Lúcia Pinheiro
Sou Lucia Pinheiro e uma das fundadoras do Coletivo Pontos de Luta, criado em março de 2019 em Belo Horizonte, que tem o bordado como linguagem política. Nosso grupo reuniu pessoas que atuaram em outro coletivo, o Linhas do Horizonte (que também realiza esse tipo de trabalho), mas decidiram criar um novo grupo. Nos conhecemos nas manifestações de 2016 contra o impeachment da Dilma. Na movimentação toda daquele momento, alguns rostos foram ficando familiares. A gente foi se encontrando, se identificando uma com a outra.
Somos a maioria mulheres acima de 60 anos de idade (somente 1 homem integra o grupo), que viveram intensamente as décadas de 60 e 70, ativas nos movimentos político-sociais, mas que já não participavam desses movimentos há muito tempo e isso gerava um incômodo. Não queríamos
A partir de 2016, com as manifestações contra o impeachment da presidenta Dilma, passamos a nos juntar, usando o bordado como manifestação política. Aí não paramos mais: bordamos em movimentos de mulheres, protestos políticos e em defesa dos direitos humanos e de justiça social.
Muitas vezes escolhemos uma temática atual e daí partimos para criar os bordados. Reunimos nas casas de bordadeiras, encontramos nas ruas e praças para as bordAções
que podem ser desde pequenos trabalhos com frases e imagens, como painéis e faixas. As ideias vão surgindo e vamos nos movimentando.
Definimos nossa proposta da seguinte forma: somos um grupo de esquerda que defende a justiça e a democracia. E fazemos isso com o nosso bordado, que é um bordado político: é um bordado de manifestação política. O bordado é, para nós, uma linguagem política: por meio dele, expressamos nosso posicionamento em relação às questões da sociedade, defendemos direitos e nos somamos às lutas sociais.
Mas fazemos questão de sempre lembrar: “a gente borda luta e borda alegria, também”. Fazemos bordados para falar de arte, para homenagear pessoas que admiramos. Para homenagear os 80 anos de Gilberto Gil, por exemplo, fizemos um enorme estandarte coletivo, formado por panos bordados com versos de músicas dele e ilustrações.
Nós funcionamos de um jeito espontâneo. Alguém pensa num tema e diz: “vamos bordar, gente?”. A partir do convite, cada uma borda o que quiser e o que puder. Isso vale pros nossos bordados temáticos e para a nossa participação, como bordadeiras, nas ações e eventos das lutas.
Quando criamos projetos de bordados temáticos, como eu disse, o processo começa quando alguém dá uma ideia. Quem se interessa e pode participar, se junta com quem aderiu àquela ideia. Aí, o grupo pensa: “como é que vamos fazer isso?”. Assim, nasce uma proposta, um projeto. A gente vai desenvolvendo o projeto daquele bordado de um jeito muito conversado no grupo. Decidimos o formato da peça, o padrão de tecidp, como vamos dividir o tema. Depois, cada uma cria: o bordado é livre.
A participação nas bordAçoes, atos e eventos é livre também. A convocação é feita através do WhatsApp do coletivo. Quem tem disponibilidade vai. E como a maioria de nós já está aposentada e, além do mais, somos muitas (mais de 60 pessoas, hoje), acabamos chegando em muitos lugares e participando de muita coisa.
A participação é livre e de acordo com a disponibilidade de cada uma. As ideias vão sendo compartilhadas. Vamos escolhendo livremente os formatos, os tecidos e linhas, a divisão do trabalho.
Foi assim que conhecemos a Rede Mães de Luta. Alguém ficou sabendo de um evento na Assembleia Legislativa, em 2019, e avisou no grupo de WhatsApp, perguntando: “Quem pode ir lá apoiar?” E assim algumas estiveram presentes.
Conhecemos a rede naquele dia e foi muito intenso, ficamos muito impressionadas e emocionadas. Não tem como não se emocionar com a luta dessas mães. Naquele evento da Assembleia, estavam também a mães do Rio e de São Paulo, e foram contadas muitas histórias que nos tocaram profundamente. Foi assim que nos integramos à rede. Ali, nos dispusemos a caminhar junto com aquelas mulheres. Desde então, temos participado de quase todos os eventos que elas realizam.
É dessa forma que fazemos do bordado uma ação política. Fazendo do nosso bordar uma linguagem para a expressão de várias lutas; fazendo dele um espaço de manifestação política por meio da arte.
E essa expressão, essa manifestação, pode gerar produtos muito diferentes, mas todos eles cumprem o papel de cutucar a sociedade. Às vezes bordamos pequenos panfletos, outras bordamos uma faixa grande, para chamar mais atenção nas manifestações de rua
. Mas, independentemente do formato ou do tamanho do que a gente produz, o essencial é poder falar sobre a questão que a gente aponta ali, e fazer isso juntas e junto das pessoas, chegando perto delas.
Com as Mães de Luta foi assim: nós fizemos uma roda de bordado e conversa; perguntamos o que era importante para elas, o que buscavam. E na roda é assim: cada uma de nós, e quem chega também, se expressa ali. Elas falaram e bordaram sobre a perda irreparável das pessoas que amavam. E é um ato político você poder bordar e registrar esse tipo de coisa: o seu sentimento, o sofrimento que veio de uma injustição. Aquilo sai de você quando você expressa por meio de uma arte, e vira um apelo, uma denúncia. É assim com o nosso bordado, mas também com as diversas linguagens artísticas, como a pintura, a cerâmica, a música, o teatro. É por aí.
E olha: só do nosso grupo chegar num lugar e começar a bordar, já deixa as pessoas curiosas, querendo saber o que é aquilo, querendo bordar também e, daí a pouco, as pessoas já estão conversando sobre aquele assunto. E quando elas começam a falar, vem muita coisa. Muitas e muitas vezes nós bordamos numa praça, como a Praça Sete, e esse tipo de coisa aconteceu…
O cotidiano das pessoas é muito apressado, a vida é um corre-corre, então as pessoas não vão parar pra prestar atenção na ação ali na rua se ela não for bem diferente do que elas costumam ver ali. Como nosso grupo se destaca, bordando em plena praça, acaba que muita gente para e, depois, quer participar. Por isso, nós queremos é ir cada vez mais pra onde as pessoas estão, e não esperar que as pessoas venham até nós, nos encontrem num cantinho bordando. Então, vale a frase famosa do Milton Nascimento “o artista tem que ir aonde o povo está”.
Há outro ponto que acho essencial em experiências artísticas como a nossa, em que são denunciadas injustiças: tem que haver transformação, o processo tem que ser transformador para quem participa dele. As pessoas precisam do espaço de dar vazão à emoção, mas precisam fazer algo com a emoção: denunciar, ocupar os espaços de construção de leis e de políticas, vigiar os agentes públicos – pode ser por vários caminhos, mas tem que haver ação transformadora. É como as mulheres da Rede Mães de Luta falam: tem que ir “do luto para a luta”.
Não estou com isso diminuindo a importância da emoção. Ao contrário: estou dizendo que ela é nossa matéria-prima, nosso combustível. E somos um grupo é muito afetivo, também. Em cada processo, criamos uma relação afetiva com as pessoas daquela luta. Vejo que isso é muito forte também na Rede Mães de Luta. Por isso, a gente sofreu tanto quando tivemos que ficar isoladas, em casa, durante a pandemia. Mas, mesmo assim, mantivemos a conexão: pensamos em projetos de bordado coletivo, trocamos ideia, fizemos foto do que íamos criando, mandávamos material para quem precisava. Nós participamos também de um projeto chamado “A memória não morrerá”. Nós bordamos 690 corações em homenagem às vítimas da COVID.
Aquele foi um projeto coletivo que uniu grupos de bordado político de todo o país. Mas esse bordado de manifestação política vai muito além: é uma tradição da América Latina. Ele foi usado, por exemplo, por bordadeiras do Chile durante a ditadura de Pinochet, que perdurou de 1973 a 1990. Utilizando uma técnica tradicional chamada arpillera, elas teciam bordados com histórias e denúncias de desaparecidos políticos e enviavam para fora do Chile, como um numa busca por apoio de pessoas de outros países. Até os dias de hoje, a palavra arpillera é sinônimo de bordado de resistência, e esse modo de bordar é adotado por muitas lutas, em diversos contextos latino-americanos.
E são muitas experiências, espalhadas por todos os lugares. Aqui em Belo Horizonte, temos também a experiência das bordadeiras da Vila Mariquinhas, que fica na região norte da cidade. Desde os anos 1990, elas bordam para registrar suas histórias de vida e os acontecimentos do cotidiano. E elas, que em 1995 ocuparam a região que hoje é a vila, também criaram um bordado, que ficou muito famoso, no qual contam a sua luta por moradia.
Aqui em BH, temos também o grupo Meninas de Sinhá, do Alto Vera Cruz, que nasceu em 1996 como uma prática de senhoras da comunidade, que se começaram a se reunir para cantar e reviver as cirandas e cantigas de roda, e também para criar bordados – peças de arte e artesanato que, naquela comunidade, têm desde a finalidade de gerar renda para as mulheres até a de ser uma prática de registro de tradições locais.
Assim como essas outras experiências tão bonitas, nós do Ponto de Luta acreditamos que o bordado pode ser uma linguagem para falar da nossa memória, da vida das comunidades, da defesa dos direitos. É isso o que fazemos quando bordamos junto com as pessoas de cada luta. E buscamos fazer isso com cuidado, observando e respeitando a realidade de cada grupo e de cada um ou cada uma que participa.
O trabalho que realizamos não pode nunca ser imposto. Ele tem que ser desejado pelo grupo. Além disso, quando começamos uma ação com um grupo, nosso primeiro movimento é de escutar, deixar que que os e as integrantes dele falem das suas vivências, das suas ações, e do que esperam expressar por meio do bordado. Porque só assim é possível que um bordado seja uma produção impregnada pelos sentimentos que afloram nas pessoas ao bordar.
Se o processo acontece com zelo e participação, quando a gente borda lutas que carregam emoções muito fortes – como é o caso da luta das mães cujos filhos foram assassinados –, surge algo muito forte. E às vezes esse sentimento intenso toca as pessoas, e a dor de cada uma acaba sendo percebida como uma dor geral, que afeta de alguma forma todo mundo que participa daquele momento. E a perda de pessoas amadas, ali narrada cheia de dor, pode ser, por vezes, uma perda que todo mundo que está ali vai, de alguma forma, sentir.