Sebastião Everton de Oliveira
Meu nome é Sebastião Everton de Oliveira. Tenho 35 anos e moro atualmente em Belo Horizonte. Mas eu sou da região metropolitana: da região do Palmital, em Santa Luzia. Eu venho do movimento de educação popular de Santa Luzia, onde atuo há mais de 15 anos com educação de jovens e adultos e também realizando atividades com crianças e adolescentes. O campo de socialização, que hoje a gente chama de socialização infantojuvenil, mas que nasceu como uma ideia de a escola ter, no contraturno das aulas, atividades de ocupação do tempo das crianças e adolescentes do bairro e que promovessem a cidadania.
Hoje, a gente tem outras elaborações em relação a tudo isso, ao sentido da educação integral. Mas, naquele momento, era mais ou menos isso. Havia uma visão, que hoje sabemos que era muito preconceituosa, de que era preciso ocupar o tempo daqueles meninos e daquelas meninas para que eles não se envolvessem com “coisa errada”. Naquela linha de “cabeça vazia, oficina do diabo”. Mas essa crítica eu fui elaborando ao longo do tempo.
Foi a partir das experiências de educação que eu fui tendo contato com grupos e instituições que atuavam com jovens – fui participando de conselhos, grupos e redes. E, em Santa Luzia, no finalzinho dos anos 1990, os movimentos de educação popular criaram uma experiência muito interessante. Havia muitos pré-vestibulares alternativos que estavam pensando a questão do acesso à universidade, pois ainda não existia o ProUni e a universidade era muito pouco acessível. Havia esses movimentos preocupados em criar estratégias de construção desse acesso e, por outro lado, a cidade vivia um esvaziamento do terceiro setor e uma grande escassez de projetos sociais nas comunidades.
A gente queria reverter isso e, então, buscamos o apoio dos Jesuítas (aos quais eu já era ligado, pois atuava no campo Pastoral em Santa Luzia). Aí, chegamos à Fundação Fé e Alegria (que existe há mais de 40 anos e tem um trabalho maravilhoso que já extrapolou as fronteiras do país) e conseguimos um financiamento para construir um processo pedagógico popular amplo em santa Luzia.
Éramos uma rede comunitária muito forte e essa rede se reunia, pensava em mobilizações envolvendo inclusive as creches infantis que havia no território, as associações. E dialogou com as associações para que cedessem determinado terreno para a construção de um posto de saúde. Buscávamos forma de criar possibilidades de acesso das comunidades a água, luz, calçamento. Trabalhávamos com alfabetização de jovens e adultos… Era um movimento de mobilização comunitária muito forte.
E era um projeto gestado por nós jovens mesmo, com trabalho voluntário. Depois, veio a parceria com a Fé e Alegria e, mais adiante, fizemos parceria com a Fundação Dom Bosco, dos Salesianos – que, inclusive, fazia a certificação dos adultos que formávamos.
Foi a partir desse trabalho comunitário que eu cheguei à AIC. Dei uma entrevista para a Rede Jovem de Cidadania, que conectava as juventudes em várias ações de comunicação. E quem me entrevistou foi a Áurea Carolina, que era estagiária da AIC. Eu me lembro de cada detalhe daquela entrevista, pois fiquei encantado com a Áurea, que já era maravilhosa. A Áurea, inclusive, realizou muitas atividades formativas conosco na Pastoral.
Eu adorava o boletim que a Rede Jovem enviava por e-mail, e o jornal impresso… Também participei do conselho editorial, que tinha debates muito bacanas.
Naquela época, já no início dos anos 2000, eu participei do curso de Formação de Agentes Culturais Juvenis, promovido pela Faculdade de Educação da UFMG. E aquele curso foi um clássico. Foi fantástico pra todo mundo que participou. Foi uma experiência de formação que ampliou muito as nossas perspectivas de compreensão da condição juvenil e da nossa ação. E passaram por ele pessoas muito cabulosas.
A AIC ficava pertinho do Centro Cultural UFMG, que era o local das atividades do Programa de Formação de Agentes Culturais Juvenis. E havia uma proximidade legal entre as duas iniciativas, a Rede Jovem somando nas questões de comunicação, levando nossas pautas e iniciativas a várias mídias, inclusive a Rede Minas. E a gente participava da construção das pautas, da produção das mídias. Eu fiquei apaixonado. Eu pensava: “Imagina a gente chegar num nível de organização daquele”.
As questões políticas também começaram a fazer muito sentido naquele momento. Mas ainda numa pauta muito restrita a Belo Horizonte. Só depois que avançamos para a região metropolitana.
Minha segunda experiência com a AIC foi no processo de produção do documentário Juventude de Atitude, construído com as juventudes da RMBH. Foi muito marcante, porque foi um uma equipe de comunicação foi lá no nosso bairro fazer entrevista. Aquilo nos deixou muito orgulhosos, nos deu uma sensação de valorização, de reconhecimento.
Participar de todas aquelas atividades tão potentes nos colocou em diálogo com outros grupos, que estavam produzindo coisas maravilhosas. Foi um momento de encantamento e muita aprendizagem. Nós nem tínhamos a noção da arte e da cultura que temos hoje. Então, pensávamos: “nó, que povo doido de ficar mexendo com essas coisas esquisitas… eles não tem nada que fazer, não?”. Por exemplo: não entendíamos muito bem a utilidade do sarau de poesia. A gente não tinha noção e compreensão dessas coisas, só depois é que fomos descobrir a importância delas. Mas naqueles tempos a nossa luta era tão encarnada em necessidades extremamente básicas e imediatas que não conseguíamos perceber essas outras dimensões.
Não dávamos conta ainda de perceber que a arte e que a cultura era de suma importância para denunciar e também para anunciar outros lugares.
E aí, depois do lançamento do Juventude de Atitude, dos momentos que vieram, eu lembro que houve a criação de um conselho da AIC pra discutir questões políticas, que era muito puxado pela Áurea e pelo Roberto.
Então eu cheguei naquele comecinho do Fórum e era aquela efervescência enorme: tinha o coletivo Hip Hop Chama fazendo discussões maravilhosas, produzindo materiais informativos fantásticos… As meninas do hip hop trazendo questões do empoderamento da mulher jovem negra, a discussão LGBT… Era muita potência.
E uma coisa que me vem à cabeça quando lembro daqueles tempos é que a AIC fornecia o vale-transporte pra gente participar das atividades, o que naquele momento era uma coisa inovadora. Com isso, a gente pôde acessar as reuniões. E se era da região metropolitana, o vale-transporte não servia. Então, a gente vendia os vales-transporte na Praça Sete. Era ótimo participar das reuniões também porque era um lanche a mais, era um dinheirinho a mais para ajudar na passagem do mês.
Outra coisa de que me lembro é que Vanessa Beco atuava como mobilizadora e ela nos ligava convidando pras atividades. Pra nós, era muito legal receber aquela ligação, era sinal que as pessoas se importavam com a gente, queriam que a gente estivesse junto. Isso era muito legal.
Enfim… as atividades ampliavam nosso acesso em vários sentidos.
O que vem em minha memória em relação àquele primeiro estágio do Fórum é esse monte de coisa potente misturada. Mas eu lembro também que, naqueles primeiros anos do primeiro governo Lula, as políticas públicas de juventude começavam a ser construídas e, por isso havia uma preocupação muito grande em ocupar os espaços de participação na construção das políticas. Com isso, a atenção do Fórum foi se direcionando cada vez mais à política formal, institucional, à articulação de conferências… E como a gente apanhava! Eram processos densos e complexos. E é preciso reconhecer que, no fundo, nas nossas cidades e no nosso estado, não havia abertura real à participação das juventudes nos processos deliberativos das políticas públicas.
A busca pela abertura de espaços para a juventude na política institucional de BH e do estado foi ficando cada vez mais árdua e frustrante. Isso esvaziou o Fórum. Até que chegou um momento em que houve uma ruptura. A gente foi se desconectando e o Fórum deu uma parada.
Foi um momento em que vivemos um certo esgotamento, um momento de muita descrença, também. Nos perguntávamos: “Será que esses mecanismos de participação juvenil vão funcionar mesmo? Os processos só ocupam o nosso tempo ou vão de fato incorporar as questões que a gente aponta?” Infelizmente, vimos que a participação era protocolar, apenas. Outro dado daquele momento é que a leva de pessoas que passaram pelo curso Formação de Agentes Culturais Juvenis foi correr atrás de oportunidades de trabalho, foi se profissionalizar. Havia questões que tinham a ver com a sobrevivência pra gente desembolar, e tínhamos que priorizá-las. Foi naquela época que eu, por exemplo, entrei na universidade, para cursar Letras. E tive que conciliar a universidade com todas as ações que realizava na comunidade. Depois vieram trabalhos em organizações que realizavam ações e projetos sociais, junto com o Mestrado em Educação, que cursei na UEMG.
De todo modo, quando ocorreu aquele momento de retomada e ressignificação do Fórum, por volta do ano de 2011, eu me reconectei. Eu participava das reuniões mensais do grupo gestor do Fórum, que estava sendo reestruturado. A reunião era um momento de atualizar agenda, falar de coisas que estavam acontecendo na cidade, fazer repasses.
Então, tudo ganhou outro ritmo e outro ânimo quando as energias foram canalizadas para a construção e a circulação da campanha Juventudes Contra Violência. Me interessei de cara, pois na PJ gente já discutia o genocídio de jovens. E eu me identifiquei com a proposta, porque ela tinha a educação popular como princípio. Foram realizadas várias oficinas de formação de educadores e eu fui convidado a ajudar na estruturação delas. E foi um processo coletivo e colaborativo muito legal, em que criamos estratégias para acessar as escolas e metodologias, cheias de dinâmicas, para trabalhar com aquele tema tão complexo.
Aí, depois, vieram os Okupas. Naquele momento, eu já entendia a importância de ligar ativismo, arte, cultura e mobilização. Por isso, o Okupa me interessou de cara. Só não participei do primeiro, mas participei de todos os outros.
O Okupa foi crescendo e se consolidando os processos colaborativos e participativos.
Foi no ano de 2011, também, que participei da criação do Instituto Tucum, organização da sociedade civil de Santa Luzia que reuniu um grupo de amigos ativistas, vindos das lutas da cidade em curso desde os anos 1990.
O Tucum atua na promoção dos direitos humanos realizando projetos e ações nas áreas de juventude, de educação popular e de políticas públicas. Já são mais de dez anos de trajetória, mas eu me afastei em alguns momentos em função de outras atividades, assim como houve outros em que o Instituto deu uma parada. Hoje, estou mais próximo e vivemos um momento de retomada das ações de empoderamento das comunidades.
O Tucum também participou de ações do Fórum, em diversos momentos.
Uma coisa que é marca registrada do Fórum é a diversidade. Essa característica sempre me chamou muito a atenção, desde os primeiros tempos: ele é um espaço em que a gente dialoga e troca com uma diversidade muito grande de pessoas.
Uma das coisas que mais marcaram na segunda fase do Fórum das Juventudes foi, mais uma vez, a acolhida, o cuidado. Todas as vezes que eu recebi algum convite, isso foi muito marcante, porque era alguém olhando para a minha experiência e valorizando a minha contribuição. E eu tinha cada vez mais interesse em participar porque percebia, cada vez mais, que aquele era um espaço que estava buscando uma construção participativa e democrática. Havia pessoas puxando, havia lideranças, mas elas acionavam outras pessoas para assumirem lugares de visibilidade, para poder compartilhar o seu conhecimento. Isso para mim foi muito incrível. A Sâmia e a Áurea, quando ligavam, era sempre uma alegria, porque a relação passava por esse cuidado e pela valorização, pelo convite verdadeiro pra uma construção compartilhada. Eu acho que a afetividade foi uma marca muito grande, sempre, e que ela tinha a ver com muito respeito à contribuição de cada pessoa: o tempo todo as pessoas ressaltavam aquilo que você trazia como qualidade.
O que não significa que não havia divergências e conflitos. Eu, por exemplo, propus uma vez uma atividade e a Áurea disse: “nossa, isso tá muito cristão!”. Não tinha nada de cristão, mas eu acho que, por eu ser da Pastoral, rolava sempre uma leitura de que eu era desse lugar do sagrado, do angelical. Eu fiquei com uma raiva daquilo! E falei: “gente, mas não tem nada de pastoral”. Depois que passou, realmente entendi que a crítica fazia sentido, porque o Fórum tinha um nível de radicalidade, buscava sempre criar algo que fosse muito próprio das juventudes e que não remetesse, por exemplo, a práticas mais relacionadas ao universo das igrejas.
Mas, como a gente podia falar das coisas, discutir, havia uma disposição para ouvir, a gente foi aprendendo a lidar com as diferenças e apostávamos que ela poder aparecer no grupo era algo muito importante. Nossos debates eram riquíssimos. Eles eram lugar de muito aprendizado. Toda a tensão que estava envolvida em alguns momentos, seja pelas questões relacionadas à difícil incidência política, seja por diferentes entendimentos sobre os caminhos a se tomar – por exemplo, eu integrava um grupo que tensionava muito a questão da necessidade de a atuação ser efetivamente metropolitana. Porque BH era sempre um foco, uma vez que existia uma logística instalada para fazer as coisas acontecerem. Mas era muito necessário expandir para as juventudes das cidades ao redor. Então, apareciam tensões que eram muito fortes… e eram muitas tensões.
Eu me lembro de tensões que transbordaram. Tensões que surgiam nas relações cotidianas e estavam ligadas a questões como racismo e machismo: seja as pessoas negras chamando a atenção para atitudes racistas, seja as mulheres questionando atitudes machistas – afinal, como o racismo e o machismo são estruturais, a gente reproduz nas relações, mesmo, e é preciso questionar isso o tempo todo. Mas as questões, muitas vezes, apareciam na forma de conflitos graves, de desentendimentos profundos, de mágoas… E as próprias conversas para tratar dos desentendimentos por vezes foram pesadíssimas, traumáticas mesmo.
Então, vivemos embates que foram muito traumáticos, mas também de muito aprendizado. Eu, por exemplo, nunca tinha olhado para mim como homem branco, não tinha parado pra refletir a fundo sobre a minha posição de homem branco numa estrutura racista e machista. E olha que ali eu já estava em um nível de militância já bem desenvolvido. E os conflitos do Fórum nos sacudiram violentamente nessas questões e foram muito marcantes, de trauma. Eu acho que todos ficamos com certo trauma, inclusive em relação às dificuldades de construir o próprio debate racial.
E quando a gente faz esses debates, entra no meio o imaginário das pessoas, a bagagem que cada um leva, as relações pessoais e íntimas… E aí tivemos momentos em que o nível de tensão se tornou insuportável. Foram conflitos muito doídos, que afastaram muita gente e deixaram a gente muito traumatizado.
Mas o importante do processo todo é que só chegamos na tensão extrema porque havia espaço pra de fato expressar incômodos e discuti-los. Porque em muitos lugares certas questões são varridas pra debaixo do tapete. No Fórum, houve muitos debates e até um tratamento da questão: foi chamada inclusive uma professora da UFMG que trabalha com a discussão racial, houve uma busca por um encaminhamento educativo, por um tratamento mais propositivo daquele mal estar.
Depois, a gente inclusive implantou critérios afirmativos nos processos de seleção da equipe da Secretaria Executiva. Enfim, são temas complexos, que afetaram todos nós. Inclusive minha pesquisa do doutorado teve muito a ver com isso também. Tratei de tensões que passaram por esses deslocamentos. Busquei compreender a questão das representações. Parti de questões como: o que que faz a gente se sentir representado ou não por determinado grupo? quem tá autorizado ou não a falar determinadas questões?
Na tese eu pude discutir um pouco a crise de representatividade das identidades políticas nos espaços decisão.
O que vi na pesquisa é que os novos movimentos, como o Fórum, questionam os modelos institucionais e as lideranças tradicionais, mas ao mesmo tempo precisam da política institucional, não a abandonam. Eles não abandonam esse sistema hegemônico. Inclusive, algumas vezes, disputam para estar dentro dos espaços formais. Têm disputado espaços da política institucional via candidaturas coletivizadas, por exemplo. Não rechaçam as lideranças, mas questionam modelos autoritários de liderança. Ao mesmo tempo, esses grupos performatizam. Eles criam possibilidades de reconfigurar aquilo de que não gostam. Eles entram, tentam ocupar e ressignificar aquele lugar. E se veem frente à necessidade de achar um ponto de equilíbrio, porque não dá pra tensionar ao ponto de gerar um rompimento.
No Fórum, sempre houve a tensão entre os processos orgânicos e as demandas institucionais – inclusive de estrutura institucional mesmo, que em boa parte da nossa história foi assumida pela AIC e pelo OJ. E para viabilizar várias ações, o Fórum das Juventudes precisou elaborar projetos, captar recursos, assumiu compromissos com prazos e entregas… E as pessoas muitas vezes questionaram isso, como se essa dimensão mais institucional fosse um entrave ao debate político mais aprofundado.
Mas eu acredito que existe no Fórum um entendimento de que a participação de todo mundo é legítima, e é por isso que, mesmo os debates mais difíceis, cheios de tensões e trauma, não representaram um risco à existência dele. As pessoas sabem que é importante manter aquele lugar como um lugar em que o debate é possível e no qual a gente pode aprender e seguir atuando juntos. Tem uma dimensão da coletividade, do nosso, que parece que vem primeiro. Ele consegue verdadeiramente sustentar essa ideia do “nós”.
Por isso, já são mais de 15 anos de atuação, muitas instituições pessoas já passaram por lá, sempre há gente e instituição que chega também, e o Fórum segue. Há um compromisso de instituições que estão há mais tempo, de outras que chegaram a menos tempo, de ativistas, de sempre manter o Fórum das Juventudes vivos. Há uma potência, sempre. Então, o que que permanece de toda essa dinâmica, essa fluidez, essa configuração dele, de ser um espaço em que muita gente transita? É a lógica do “nosso”, que eu acho que passa muito pela bandeira principal do Fórum. Porque a gente tem muito forte a ideia do pertencimento. Todo mundo se sente pertencente ao Fórum.
Por outro lado, existe uma contradição: quem vai de fato à reunião do Fórum? Quem, quando o bicho tá pegando e tem um monte de coisas pra resolver, pega mesmo o boi pelo chifre pra fazer acontecer? Então há um pertencimento mas, ao mesmo tempo, a gente vivencia dificuldades nessa dimensão da ação cotidiana que precisa ser efetivamente realizada.
Na lida com essa contradição, um aprendizado que acabamos por construir foi não nos prendermos a um ideal de participação. Inicialmente, acho que tínhamos uma visão idealizada de que tudo no Fórum teria que ser protagonizado por jovens. Acho que já superamos esse tipo de idealização. Na verdade, há aqui muitas pessoas jovens e muitas outras que atuam com jovens. Há coletivos juvenis e instituições que atuam com os jovens. A gente deseja jovens ocupando e protagonizando o máximo possível de ações. É muito bom quando isso acontece. Mas, quando isso não é possível, a gente segue com o trabalho, todo mundo investindo pra manter o Fórum como um espaço em que oferece formação e condições para que a participação juvenil aconteça.
Na minha pesquisa de doutorado, que abordou a experiência do FJ, eu toquei no ponto da institucionalidade. Porque a institucionalidade é importante para a perenização da ação política. Porque imagina se não houvesse, por exemplo, o suporte do OJ e da AIC? Talvez, no primeiro momento de ruptura, lá em 2007, ele não teria condições de reagrupar, de retomar, com a identidade coletiva que é uma marca tão valiosa dessa rede. Sem esse respaldo, ele poderia ter assumido outros desenhos e ter muitas dificuldades em se manter.
Outra coisa que permanece é o compromisso de manter uma agenda de atuação nas questões dos direitos juvenis. Mas também precisamos reconhecer que, ainda que as campanhas sejam muito fortes e tenham resultados incríveis, precisamos ir além delas e criar programas mais robustos de enfrentamento, por exemplo, da questão racial, das discussões de gênero.
Por outro lado, o Fórum tem algo de grande valor: a sua dimensão criativa e metodológica. É uma dimensão que dialoga com saberes diferentes, e isso é muito potente. Porque ele junta instituições e pessoas do ativismo cultural e social, pessoas com um perfil mais acadêmico, gente que gosta de fazer planilha e adora cuidar da organização, aquele que manja demais do assunto na teoria e o que está interessado é no lado bem concreto do assunto na vida, entender como ele está sendo afetado em questões do dia a dia. E essa mistura é muito rica para produzir metodologias. Sai uma produção muito legal.
Ao longo dos anos, a gente vem criando muita metodologia interessante, temos construído processos que realmente possibilitam a participação e que dialogam com as diversas juventudes. Esse é um grande aprendizado da nossa história.
E, nessa trajetória toda, o Fórum tem uma importância enorme na RMBH e mesmo no contexto nacional. E o motivo é que ele propõe, de forma contundente, pautas fundamentais. Ele afirma, principalmente, o direito à vida das juventudes, e defende que o único caminho é a ampliação de oportunidades – isso desde sempre. E ele sempre trouxe a demanda por participação, e não só nos espaços formais. Aliás, nós fomos aprendendo que a formação política passa também por outras vias e fazeres – que ela precisa ir além dos espaços formais. Aprendemos, por outro lado, a buscar o equilíbrio, pois não dá pra abandonar as esferas institucionalizadas, pois também é muito importante ocupá-las e dinamizá-las.
E a questão da ampliação das oportunidades é um princípio do Fórum porque os sujeitos periféricos sempre foram o foco de atuação, ao meu ver. Qualquer oferta que foi construída tinha esse público periférico muito bem definido. E isso aos poucos foi se tornando mais orgânico – quando, por exemplo, os Okupas e várias outras atividades foram descentralizadas, indo para outros espaços além do centro de BH.
Eu acho que a grande potência do Fórum é a comunicação. Desde que eu conheço essa rede, desde as primeiras formas que ela assumiu, ela pensou e construiu a comunicação de uma maneira ampla, seja nas relações corriqueiras do dia a dia, seja na produção de uma comunicação mais no campo das campanhas e produtos. Eu me lembro, por exemplo, das atividades quando ele ainda era o Fórum de Entidades e Movimentos Juvenis. Tinha um café super afetivo pra receber os jovens, um lugar super acolhedor. E tinha também sempre uma atividade criativa no meio, que muitas vezes era de criar produtos de comunicação pra falar das questões juvenis (documentários, produções pra rádio, panfletos). Eram atividades preparadas com cuidado metodológico, com a preocupação de criar condições que a construção fosse conjunta mesmo. E a gente ia registrando as ideias e os processos (em cartazes de papel kraft, por exemplo) pras pessoas verem o que estava sendo construído. Eu acho que esse jeito de atuar permaneceu até hoje.
Então, desde o primeiro momento eu entendo que um ponto alto já era a comunicação. Primeiro por essa comunicação das relações, que passa pela afetividade, mas também essa comunicação profissionalizada, que tem a ver com produtos de comunicação e que envolvia pessoas da área mediando os processos.
Tinha o contato cuidadoso com as pessoas, desde o primeiro momento, com um telefonema convidando, e com a disposição de ter sempre espaço pra elas poderem dizer das suas experiências, poderem construir. E, pensando bem, já tínhamos uma busca disso que hoje tem sido muito falado, que é a linguagem não violenta. A ideia era buscar sempre o caminho do diálogo afetivo. Eu lembro que eu mesmo, numa certa época, fiquei estressado, dei uma apelada porque estava achando um processo muito equivocado. E eu fui super machista! E o grupo afetivamente me chamou para conversa – foi tipo uma “coerção afetiva”. Fui acolhido com muito carinho. Então, acolhi com muito carinho também.
Às vezes, houve conflitos maiores e a gente criou grupos de mediação e gestão dos conflitos. Foram momentos difíceis, mas ao mesmo tempo muito legais. Do problema aparecer e de outras pessoas, para além daquelas ali da autogestão do dia a dia, serem chamadas pra trazerem uma perspectiva mais “de fora”, ajudando os envolvidos a olhar para aquele problema e pensar caminhos.
Já em relação à outra comunicação, mais institucional, o Fórum tem uma marca muito própria. Tem um visual, um jeito de combinar os elementos pra criar sua forma de comunicar, que é muito interessante. A gente consegue levar pras peças e pras campanhas uma mensagem que combina com a diversidade da nossa rede e que dá o recado. E eu acho que isso acontece porque tudo o que a gente produz tem processo coletivo e colaborativo no meio. Acho que a experiência da AIC contribuiu muito pra isso. E a concepção fica muito mais forte e gera coisas muito mais impactantes quando é coletivizada. E isso possibilitou construções com um nível de criatividade muito bonito. Por exemplo, aquela campanha “Bola Dentro, Bola Fora” encontrou um jeito muito interessante de tratar de política.
E eu acredito de verdade que a gente consegue atrair e envolver os jovens com essas produções participativas. Por exemplo, no caso dos rolezinhos. Os jovens das ocupações participaram de todo um processo formativo que culminou nos rolezinhos nas comunidades. Quando os produtos ficam prontos e a gente faz os lançamentos, as pessoas vão lá para se ver e elas conseguem se ver. E aí, quando eles se veem, é lógico que eles dão uma olhadinha ali do lado. Eles aí entram em contato com as discussões, com a rede, e entendem: “Olha, eu tô aqui nesse lugar importante”. Mas que lugar que é esse? Deixa eu entender, porque fiquei interessado”. Eu acho que, no momento em que isso acontece, a gente aciona aquele jovem.
Outra coisa que demonstra que a gente tem uma comunicação que dá resultado é que não interagimos apenas com um público, nossos públicos não estão em um raio viciado. Não é um grupo cristalizado. Eu acho que a variedade de públicos que nos aciona nos dá uma medida de nossa abrangência, indica que ela passa por vários lugares. Lugares de reconhecimento institucional, inclusive. De órgãos como a Promotoria de Justiça, de lugares que são da alta corte do formal, e nos quais alguém diz: “olha, quem tem autoridade para falar de assunto ligado aos jovens isso é o Fórum das Juventudes. Nós vamos chamar eles”. Então, há um reconhecimento e chega até neste tipo de público, que é um público mais corporativo, que passa ali pelo judiciário, pelo poder político. Nos convocam, por exemplo, pra audiências públicas… Então, há no nosso raio de abrangência desde aqueles jovens que interagem, participaram de uma atividade e se reconhecem no Fórum, veem nele um lugar de participação e expressão até as pessoas que são do universo mais institucional e formal, de esferas de poder. É difícil a gente mensurar isso, mas que a nossa comunicação cria diálogos efetivos com um conjunto muito grande de públicos, isso com certeza ela cria.
E tem algo muito singular e expressivo que a gente alcança na dimensão estética quando vamos para uma comunidade específica – uma ocupação, por exemplo – realizar uma atividade de comunicação em que há espaço para que as pessoas falem e criem a partir das referências, da cultura, do modo de ser delas. E isso em diálogo com nossa equipe e com outras juventudes, de outros contextos. Tem todo um modo de envolver as pessoas naquela produção. Em primeiro lugar, elas não são passivas. Não existe aquela ideia de só transmitir, tipo “a gente só vai lá oferecer, eles vão receber, é um depósito de conteúdo”. Então, já começa por aí, pelo modo de fazer.
E tem ainda a questão da estética ali envolvida. E quando eu falo estética, não me refiro apenas ao visual, mas a algo que passa por aquela experiência: pelo menino que canta o rap, pelo outro que produz, sei lá, uma camisa, pelo outro que vai ajudar a pensar ali como é que vai ser o lanche, se doninha que vende lanche na comunidade pode fazer, pode fornecer. A atividade construída coletivamente traz uma forma especial de se comunicar que é muito significativa e produz muito efeito. Eu acho que tem um modo aí de comunicar que é diferente.
E eu penso que o que é diferente é o modo como os públicos são mobilizados. Até o modo de chamar, de convidar a pessoa pra fazer parte, a construir, é diferente. E assim eu, que sou um público do Fórum, vejo valor naquele espaço ao vivenciar algo que é tão diferenciado, porque tem uma estética própria envolvida… Tem uma produção ali, nada é feito com desdém, tem todo um cuidado pra criar uma experiência presencial muito aberta, diversa, em que se respeita muito a presença e a expressão das diferenças. Por mais que a gente problematize uma ou outra questão, o Fórum zela muito pelas experiências coletivas, e por que essas experiências estejam em sua fala pública, em sua comunicação institucional.
Por exemplo, nos Okupas, a gente tinha sempre o cuidado de ter meninos e meninas de MCs. Tentávamos buscar ali uma inclusão de gênero e se cuidava muito do que ia ser articulado no evento. Isso gera muita confiança. Todo mundo sabe que existe uma perspectiva de trabalhar com as diversidades e uma atenção para o que que é publicamente produzido.
E essas coisas todas envolvem planejamento, não é? As coisas são sempre muito refletidas, discutidas e alinhadas.
Por tudo isso, o Fórum é um lugar de muito aprendizado. Ele foi um lugar de ampliar conhecimento para além da minha comunidade, de conhecer outros olhares e valores, e de valorização do que eu fazia com tanta simplicidade e foi tão bem aceito, foi muito bem acolhido. Eu já fazia oficina na minha comunidade, era um trabalho lá que eu não sabia nem nomear, porque era muito prático, muito objetivo, e eu nem percebia o valor dele. E de repente a gente vê esse valor reconhecido e ganhando centralidade. Isso me levou a me perceber como educador, a pensar como educador, a refletir sobre os processos educativos, a ir para o campo da pesquisa… Enfim… Existem deslocamentos marcam a nossa experiência. O Fórum marcou, e vem marcando, a minha.
Mas há transições de gerações no Fórum em que os jovens que chegam não têm todo o suporte que seria necessário. Agora, desde a pandemia, vejo que isso acontece. Há falhas nos repasses, no acompanhamento por quem está há mais tempo, às vezes no apoio – pois as pessoas estão nas instituições, trabalham, passam por adversidades, e isso prejudica o ativismo. Nos últimos anos, então, com todos os retrocessos, a pandemia, isso acabou acontecendo. Então eu tenho visto muita angústia das pessoas da atual secretaria executiva, e mesmo uma queixa de falta de reconhecimento. Já ouvi falas assim: “se eu chamar, ninguém vem na reunião. Mas se fulana (que é mais antiga no Fórum) chamar, todo mundo vem”. Estamos num momento muito desafiante desde a pandemia – não só para o Fórum, mas para as lutas sociais como um todo.
E a gente sabe que qualquer processo de mobilização é muito articulada por lideranças. Isso acontece também no FJ. E a secretaria executiva é o coração da rede – é ela que faz pulsar, que coloca o Fórum em movimento. Ela tem um papel muito importante na construção do sentido coletivo e da mobilização. Então, a gente precisa cuidar pra que ela tenha condições (em termos do grupo que a constitui e da oferta de condições para que ele atue) de criar a necessária vinculação e articulação com as instituições e grupos.
E tem um outro lado do trabalho do Fórum que é muito interessante: o impacto produzido pela própria articulação que ele faz. Eu acho que muitos grupos juvenis, em alguns momentos, se remobilizaram a partir do convite a integrar ações no Fórum. No Tucum mesmo já aconteceu isso. Vários grupos passaram por crises e o Fórum, ao convidá-los pra construções potentes como o Okupa, remobilizou aqueles grupos que estavam já desmotivados, já não viam mais sentido em seguir.