Luíza Alcântara
Quando a campanha Juventudes Contra Violência foi criada, eu era aluna da Oi Kabum Escola de Arte e Tecnologia e me interessava por processos criativos. Também acompanhava algumas das discussões relacionadas aos direitos dos jovens. Mas aquele processo foi muito profundo e intenso, mexeu comigo e, acredito, com todo mundo que participou.
Cada um de nós criou uma imagem da carteira de identidade toda danificada, justamente pra falar dos danos que a violência causa à vida e à identidade dos jovens. E a assinatura da carteira era uma palavra. A minha foi diferença.
Acho que eu tinha escrito diverença e quando foram fazer o material eles corrigiram. Eu também tinha trocado o ç por s e colocado o s espelhado. Mas isso foi alterado depois na finalização do material. Na verdade, a escolha da palavra não foi individual, o processo todo da campanha foi coletivo, todo mundo interferiu o tempo todo. Para levantar as palavras para os cartazes, fizemos uma chuva de ideias, usamos letra de decalque, conversamos. Só depois cada um escolheu a sua palavra. Lembro da gente conversando disso, cada um falando da palavra que escolheu, da gente conversando com a Áurea (uma das integrantes da coordenação do Fórum à época), com a Flavia Péret (educadora da Oi Kabum). Conversamos muito sobre tudo.
Escolhi escrevê-la de um jeito errado, pra de alguma forma falar do acesso à educação, porque as pessoas negras não têm acesso à educação, muitas são analfabetas, a grande maioria não tem acesso à universidade.
Então, eu quis escrever a palavra de um jeito errado, fiz uma letra com o desenho espelhado e escrevi errado (troquei uma letra por outra com o mesmo som, mas errada). Eu fiquei pensando em como a cor, a grana, a classe em que a pessoa está diminui o acesso dela à educação e a várias outras coisas.
Além disso, como eu disse, a gente tinha decidido interferir nas fotos. E eu fiquei pensando em como iria mexer na minha imagem. Fizeram uma foto em que as minhas mãos seguravam o meu rosto, e fiquei pensando em como mexer naquela foto. Eu tenho a pele branca, mas tinha um cabelão longo e cacheado, meio black. Resolvi lixar o meu rosto, pra ele quase não aparecer, e mostrar mais o meu cabelo. E ficou assim: dá pra ver que sou eu, mas eu queria apagar o meu rosto.
E a decisão de apagar literalmente era pra falar de outro apagamento, subjetivo e simbólico. Por muito tempo, as pessoas negras não diziam que eram negras, não assumiam isso, e nem os brancos assumiam que eram brancos e o que isso significava. O rosto apagado tem a ver com isso, eu acho: o apagamento da identidade. E a coisa do cabelo é super forte quando a gente pensa na pessoa se dizer negra. Por isso, eu quis dar destaque pra minha cabeleira. Ela era importante. Porque eu sou branca, tenho até sardinha no rosto, mas tenho boca grossa, nariz largo, cabelo cacheado, não estou dentro de nenhum estereótipo. Lixei o meu rosto e deixei o cabelo porque, afinal de contas, quantas meninas negras não alisam o cabelo, acham que o seu cabelo é pior, sofrem preconceito e bullying? Eu pensei nelas.
Naquela atividade, que foi super forte, nasceu a campanha. Que era toda nossa: estávamos lá, juntos, construindo cada elemento dela. E queríamos que ela partisse de um lugar realmente do jovem. Pensando na campanha com o meu olhar de hoje, eu acho que ela partiu mesmo de um lugar diferente, de um lugar que tinha a ver com aquele nosso grupo, não com a estética da publicidade. Porque já existe uma estética da publicidade, com cores, discursos, tags, que cria um estereótipo da juventude. E essa estética está circulando. Não teve nada disso na nossa campanha, ela não teve nada a ver com a imagem do jovem ligado nas redes sociais que circula por aí.
Não foi uma campanha padrão. Um exemplo é a foto da Áurea, toda rasgada e costurada. Tem uma coisa diferente ali: ela mostra um rosto que foi cortado em vários pedaços e que foram feitas emendas naquele rosto. Dá pra pensar em muita coisa sobre esse rosto cheio de emendas. E a campanha foi isso: o que a gente queria era criar imagens que fizessem as pessoas pensarem em um monte de coisas, e não utilizar o que já estava circulando.
Pouco tempo depois, aconteceu, por acaso, uma outra coisa que marcou. As peças da campanha circularam por várias escolas públicas. As peças eram mostradas e era realizada uma roda de conversa formativa. Uma das ações em escolas públicas foi realizada pela Áurea e pela Sâmia [que integrava a coordenação do Fórum das Juventudes naquela época, junto com Áurea] na escola da minha irmã. E a minha irmã viu os cartazes, me viu, e isso foi muito marcante pra ela. Ela me contou que ficou comovida ao ver aquela imagem minha tão forte, junto com as outras, falando de uma questão que tocou a turma dela inteira. Ela me disse que ela e os colegas foram atrás, procuraram o Fórum, fizeram pesquisa. Eu achei isso muito legal. A gente, quando cria, não tem ideia do que aquilo tudo vai gerar nas pessoas. Então, foi muito legal saber desse efeito: criá-la tinha impactado muito quem participou e eu vi que essa força chegou a quem teve contato com as peças e pôde discutir aqueles temas tão importantes a partir delas.