

O perfil de juventude dos dias atuais, ainda que diverso, tende a uma desconexão dessa participação política mais direta e intensa. Isso é um risco. Eu não sei o que vamos conseguir identificar como novos modos de mobilizar frente ao cenário atual de desinformação, realidades paralelas, dispersão e desmobilização – que tem levado as pessoas à desconexão a que me refiro. Mas precisamos seguir observando e buscando caminhos.

E sabemos que a maioria das políticas públicas voltadas para a juventude ainda carecem de consolidação, de ampliação e de visibilidade. Por exemplo, o FIES ainda tem muito o que melhorar. A Lei de Estágio, que não existia em determinada época, passou a existir em função das juventudes e ainda necessita de muitos incrementos. O ID Jovem, que é um dos mais maravilhosos recursos de promoção do acesso dos jovens a oportunidades relacionadas à circulação e à vida cultural, ainda precisa ser ampliado, ganhar mais visibilidade e ser mais acessado, para que não corra o risco de ser reduzindo.

Para quem não sabe, o ID Jovem possibilita que jovens de 15 a 29 anos possam viajar sem pagar pela passagem. Assim como existem duas cadeiras com gratuidade nos ônibus para os idosos, há duas dessas cadeiras para os jovens nos ônibus. Isso é garantido por lei. Eu presenciei jovens das favelas fazendo mochilão, indo conhecer vários lugares. Algo que, até então, só era possível para jovens de uma realidade específica.

Com o ID Jovem, vi meninos e meninas de periferia desenvolverem seus planos de viagens para o ano. O contexto tecnológico atual, em que as redes sociais conectam a juventude de tudo quanto é lugar, potencializa ainda mais a proposta. Imagina a potência dessa galera que não tem grana, que não tem estrutura e estabilidade, mas, mesmo assim, pode circular, fazer cursos. Caso existisse na minha juventude, eu não ia precisar pedir dinheiro pra Analise pra conseguir viajar pro curso em São Paulo. Eu poderia pegar o ônibus de graça. Por meio dele, a minha filha já foi para a Bahia, para o Rio, para o Espirito Santo.

Para ter acesso, é preciso entrar no site do governo, fazer a inscrição, tem toda uma burocracia. Mas, uma vez cadastrado, você vai para qualquer lugar do Brasil nesses assentos que estão reservados para sua faixa etária. É política para juventude, uma das que eu acho mais fantásticas, mas é que é pouco acessada, pois não tem visibilidade. E ele é apenas um simples exemplo de programa que juventude precisa lutar para ampliar. Há inúmeros outros, pois as políticas para esse segmento, nesse país, estão encatinhando. E nos últimos anos, ao invés de expansão e ampliação, o que vimos foram políticas sendo desmontadas e encerradas.

Eu não sei o que juventude vai conseguir fazer renascer em termos da luta pelas políticas públicas, depois de tempos tão tenebrosos. Mas é preciso ir além da lógica dos políticos que só querem fazer das comunidades seus currais eleitorais, e se valem de pretensas lideranças, que adotam discursos demagógicos para mascarar sua ação pontual e oportunista. E também compreender e criar maneiras de construir um diálogo com pessoas que assumidamente continuam, depois de todas as tragédias, se posicionando a favor do Bolsonaro. Essas pessoas estão até nos conselhos tutelares – onde, com suas posturas intolerantes, em nome de pautas morais, fazem verdadeiros ataques aos direitos, causam grandes danos à vida de quem já está muito vulnerável.

Enfim, as juventudes têm muitos desafios pela frente em sua luta. Nesse momento de busca pela reconstrução dos direitos, a potência, a criatividade, as metodologias, a capacidade de mobilização do Fórum das Juventudes serão, como sempre foram, essenciais.

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