Sâmia Bechelane – Sâmia Bechelane Cordeiro de Melo
Meu nome é Sâmia Bechelane. Minha formação é em Comunicação Social e atuo em iniciativas de comunicação em direitos desde que iniciei a graduação na UFMG, em 2007. Durante a minha própria formação na universidade, participei de experiências muito significativas envolvendo comunicação participativa e cidadã, como os programas da UFMG Manoelzão e Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha. Também fui estagiária na Oficina de Imagens. Depois, em 2011, passei um tempo na Argentina, com uma bolsa de formação complementar, e lá atuei como voluntária de um coletivo de educação popular. Foi um trabalho muito legal, envolvendo direitos da infância e da juventude, numa perspectiva da educação popular que se conectava muito à minha trajetória até então.
Quando voltei a Belo Horizonte, em 2011, fui trabalhar na AIC (Agência de Iniciativas Cidadãs), que à época tinha uma área de Metodologia e Pesquisa, na qual ingressei. E o dia em que comecei a atuar na AIC coincide com a data em que eu conheci a Áurea Carolina, com quem me conectei de forma muita intensa, tanto que atuamos juntas vida afora, desde aquele ano de 2011.
Logo que iniciei na AIC, fiquei sabendo que havia um grupo ao qual a entidade era ligada, à época chamado de Fórum de Entidades e Movimentos Juvenis da Grande BH (que depois mudaria o nome para Fórum das Juventudes da Grande BH). O Fórum estava justamente num momento de reativação, depois de alguns anos parado.
Então, no segundo semestre daquele ano, comecei a participar dos encontros de rearticulação. Inicialmente, como ativista, por ter um interesse pessoal na pauta dos direitos da juventude. Mas os processos foram se intensificando e a nossa equipe da área de Metodologia e Pesquisa da AIC acabou sendo responsável por muitas das ações daquela retomada.
É importante destacar a grande contribuição da Áurea naquele processo em que o Fórum deu vida novamente à mobilização e se reestruturou. Ela tinha sido uma figura elementar, fundamental para a fundação do Fórum, em 2004. Também teve uma atuação muito expressiva no período até 2008, 2009. A interrupção do Fórum aconteceu num momento em que a Áurea viveu fora do Brasil. Quando ela voltou, estava com muito gás para puxar uma mobilização pela retomada daquela rede, que já tinha uma trajetória importante e que precisava seguir existindo na cidade.
Então, naquele ano de 2011, vivi um encontro muito feliz, tanto com o Fórum quanto com a Áurea. Eu já tinha ouvido falar dela em estudos que havia feito sobre juventude, mobilização social e culturas periféricas. E aí eu tive a feliz e grata surpresa de ter aquela pessoa, que já era uma referência pra mim, como minha chefe na AIC. Foi incrível a experiência de trabalhar junto com ela. Foi um encontro muito feliz e que rendeu muitos frutos. Já tem doze anos que atuamos juntas em diversas iniciativas e espaços: na sociedade civil, no poder público… Fui da equipe dos dois mandatos dela – como vereadora e como deputada federal.
O meu encontro com o Fórum foi também muito especial. Participar do Fórum foi uma experiência me marcou muito profundamente em termos pessoais, em termos ativistas, em termos profissionais.
Posso dizer que atuei de forma orgânica no Fórum, em diferentes arranjos e configurações, durante cinco anos. Nos dois primeiros anos, foi representando a AIC. Uma das minhas atribuições na entidade era exatamente desenvolver as ações de reativação e fortalecimento dele.
Eu trabalhava lado a lado com a Áurea, dando apoio a ela. Fizemos uma boa dupla! É claro que a Áurea, como eu disse, era nossa grande referência… Mas eu estava junto com ela em tudo, numa disposição muito grande de aprender com aquela luta e de colaborar. Naquele momento, eu tinha atuado mais em projetos com foco em infância e adolescência, mas também tinha uma certa experiência com processos formativos junto a juventudes, em vivências que tive em iniciativas como o Programa Polo UFMG no Vale do Jequitinhonha. Então, minha trajetória era conectada com direitos humanos, educação popular e sobretudo comunicação, que é a minha área de formação principal. E eu buscava contribuir a partir do que tinha experimentado e aprendido até ali, mas também com a disposição que tinha – assim como os demais – de criar e aprender coisas novas, ligadas às demandas e às potencialidades daquele momento do Fórum.
Além de o Fórum das Juventudes ter sido, naqueles anos, uma das minhas tarefas na AIC, eu também me entendia muito como ativista autônoma. Não me importava de atuar além do horário de trabalho e de assumir tarefas extra de representação do Fórum, porque eu me sentia muito pertencente e muito acolhida pelas pessoas que faziam parte dele. A minha experiência era muito menor do que a de ativistas históricos da juventude em Belo Horizonte – eu nem era belo horizontina, havia me mudado para BH para fazer faculdade, tinha poucos anos na cidade. E muitas das pessoas do FJ eram nascidas e criadas na RMBH, eram ativistas das culturas periféricas, eram artistas de diferentes linguagens… Eu tinha toda a consciência de que aquelas pessoas tinham muito mais acúmulo do que eu, mas eram todas muito acolhedoras e eu tentava contribuir do meu jeito.
E foi dessa forma: me senti muito pertencente, os participantes me acolheram e confiaram no meu trabalho, na contribuição que eu podia dar, e aí eu arregacei as mangas junto com as pessoas e entidades que se juntavam, naquele momento, pra reconstruir o Fórum. Foi um trabalho de arrumar a casa. De reestruturar o coletivo, mesmo. Um trabalho que partiu do básico: pensar o que que ele seria naquela nova conjuntura do município, do estado e do país. Era um momento de repensar tudo, depois de alguns anos de desmobilização.
Então, naquele primeiro momento, para começar a arrumar a casa, precisávamos entender qual seria a nova vocação do FJ. Pensávamos em seguir incidindo no âmbito das políticas públicas de juventude (PPJ), que havia sido uma motivação fundamental até mesmo para a criação do Fórum. Mas, naquele início dos anos 2010, a atuação totalmente centrada nas questões das PPJ estava um pouco datada. Havia terminado o ciclo em que o governo Lula pautou e lançou as bases de tais políticas, a efervescência da construção daqueles primeiros anos… Havíamos conquistado avanços, mas também compreendido que aquele campo era complicado, desgastante, com processos lentos e muito complicados. Tínhamos, por exemplo, a polêmica do Centro de Referência da Juventude, cuja proposta não era discutida com os movimentos juvenis e, além disso, pouco se avançava para que o projeto efetivamente saísse do papel. Sabíamos que, se direcionássemos toda a nossa energia a embates relacionados a questões como a do CRJ, que se arrastava há anos, seria um caminho de desgaste e desmobilização.
Então, tínhamos que nos arejar, que redefinir caminhos. Até mesmo para incidirmos nas questões das PPJs (ainda que avaliássemos, àquela altura, que elas não seriam exatamente o foco principal), tínhamos que repensar a missão do FJ, nossos objetivos, nossos focos de trabalho… E foi isso que fizemos, entre 2011 e 2012. Nosso trabalho envolveu, em grande medida, articular e promover a mobilização para uma série de encontros ampliados, para os quais convidávamos grupos que já integravam a rede, junto com outros que ainda não nos conheciam. Paralelamente, marcávamos posição nos debates acerca das PPJs.
Naqueles anos iniciais, então, recriamos nosso próprio nome – de Fórum de Movimentos e Entidades Juvenis para Fórum das Juventudes, sinalizando uma ênfase maior na ação das e dos jovens. Naquele momento, o FJ começou a ter uma presença cada vez maior de pessoas que trabalhavam com juventude, mas não representavam grupos ou entidades. Pessoas que passamos a chamar de ativistas autônomos. A rede ia, aos poucos, se tornando mais fluida, inclusive devido a novas dinâmicas de participação popular e juvenil que surgiam – a participação se tornava menos institucionalizada, os processos ganhavam fluidez. O mesmo acontecia conosco: o formato mais formal – e mais engessado, de certa forma – do Fórum começava a mudar, e isso se traduziu no novo nome. Criamos, ao mesmo tempo, nossa logomarca.
Também reestruturamos a carta de princípios, que trouxe de maneira bem explícita os objetivos de fortalecer a autonomia dos jovens, por meio de um trabalho de formação, mobilização e articulação. A partir da carta, grupos, entidades e ativistas foram convidados, naquele período, a reafirmar o vínculo com o Fórum das Juventudes.
Depois, em 2013, veio a etapa do projeto do Fórum com o Instituto C&A, que durou três anos e tinha como um dos objetivos principais estruturar uma secretaria executiva (SE) profissionalizada para o Fórum. Eu integrei a primeira equipe da SE, passando a ser responsável pelas atividades de comunicação – algo que eu já até fazia antes, mas de maneira mais informal, junto com outras atividades.
Com a implantação da SE, o Fórum ganhou muito mais fôlego, força, robustez. E sabíamos que seria necessário um trabalho mais organizado de comunicação, para dar suporte àquele crescimento. Foi nessa perspectiva que eu assumi o trabalho específico de comunicação. Passei a cuidar de tudo o que se referia à área – da sistematização e registros fotográficos das atividades, como os encontros formativos sobre violência contra as juventudes (que viriam a culminar na campanha Juventudes Contra Violência), até a manutenção das redes sociais do Fórum (o Facebook era a grande rede social daquela época).
Acredito que conseguimos fazer um trabalho bem legal de registro das ações que aconteciam… e fomos consolidando outras frentes de atuação, também. Eu criava materiais de apresentação institucional do Fórum, fazia um trabalho mais estruturado de assessoria de imprensa, principalmente das grandes ações e eventos. Tentávamos fazer com que grandes acontecimentos (como o 4º Okupa, em que aconteceu o lançamento da campanha Juventudes Contra Violência, em 2013) também se tornassem fatos midiáticos.
Nosso trabalho de assessoria de imprensa, mesmo com uma estrutura modesta, tentava posicionar o Fórum como uma referência nas discussões sobre temas relacionados à juventude. E eu acho que foi um trabalho que rendeu alguns frutos. Passamos a ser procurados, com frequência cada vez maior, até por veículos mais tradicionais de Belo Horizonte. Penso que isso ajudou a colocar o FJ num lugar de interlocutor legitimado sobre questões juvenis.
Uma das experiências de que participei em 2015 exemplifica esse amadurecimento da relação com a imprensa. De fevereiro a julho daquele ano, o FJ desenvolveu, com financiamento da ONG Cipó, de Salvador, a pesquisa “Monitoramento de políticas públicas para o atendimento a adolescentes e jovens em situação de uso e abuso de álcool e outras drogas em Belo Horizonte”. Atuei em todas as etapas da pesquisa (do esboço do projeto ao relatório final), e foi um processo muito legal, com resultados relevantes. Mapeamos as principais políticas, equipamentos e serviços de saúde oferecidos a adolescentes e jovens em uso abusivo de álcool e outras drogas, fizemos análises sobre como as políticas se relacionavam com os jovens e as comparamos com outras políticas, de âmbito estadual e nacional. A pesquisa produziu um relatório e um infográfico interativo que apresentava os principais serviços de atendimento. Os conteúdos foram abrigados num hot site, dentro do site do Fórum.
O lançamento da pesquisa aconteceu no começo de agosto, num evento na Casa do Jornalista, no centro de BH. Realizamos uma assessoria de imprensa no lançamento e tivemos lá, cobrindo, veículos importantes – SBT, Record, Rádio CBN, veículos impressos. Até a minha mãe, que mora no interior, viu a notícia no jornal.
Quanto tínhamos esse tipo de cobertura expressiva da imprensa, fazíamos inclusive um trabalho de rodízio entre fontes, de cada hora combinar de uma pessoa falar pelo Fórum, para descentralizar a representação institucional. Às vezes, quando a demanda do veículo era urgente ou não havia alguém disponível, eu até falava, mas tínhamos a preocupação de ter um grupo diverso de pessoas falando em nome do Fórum.
Para os eventos especiais, produzíamos um pacote de comunicação: tinha identidade visual, papelaria, peça gráfica, conteúdo em site e rede social, assessoria de imprensa. Eu cuidava de fazer a ponte com designers, programadores e outros profissionais. Enfim, estruturamos um trabalho que ia dos registros cotidianos a um conjunto de ações de comunicação institucional.
É claro que eu não ficava só na comunicação. Havia momentos em que eu também fazia representação institucional do FJ em espaços de discussão das PPJs, em eventos… E também era um trabalho muito integrado com as demais pessoas da equipe, que atuavam em atividades de mobilização e formação – das quais eu também participei, em alguns momentos. E tinha sempre uma atuação nossa no sentido de criar espaços de discussão e elaboração de propostas, para os quais convocávamos toda a rede do Fórum. Participar dos espaços de planejamento e criação coletiva era algo muito importante para todas nós.
Fiquei no Fórum das Juventudes até 2016, e depois fui vivenciar outras experiências, fui estudar novamente… Era hora. Chega um momento em que a gente sente que é tempo de passar o bastão para outras gerações que chegam – e chegaram várias outras na secretaria executiva! Sempre chegam novas caras, novas ideias… essa é uma riqueza do Fórum. Depois de mim, a Bárbara Pansardi assumiu a comunicação na SE.
Foram tantas as experiências vividas no Fórum das Juventudes naqueles cinco anos que fica até difícil selecionar uma para contar em detalhes. Mas acho importante falar de uma construção que marcou a história do Fórum e foi muito significativa para mim – e, acredito, para muitas pessoas que atuaram naquele período: a campanha Juventudes Contra Violência.
Em 2012, as violências, entendidas como o conjunto de violações de direitos contra as juventudes, começavam a ter mais visibilidade. Naquele ano, por exemplo, uma publicação que compilava os dados da violência letal contra jovens desde o final dos anos 1990, o Mapa da Violência, realizado pelo Instituto Sangari e parceiros, passava a contar com a articulação da FLACSO (Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais) e, assim, ganhar divulgação ampliada.
As violências contra as juventudes estavam sendo escancaradas como um fenômeno muito alarmante. Nós do Fórum percebíamos o quanto aquela era uma questão importantíssima e acreditávamos que a denúncia e o enfrentamento às violências poderia ser uma grande bandeira de luta, capaz de impulsionar o movimento de retomada do FJ que estava em curso. Assim, naquele ano, lançamos um material de referência, com pautas e dados sobre o tema: um pequeno caderno informativo chamado Agenda de Enfrentamento à Violência contra as Juventudes. Nosso desafio seguinte seria produzir uma campanha de comunicação e mobilização social sobre o tema.
No último trimestre de 2012, começamos a construção da campanha. Teve início, então, um grande processo colaborativo, que contou com um grupo de trabalho coordenador, constituído por pessoas da equipe da AIC e membros do Fórum, além de diversos jovens da rede do FJ.
Realizamos, de novembro de 2012 a março de 2013, uma série de encontros envolvendo os jovens da rede. O primeiro encontro foi de apresentação do conceito de campanha de comunicação. Nos encontros seguintes, a proposta era levantar ideias, diretrizes visuais e imagens para a campanha. No grupo de trabalho que coordenava o processo, criávamos com cuidado a metodologia de cada encontro. Elaborávamos jogos, que nos encontros com os jovens serviam como disparadores de processos criativos combinados com conversas. Foi dos processos criativos que nasceram os elementos fundamentais da campanha, sendo o principal uma série de imagens de rostos violados dos jovens, produzidas por eles próprios.
As imagens das faces violadas foram criadas numa atividade muito forte, na qual os jovens utilizaram os mais variados materiais para fazer interferências nas imagens dos seus rostos (fotos que haviam sido feitas no encontro anterior e entregues impressas a eles). Os jovens criaram intervenções pesadas de apagamento, corte, mutilação, corrosão das faces deles – indicando que violências violam identidades, que é algo muito associado ao rosto de cada um. A partir das fotos com as intervenções, eles falaram de violências muito graves e cotidianas, e houve uma discussão muito difícil, mas também muito importante.
Do cruzamento das discussões e produções dos encontros com os jovens, do trabalho do GT coordenador, e ainda da ação de profissionais de comunicação, nasceu a campanha, que teve como principais imagens cédulas de identidade nas quais a foto tradicional era substituída pelas faces violadas. Tais imagens compunham cartazes e grandes banners, que estiveram no 4º Okupa (de lançamento da campanha, ocorrido em 08/05/2013) e em inúmeras ações do Fórum desde então.
Também produzimos um site – www.juventudescontraviolencia.org.br –, e o próprio evento de lançamento, que foi um grande encontro de expressões juvenis e de debate em torno da campanha e do tema que ela difundia.
Depois, criamos um grupo de trabalho para preparar uma proposta metodológica para encontros formativos de disseminação da campanha, com a preocupação de garantir que fossem participativos, pautados em diálogos com os jovens.
A proposta embasou um amplo conjunto de ações que ocorreram depois do 4º Okupa: dezenas de encontros formativos, construídos em parceria com entidades e grupos parceiros do Fórum das Juventudes, propagaram a campanha Juventudes Contra Violência. As atividades formativas aconteceram em diferentes espaços, inclusive em inúmeras escolas públicas, e se estenderam até 2014.
Na experiência da Juventudes Contra Violência, pudemos exercitar uma nova forma de incidir nos debates juvenis e na formação das juventudes. Toda a proposta de construção era muito inspirada na perspectiva participativa, dialógica e prática da educação popular. O cuidado metodológico se evidenciou como algo muito caro ao Fórum.
Naquele processo da campanha, e em vários outros que vieram, o Fórum foi se transformando, foi assumindo uma nova configuração. Inicialmente, ele tinha sido muito focado em discutir políticas públicas de juventude, em fazer incidência política direta nos espaços institucionais. Mas, ao longo do tempo em que estive lá, os processos formativos foram ganhando muita força, e a educação popular se mostrou uma grande vocação da rede. Uma vocação que eu considero maravilhosa, e que se manteve, nos anos seguintes, como uma das maiores forças do Fórum das Juventudes.