Russo – Flávio da Silva Paiva

Salve! Me chamo Flávio da Silva Paiva e sou mais conhecido como Russo. Faço parte do movimento Hip Hop da RMBH desde o final dos anos 1990. Iniciei minha caminhada num grupo chamado Posse Aliança Mineira – posse é uma forma particular de organização coletiva da cultura Hip Hop, como as crews. Entrei na Aliança em 1999 e, a partir daquele ano, comecei a trabalhar muito em grupos, pois passei a enxergar a importância e a potência de uma organização coletiva. Ao longo dos anos, me inseri em diversos coletivos, até compor hoje o coletivo Terra Firme e o Fórum das Juventudes.

Logo após encerrar meu ciclo na Aliança, entrei num grupo chamado Manifesto Hip Hop. Nele, tive a oportunidade de conhecer uma galera que já fazia o “corre” do hip hop das antigas – Roberto, Marcelo, Renegado. E, a partir daquele grupo, fundamos, em 2000, o coletivo Hip Hop Chama, que reuniu jovens ativistas da cultura Hip-Hop da grande BH para a realização de ações e campanhas de formação, mobilização juvenil e intervenção social comunitária. O coletivo, que atuou por mais de dez anos, ampliou nossos horizontes sobre a cultura e estabeleceu relações com vários outros coletivos da época. Era um grupo com conexões bem diversas. Nos conectamos com comunidades quilombolas, grupos de Rock, favelas, comunidade LGBTQIA+, além das periferias das quais sempre fizemos parte. Foi uma época em que firmamos muitas parcerias e crescemos pessoalmente e nos territórios.

Ao longo do processo de realizar atividades de mobilização social junto aos coletivos, fui me entendendo cada vez mais como um educador social. Naqueles primeiros anos do século 21, participei ainda do Observatório da Juventude, com o Juarez Dayrell e a Nilma Lino Gomes, e fiz o curso de formação de agentes culturais juvenis – experiências que me deram a base para atuar como educador social em escolas, centros comunitários, comunidades, e em ações que faziam parte de políticas públicas voltadas para as Juventudes, como o projeto Fica Vivo. Atuando com vários coletivos simultaneamente, eu servia como uma espécie de ponte entre eles. A partir das interseções entre os nossos coletivos e da experiência do curso de formação de agentes, fundamos o coletivo D-ver.Cidade Cultural.

No D-ver.Cidade Cultural, que funcionou de 2004 a 2008, tivemos a possibilidade de juntar mais de 15 coletivos de Belo Horizonte e região metropolitana. Nós realizamos atividades formativas nas nossas comunidades, multiplicando nossas vivências e aprendizados como rede de agentes culturais, construímos ações colaborativas entre os coletivos, fomos em busca de recursos para viabilizar nossos projetos, e participamos de debates relacionados às políticas públicas de juventude, que estavam começando no país. Também tivemos a possibilidade de fechar uma parceria com a AIC, a partir da qual participamos de e realizamos cursos e oficinas de audiovisual, fotografia, agência de notícias, jornal, rádio. Assim, conheci outras figuras importantes, como o Clebin Quirino, a Neca (Aléxia Melo, que integrou a AIC), e outras pessoas que se tornaram referência para nós. Tivemos a oportunidade de testemunhar como os profissionais da AIC atuavam na prática como uma associação: um patamar de organização que buscávamos para as nossas iniciativas, também. O D-ver.Cidade funcionou pra gente, enfim, como uma incubadora de ideias, projetos e processos.

Para nós que fomos parte do D-ver.Cidade, foi muito importante o reconhecimento dos pares e de pessoas que tinham uma história com as juventudes. Lembro do Juarez me dizendo: “você é um ótimo educador!”. Ouvir isso de uma pessoa que era referência para mim foi muito importante, pois eu jamais havia me imaginado nesse lugar. Vim de um histórico conturbado na periferia em que, infelizmente, havia sido expulso de escolas por mais de dez vezes. Então, ser reconhecido como um educador popular fez toda a diferença pra mim, e para as comunidades onde tive a oportunidade de atuar. Antes de participar dos coletivos e movimentos, eu não via a educação como uma possibilidade ou uma prioridade. Minha prioridade era o trabalho e a sobrevivência – essa é, até hoje, a realidade de muitos jovens na periferia. Mas o Hip Hop e os coletivos me salvaram de um caminho que poderia ter se encerrado prematuramente com minha morte, e por isso sou grato à cultura, à educação e a coletividade.

O trabalho dos coletivos de que eu fazia parte foi sendo reconhecido na cidade e isso se consolidou com o Fórum de Entidades Juvenis (que depois viria a se chamar Fórum das Juventudes da Grande BH) que começamos a construir em 2004. Naqueles primeiros tempos do Fórum, pudemos incidir, por exemplo, na Assprom (Associação Profissionalizante do Menor). Na época, a Assprom não tinha um diálogo com a juventude enquanto coletivo, para discutir e refletir sobre o papel dos jovens. O foco era só gerar oportunidades de trabalho. Mas o Fórum realizou formações com os jovens beneficiários dos programas da entidade, e eles logo começaram a se destacar e a construir propostas muito interessantes. Não é à toa que na Assprom ocorreram, naquela época, festivais de juventude, que tratavam de questões como o empreendedorismo jovem e perspectivas de futuro, a partir das discussões que aconteciam dentro da própria instituição. No mesmo período, tive a oportunidade de realizar consultorias e desenvolver projetos em organizações como a Cruz Vermelha, o Fica Vivo e o CESAM MG (Centro Salesiano do Adolescente Trabalhador).

Nossa atuação nas comunidades se tornou objeto de estudo para as universidades, sobretudo para a UFMG. Éramos muito procurados e gradualmente nos tornamos uma ponte entre a academia e a periferia, pois através da linguagem podíamos nos comunicar com os dois universos. Particularmente, percebo a importância do trabalho acadêmico, mas faço questão de estar sempre presente na base, ser “pé no chão”, pra não perder esse contato com a periferia. Afinal, por mais que hoje haja mais diversidade dentro dessas instituições de ensino e pesquisa (graças a política de cotas e outros mecanismos de inclusão), elas ainda são espaços muito elitistas e restritos. Sinto que o trabalho intelectual que exerço merece espaço nos livros, mas o trabalho prático na rua é mais urgente. Sempre tive a liberdade para desenvolver minhas oficinas, com os mais diversos formatos e linguagens, e o academicismo restringe isso de certa forma, ele é muito “careta”.

Além das oficinas com os jovens propriamente ditas, também tive a oportunidade de ministrar aulas para muitos oficineiros do Fica Vivo, no Projovem, Agente Jovem e Juventude Cidadã. Toda essa experiência prática veio a se tornar uma peça fundamental mais tarde, quando concluí a graduação em Pedagogia, pois a faculdade não te prepara para o “chão de escola” – e acredito que você só se torna verdadeiramente um educador quando tem essa práxis cotidiana. Hoje, enquanto pedagogo, posso olhar minha trajetória escolar com outros olhos, pois fui um aluno que foi efetivamente rejeitado pela instituição escolar e hoje pode propor outras formas de ensino, educação e pedagogia.

A vida me apresentou vários caminhos, muitos deles poderiam ter me levado à morte ou à privação da liberdade, mas pude agarrar as poucas oportunidades que tive ao longo desse trajeto e me tornar um agente de transformação nas comunidades, pelo viés da cultura e da educação. O “capeta da torcida organizada” se tornou um educador.

Hoje, atuo no Coletivo Terra Firme, que foi criado em Ibirité no ano de 2015. Nosso objetivo é promover o fortalecimento das juventudes nas favelas. Descobrir potenciais jovens nas comunidades e fortalecer as ações que já são realizadas nos territórios. Uma de nossas metas é captar recursos financeiros para reinvestir nos trabalhos, empreendimentos criativos e movimentos que já estão sendo protagonizados por esses jovens. Nosso grupo se propõe a ser um “porto seguro” para outros coletivos, tal como um agrupamento de movimentos inspirado no que foi o D-ver.Cidade Cultural. Não temos a pretensão de protagonizar lutas nem “monopolizar” lideranças. Queremos fortalecer os movimentos em atuação e incentivar os jovens a vivenciarem as mais diversas experiências positivas a que possam ter acesso – para que, assim como eu, eles possam construir sua formação através da prática, tendo contato com a diversidade e as várias causas/bandeiras/lutas que fazem parte da nossa cidade.

Terra Firme vem de “terra” mesmo, “pé no chão”, a base. Queremos ser uma referência para os mais diversos coletivos, queremos trabalhar com mulheres, pessoas trans, indígenas, quilombolas, a juventude e a negritude daqui da região de Ibirité. Nossa sede é na região do Barreiro, em Belo Horizonte, mas atuamos em todo o vetor Oeste da RMBH. Queremos mobilizar recursos e fortalecer o empreendedorismo de base favelada. Já aquecemos vários projetos,- iniciativas de montagem de podcast, fotografia, cinema, estamparia, projetos do ramo da alimentação, dentre outros.

A luta pelos direitos humanos é uma luta árdua, cansativa. Lidamos com questões muito sérias e tentamos tornar esse processo mais leve, às vezes até mesmo divertido, pois precisamos estar bem pra seguir em frente. Afinal, se não houver uma disposição e uma vontade muito grande de fazer acontecer, muito daquilo que já foi construído pode se perder.

Eu sou da filosofia de que, pelo bem ou pelo mal, a raiva nos move. Eu sou um cara movido à raiva. Eu tenho raiva, eu vou para briga, principalmente quando vejo alguma injustiça, mas eu não guardo mágoa, porque aprendi que a mágoa vira doença, um adoecimento mental. O que eu sempre falo é que a gente tem que ser maduro o suficiente para poder falar o que pensa, brigar se for necessário, mas não transformar isso em mágoa. Hoje, eu tenho cuidado muito de mim, cuidado do meu corpo e da minha saúde mental. Eu consegui tirar, de dentro do emaranhado de coisas que faço, um tempo pra mim. As vezes passo um tempo num terreno na roça, vou lá e mexo com a terra, planto, desligo o celular, não quero saber se o mundo tá acabando, preciso me desconectar pra relaxar, contemplar a vida. Quando surge uma demanda nesse momento sagrado, eu digo: “Infelizmente, nesse horário não dá”. Se eu não tiver saúde mental, não estiver pronto para ajudar, não vou conseguir ajudar. Cuidar de si é fundamental.

O Fórum das Juventudes, para mim, é um alicerce da nossa atuação política. Ele nos possibilita pensar e fortalecer políticas públicas voltadas para os jovens, cuja urgência maior hoje é a questão do genocídio da juventude negra. Uma rede comprometida com essas pautas se faz necessária, pois ela pode articular recursos que muitas vezes são inacessíveis para os grupos mais marginalizados. São esses recursos que, por exemplo, dão liberdade e força para a secretaria executiva pressionar a prefeitura e o estado para que não ignorem as pautas das juventudes, e que também possibilitam que sejam realizados diversos dos processos formativos do Fórum, que são tão fundamentais. Embora eu já não faça parte da “juventude”, me coloco no papel de apoio às ações protagonizadas pelas pessoas pretas da “linha de frente”, que hoje protagonizam as ações do Fórum.

O Fórum tem três papéis principais, a meu ver: o primeiro é a escuta e o diálogo com as juventudes; o segundo é o enfrentamento/educação institucional na lida com o poder público; e o terceiro é a ação mais direta propondo eventos e espaços formativos. O Fórum hoje conhece a fundo as juventudes de toda Região Metropolitana de Belo Horizonte, pois desenvolve um trabalho de diálogo com elas há 15 anos. Os jovens que assumem um lugar de protagonismo nessa rede, podem contar com o peso dessa história, que os empodera perante a sociedade civil e o poder público.

O Fórum se constitui como um espaço que dá vazão aos conflitos, frustrações e lutas de jovens com trajetórias muito diferentes umas das outras e, ao mesmo tempo, é um lugar de acolhimento, de escuta e de afeto. O “amor” é uma marca do fazer político do Fórum, e sua potência é a possibilidade de transformar parte dos traumas da violência em cultura, poesia, conhecimento e possibilidades de transformação social. O teatro, a música, a dança, fazem parte da forma de agir e atuar do Fórum.

O Fórum constantemente também realiza campanhas e eventos para que, por meio da comunicação, possa incidir na política. Um dos mais importantes eventos de caráter formativo e cultural que realiza são os Okupas. Para mim, os processos formativos são mais importantes que os eventos de culminância dos Okupas, mas ambos têm seu lugar e sua importância. Os Okupas são / sempre foram eventos livres, espetáculos ricos que fizeram história nas comunidades. Até hoje as pessoas falam das primeiras edições dele, e de todas as seguintes. As pessoas mais conservadoras podem ficar assustadas num primeiro momento com um evento tão diferente e aberto. Mas, ao testemunhar o pessoal da comunidade participando, a possibilidade de ouvir o “diferente” num microfone aberto, parte desse receio / estranhamento se quebra.

jovens e mães
contra o
genocídio
da juventude
negra