Kaká Silveira – Maria do Carmo Silveira

Me chamo Maria do Carmo Silveira e tenho 62 anos. Todo mundo me conhece como Kaká. Sou fundadora e coordenadora do Movimento Mães de Maio Minas, que faz parte do Movimento Mães de Maio nacional, e sou uma das fundadoras da Rede Mães de Luta.

Fui obrigada a entrar na luta contra a violência do Estado porque foi de uma unidade do Estado – o CERESP Gameleira – que o meu filho Thiago Vinícius Silveira saiu morto, no dia em que seria o aniversário de 31 anos dele: 14 de janeiro de 2014. Me entregaram ele com a cabeça quase separada do pescoço, com marca de corda de enforcamento, todo cortado, todo quebrado, com sinais de espancamento. E me disseram que foi suicídio. Eu não aceito isso. O Estado nunca conseguiu provar isso. O que eu sei é de várias evidências que mostram o contrário.

E o Thiago teve esse final horrível depois de 14 anos de violência e de falta de acesso a oportunidades de tratamento e de reabilitação, pois ele era dependente químico. 

Mas o meu filho não é só mais um dependente químico e uma vítima do sistema prisional. Ele tem uma história. Ele deixou uma filha. Eu o amava e enfrentei muitas dificuldades para criá-lo da melhor forma possível, pois fui mãe solteira aos 23 anos, e tive que me virar completamente sozinha, sem nenhum apoio. Mas eu fiz o que pude para que ele pudesse crescer bem e para que estudasse. E assim foi até que ele completou 17 anos. Naquele ano, começou o envolvimento dele com as drogas e o calvário de internações no sistema socioeducativo e, depois, de idas e vindas em presídios. Quando meu Thiago começou a se envolver com drogas, eu comecei a perdê-lo. Acabava ali o tempo de estar com o meu filho, de curtir a vida junto com ele.

Uma vez, ele foi condenado a mais de três anos de prisão por ter roubado um celular; depois, por essa mesma quantidade de tempo, por ter furtado alguns chocolates em um supermercado. É muito desproporcional, não é mesmo? E as prisões são, na verdade, infernos: celas imundas e superlotadas, tortura, desespero.

Um dia antes de o meu filho ser morto (é isso que eu acredito que aconteceu), eu tinha procurado a Comissão de Direitos Humanos da OAB pra denunciar agressões e ameaças que ele estava sofrendo no CERESP. Quando fui informada da morte dele, eu voltei lá, denunciei que agora a vida dele já não tinha mais como ser poupada. Aí, a Comissão de Direitos Humanos investigou o caso e uma das testemunhas ouvidas, o detento do Ceresp Luiz Antônio de Oliveira, disse que presenciou o assassinato do Thiago. Mas depois essa testemunha foi ameaçada e teve que ser transferida para outra unidade. Um outro preso contou que o meu filho sabia que seria assassinado; que ele gritou: “chamem a minha mãe, porque vão me matar”. 

A comissão também pediu um novo laudo de necropsia, que levantou a forte suspeita de que ele não se matou: ele foi assassinado. Há vários sinais de que ele foi torturado e de que o suicídio foi forjado.

A segunda necrópsia do corpo dele apresenta uma lista de marcas que são comuns em cenas forjadas de suicídio, quando outras pessoas é que penduram o corpo do alegado suicida no laço do enforcamento. O corpo tinha sinais de que algo mais forte do que só o peso do corpo dele o levou à morte por assifixia: ele tinha o rosto e lábios inchados e arroxeados; havia manchas horríveis espalhadas pelo rosto dele.

Apesar de tudo isso, o processo do Thiago já foi arquivado duas vezes, mas eu nunca descansei: vou atrás da promotoria, de tudo que é órgão e autoridade, conto o meu caso em todos os lugares. Depois de muita luta, uma promotora fez uma nova denúncia do caso em 2017. Mas o processo ainda está longe de se concluir, mesmo já tendo se passado nove anos. De todo modo, ele teve muita repercussão em alguns momentos e, com isso, o Estado não conseguiu me enfiar goela abaixo a versão do suicídio.

Até 2019, essa minha luta era totalmente solitária. Eu não encontrava outras mães na mesma situação que eu que estivessem dispostas a denunciar e protestar. Muitas vezes, as mães que perdem filhos desse jeito não denunciam e brigam porque ficam extremamente deprimidas, sem vontade pra nada, ou com muito medo de denunciar – ou as duas coisas. É muito difícil achar forças pra ir à luta. Por isso é que é importante que uma mulher puxe a outra pra luta. Mas, naquela época, eu não conseguia chegar até as mulheres e agir nesse sentido, porque eu não tinha ninguém pra me ajudar a fazer isso. Então, praticamente durante cinco anos eu enfrentei o Estado sozinha. Só podia contar com a promotoria e mais nada. 

Eu fico muito indignada de ver um inquérito como o do caso do Thiago, e como tantos outros mais, nos quais praticamente sem investigação já se chega ao veredito “foi suicídio”. E quem faz isso é o todo poderoso Estado. Além do mais, morto não fala. Aí o Estado pode falar o que quiser, não é? Não aceito isso. Eu estou aqui pra falar pelo meu filho, pra não deixar que só a versão do Estado conte, pra gritar pra que alguém ouça.

Por que querem que eu aceite o veredito do suicído sem questionar, por que eu não posso contestar essa versão que o Estado me deu? Nunca aceitei isso, mesmo sabendo que é assim que o jogo funciona. Afinal, tem que ter advogado, e sempre me disseram que processar o Estado é praticamente causa perdida – que tentar pagar um advogado seria jogar dinheiro fora. 

Quase sempre esse tipo de coisa horrível fica sem esclarecimento porque as pessoas têm medo de ir contra o Estado. Então, o sistema todo já presume que não vai haver ninguém pra rebater a versão dos agentes penitenciários. Mas estão enganados. Eu não aceito. 

Por conta de tudo isso, minha indignação é muito grande e eu faço o tempo todo um esforço danado pra não desabar, pra não sucumbir ao desespero. Consigo parecer estar bem e ir levando, porque eu tenho que estar bem, porque eu faço questão de estar bem. Afinal, eu me prostrar não vai me levar a lugar nenhum. Se eu me prostrar, eu não poderei fazer mais nada – nem pelo meu filho e nem por ninguém. E eu, por não ter encontrado, no meio do caminho, ninguém para me ajudar, e por saber do quanto passar por tudo aquilo é sofrido, quero fazer alguma coisa para que outras mulheres tenham algum amparo.

Tive muitos momentos de desespero. Parei de trabalhar, pois estava muito mal, e não tinha muitas vezes nem o dinheiro para pegar ônibus para ir atrás das autoridades. Eu já cheguei a pedir à defensora pública dinheiro para poder voltar para casa, e paguei depois.

Até hoje, eu não tenho condições financeiras de ajudar as mães, por exemplo, com os gastos de deslocamento pra que elas possam ir pros encontros ou pras outras ações. Mas tenho muita disposição. Tenho a minha indignação, que não me deixa parar. E tenho a minha voz, tenho como ir atrás do que for necessário pra gente seguir.

A minha luta é essa: eu gostaria que um dia não houvesse mais Marias desesperadas diante de um filho assassinado, né? Que não houvesse mais Thiagos. Mas, infelizmente, toda hora tem uma Maria recebendo a notícia desesperadora que eu recebi, a todo momento tem um Thiago passando o que o meu passou e perdendo a vida daquele jeito tão sem dignidade. 

Mas tem uma coisa: quando a gente se encontra e decide que não vamos aceitar o que nos fizeram e que vamos fazer alguma coisa juntas, muda muito, porque a dor não é mais solitária. Quando o filho de uma de nós é torturado ou morto, é como se todas nós vivêssemos aquilo junto com ela. Dói no coração de todas nós. Por isso é que ajuda muito ter outras mulheres junto da gente: outras mulheres que sabem do desespero que é passar por isso. Uma puxa a outra pra luta e uma dá força quando a outra desanima.  Sem isso, é como eu estava lá no começo: parece que a gente está gritando para o vazio, ou para o Estado, que é um gigante que não está nem aí. 

Eu, no meu desespero depois que o Thiago morreu, queria encontrar outras mulheres que tivessem passado por aquilo e se indignado como eu. Comecei a pesquisar na internet e encontrei grupos de mulheres que perderam os filhos por diversas formas de negligência e violência do Estado. Então, eu fui entrando nesses grupos, porque neles a gente é ouvida, nós não somos crucificadas. Foi assim que eu conheci o Mães de Maio.

Eu também comecei colocar a minha história na minha página pessoal do Facebook. Aí, teve gente que falou comigo: “para de ficar remexendo nisso, deixa seu filho descansar”. Todas nós  ouvimos isso pelo caminho. Coisas do tipo: “Se você não parar o seu filho não descansa, deixa ele descansar em paz”. Eu acho o contrário: o que deixa a gente em paz é saber que houve justiça. Eu sei a paz que estou buscando pro meu filho.

Então, pesquisando desesperadamente e entrando em tudo o que era grupo, encontrei o Mães de Maio e fui acolhida pela Débora Silva, que é uma das fundadoras. Aí, a Débora me convidou a ir a um ato que o movimento ia fazer em São Paulo no dia 15 de maio de 2015. Foi lá que eu dei o meu grito; meu grito de revolta e sofrimento; meu grito que falava do que tinha acontecido comigo. Esse grito estava travado na minha garganta.

O Estado de Minas Gerais é responsável pela morte do meu filho, mas até aquele dia eu não tinha conseguido dar o meu primeiro grito de indignação contra o Estado de Minas Gerais. Fui conseguir fazer isso só em São Paulo, embora tenha desejado demais que isso pudesse ter acontecido aqui em Belo Horizonte. Eu achava que gritar pelo meu filho ali, numa situação em que as pessoas não me conheciam, não ia fazer muito efeito, que as pessoas nem iam ligar. Mas graças a Deus São Paulo pára para ouvir as mães. Nós estávamos na Praça da Sé, nas escadarias daquela igreja do centro, e o povo pára, o povo pára, as pessoas são tocadas. E eu me senti abraçada por tantas pessoas… Cada abraço que eu recebia, eu sentia como se fosse um abraço dado pelo meu filho, em pleno centro de São Paulo.

Depois, nós seguimos numa caminhada muito louca por aquelas ruinhas todas apertadinhas de lá, e os ônibus e carros estavam todos parados. A gente tomou conta da avenida. Não era andando no cantinho, não, tomamos conta das ruas em torno da Praça da Sé, em plena sete da noite.

Então foi assim que eu pude dar o meu primeiro grito. Paramos o trânsito, mas só tinham lá cobrindo o jornal El País e algumas pessoas já aliadas do movimento. Não tinha nenhum dos grandes jornais. Mas o jornal El País fez uma grande reportagem. Na época eu não entendia, mas depois fui vendo que é assim mesmo, que não adianta esperar que a grande imprensa mostre as nossas ações. A gente vai cavando espaço aos poucos, mesmo.

Desde aquele dia em 2015, a Débora passou a me chamar para os atos e os encontros do Movimento Mães de Maio, e eu fui em todos. Eu já fui para o Rio de Janeiro; já fui para Goiânia, Brasília, Salvador. E eu via Belo Horizonte ficando pra trás na luta. Aí, quando aconteceu aquele encontro aqui em BH, em 2019, foi uma coisa muito bacana: eu me vi, aqui na cidade em que o Thiago foi morto, dentro de um movimento de mães, que estava nascendo naquele dia. Passei a acreditar que podia criar o Movimento Mães de Maio aqui, pois finalmente tive aqui um encontro com outras mulheres que tinham passado pelo que eu passei. Eu finalmente tinha encontrado outras mulheres! Desde aquele dia, nós choramos, nós cantamos, nós nos encontramos, nós comemos juntas, nós rimos… Também temos nossos momentos de conflito, outros em que ficamos meio paradas, até hoje ainda é muito difícil puxar outras mulheres pra lutarem junto conosco. Mas somos um grupo, e isso muda tudo.

Naquele dia 27 de maio de 2019, eu agradeci a Deus, porque da minha luta e da luta das outras mulheres que pegaram aquele microfone, nasceu a rede. 

Olha, se tiver atividade acontecendo e se a gente chama uma a uma, as mulheres vão. Ou ao menos fazem de tudo pra ir, ainda que nem sempre consigam. Nos encontros que a gente fez no Plug Minas em 2021, por exemplo, teve mulher que foi mesmo sem ter tempo, exausta depois de um dia de trabalho duro desde a madrugada, morrendo de sono. Mas elas vão porque faz muita falta e elas amam estar ali, onde temos o momento de descontração e conversa na hora do lanchinho, porque é só ali que a gente tem pra falar das nossas dores – ora chorando, ora rindo, ora fazendo as duas coisas juntas.

Mas não são todas que se sentem à vontade pra falar. Tem as mulheres que não gostam de falar sobre o que estão passando. Cada mulher é que sabe o que quer falar e qual é a hora de fazer isso. Acho que o papel de quem estar há mais tempo é convidá-las a falar, dizer pra elas que ali é pra gente se abrir, dar a elas essa segurança. Eu acho que faço muito esse papel na rede, e fico feliz por isso.

É isso: na Rede Mães de Luta, eu me vi no meio de um coletivo. Pensei: agora eu tenho colo, tenho alguém que vai me ouvir aqui onde a minha luta acontece. Agora, a minha luta em BH não fica mais só entre eu e o Estado, entre eu e a promotora. Eu já tinha outras pessoas que me davam apoio, teve gente que até me ajudou financeiramente a estar nos eventos fora de Minas. Mas faltava o principal: poder caminhar, aqui onde vivo, junto com as outras mulheres vítimas da violência do Estado, como eu. E faltava dar meu grito de guerra, junto com elas, nas avenidas, na Assembleia Legislativa, no tribunal.

Mas o nosso movimento aqui ainda é muito tímido. Eu quero gritar pros promotores, pros juízes, pros políticos. E a gente já fez isso em certos momentos. Foi muito bom, mas ainda não conseguimos juntar muita gente nas nossas manifestações. E eu acho que temos que buscar sempre chegar em mais gente. Em algumas vezes, eu penso que a gente grita só pra gente mesma.

E não pode, gente. Por isso é que a Ana Paula fala que ela, antes da Rede, estava calada, mas por dentro ela gritava. Ninguém merece aguentar isso em silêncio. E tem outras, que vão perdendo o filho aos poucos, na luta com a dependência química, com problemas de saúde mental, com o encarceramento. É como a Maria da Penha disse em um dos nossos encontros: tem mulher que vive o luto de um filho vivo.

Eu conheci a Maria da Penha num curso do Desencarcera. Ela estava num canto chorando, chorando, chorando… Aí pensei: tem que perguntar pra ela por que motivo ela está em prantos, vou lá. E naquela época eu já me sentia Mães de Maio, então eu me via ali como representante das Mães de Maio, e então para mim era o meu dever oferecer pra ela um ouvido e um ombro.

A Débora tinha me falado que eu tinha o papel de coordenadora das Mães de Maio aqui em Minas. Mas eu não me via nesse lugar, nem entendia direito o que isso significava. Mas eu entendia que era meu dever não deixar aquela colega sem acolher – e isso eu fazia. Eu estava aqui, indo em todos os lugares, não me calando, pronta para acolher outras mulheres. Eu também buscava outras mulheres, ficava sabendo de uma coisa ou outra (como uma vez em que vi uma notícia de jornal sobre as Mães que Choram e as vi por alto em um evento), mas não conseguia ir além disso. Mas eu insistia. Então, sem saber, e mesmo sem conseguir fazer o movimento crescer, eu estava lançando uma semente aqui. E demorou demais pra ela brotar, muitas vezes eu duvidei que a gente conseguiria articular algo, mas chegou uma hora em que a rede aconteceu.

Nossos encontros acabam sendo também um lugar de chorar porque a gente tem vontade de chorar em muitos outros momentos, mas simplesmente não pode. Se estou ao lado da minha mãe, por exemplo, sei que não posso pela saúde dela, pra não preocupá-la; já com os meus irmãos não tem espaço porque eles acham que eu deveria simplesmente aceitar: “segue a vida, supera isso; ele morreu, acabou”. Mas quando tudo vem à tona e um monte de angústias que a gente acumula se mistura, a vida se torna um pesadelo. E nessas horas a troca com outras mulheres como eu alivia muito.

Então, com a gente, é tanta emoção ao mesmo tempo que deve ter quem nos olhe e pense: “Essa mulherada é doida, né? Uma hora elas estão chorando, outra hora estão iradas, outras estão às gargalhadas”. Mas a gente precisa desse lugar em que possa extravasar. Porque nós não vamos trazer nossos mortos de volta, mas tem que existir espaço nesse mundo pra gente chorar e se desesperar por eles sem ser condenada por isso. E, exatamente porque a violência nos tomou pessoas amadas que não vão voltar, a gente tem que ser ouvida.

Mas é muito difícil. Uma amiga minha, uma vez, me disse que não podia conversar comigo sobre o meu filho porque tinha que ir olhar a cachorra dela que estava com um problema. Eu respeito e não quero que nenhum ser vivo sofra, mas achei muita falta de empatia.

E às vezes um abraço nos faz muita falta. E, muitas vezes, faz uma diferença enorme receber um abraço de alguém que só te acolhe, sem questionar, sem fazer julgamentos nem te dar conselho que você não pediu… Esse abraço é muito bom pra nós! Ajuda imensamente. 

Receber carinho e colo pra gente é importante porque vivemos um trauma enorme. Um trauma que é diferente, por exemplo, do que o de uma pessoa que perde um familiar por doença. É muito abrupto quando o seu filho sai de dentro de casa, perfeito, cheio de vida, falando que no dia 14 seria o dia do aniversário dele, mas ele estaria no presídio, então era pra eu pensar nele. E de repente, poucos dias depois, numa data que deveria ser de presentes e felicitações, o presente que me entregaram foi meu filho morto dentro de um caixão. Nem caixão tinha, porque o caixão é a família que tem que comprar. Eu recebi a notícia de que, no mesmo dia em que veio ao mundo, meu filho retornava para Deus. A dor de passar por isso ninguém consegue nem imaginar. Só mesmo quem passou por algo parecido.

Por isso, considero que é uma grande frieza das pessoas não quererem parar para nos ouvir. “Para de repetir, você já falou isso não sei quantas vezes”. Muitas vezes nos dizem isso: querem que a gente simplesmente aceite a morte como o fim, como se todo o amor, toda uma vida com aquele filho acabasse ali. Não acaba. Nunca acaba. Eu tenho  duas fotos do meu filho penduradas no meu quarto: uma do dia do casamento dele e uma outra em que ele tinha 15 anos e a minha irmã vestiu ele de italiano… Ele era filho de japonês, tinha os traços de japonês, e estava fofo com aquela boinazinha. Eu guardo as imagens e as lembranças dele. Ele teve e tem importância pra mim.

Hoje, nós já construímos uma rede de apoio entre nós na Rede Mães de Luta pra poder lidar com essas nossas dores. Mas eu acho que ainda falta muito pra se gritar. Por exemplo: em dezembro de 2021, nós fomos lá em frente ao Tribunal de Justiça levar o nosso grito, mas teve alguma resposta? Saiu alguém lá para conversar com a gente? Não! Ninguém veio perguntar por que estávamos ali protestando. A polícia chegou de imediato, porque eles ficam loucos quando veem que a favela desceu”. Rapidinho apareceram duas viaturas lá, e os policiais chegaram perguntando o que estava acontecendo… Mas o bom é que eles logo veem que é melhor nos deixar em paz. Naquele dia, tinha uma jornalista no meio, e pra saber do que estávamos falando bastava olhar para o chão: tinha a bandeira das Mães de Maio lá, eu coloquei a foto do Thiago em cima dela, tinha as bandeiras das Mães de Luta…

Todas as vezes que a gente ocupa os espaços com as nossas bandeiras, as fotos e o nosso grito, é especial. O evento da Assembleia Legislativa em que a gente lançou o projeto de lei pela criação da Semana Nacional das Vítimas de Violência do Estado em Minas foi um desses momentos especiais. Ali a gente viu que estava se fortalecendo: pra realizar aquela ação, foi necessário ter vários parceiros, e também o apoio de uma deputada estadual, a Andréia de Jesus. Eu acho que a gente precisa dessas coisa também, se quiser realizar ações que causem impacto. Então, vejo que vamos fazendo as coisas contando com aliados que são sim instituições e políticos, mas sem estar completamente ligado a esse lado mais formal da militância.

Enfim… voltando àquele dia, ali a gente abriu um espaço. Estava lá a elite, toda enfiada nos seus cantinhos, cada um no seu gabinete. Naquele lugar que não conhecíamos, que parecia um labirinto em que a branquitude ficava lá, toda sentadinha… Foram poucos os que tiveram coragem de chegar mais perto. Mas nenhum deles deixou de nos ver ou ouvir: as mulheres do Rio de Janeiro e a própria Débora colocaram fogo na gente, já chegaram puxando a gente pra gritar e cantar… E nós fomos entrando, passeando por dentro daqueles becos lá dos corredores dos gabinetes da Assembleia Legislativa. Fomos cantando, gritando, segurando as nossas bandeiras (cada uma pegava uma ponta), com as fotos…. Isso chamou a atenção, com certeza. Mas ningué, quer ir contra o Estado: ainda mais político e funcionário público que está num lugar confortável e tem seu salário pago por ele, não é? Por isso, ainda falta chão demais pra gente avançar. A gente denuncia coisas que são sequelas lá de trás, da escravidão no Brasil.

Então a gente tem que chegar ocupando e chamando a atenção. Porque é claro que existe preconceito, mas a frieza e a indiferença das pessoas são o que mais me dói. É como se elas falassem pra gente: “eu não me importo, me deixa quieta aqui no meu canto”. Mas eu não deixo. Eu quero incomodar. Quero incomodar o Ministério Público. Só de ir lá, marcar um encontro com o promotor ou a promotora responsável, ela me atender, eu já tiro as pessoas do conforto. E eles são funcionários públicos, têm que trabalhar pra todas nós. Têm que trabalhar. Então eu vou lá e incomodo mesmo – da última vez, fiquei umas duas horas lá. Eu ligo pra agendar e, às vezes, a resposta é “não posso te atender”. Aí eu digo: “mas vai ter que atender doutor, vai ter que atender, doutora, porque o meu caso está aí e eu preciso falar com você. E tem que ser pessoalmente, não quero falar por telefone”. E acaba que tem gente que fica tocado com a minha luta, tem gente que me diz: “é um prazer muito grande te atender, falar com você”.

Isso que eu estou falando de mim se aplica à Rede Mães de Luta: temos que incomodar. Mas temos que incomodar mais, com mais afinco. Como fazem as mulheres de São Paulo e do Rio: juntar com outros movimentos e ir para praça, fazer passeata… Tem que ir pra rua, sim! Uma vez, no Rio, participei de uma passeata que ocupou toda a pista. Em Salvador, ocupamos a praça, levamos até carro de som. Um juiz mandou tirar o carro de som da praça, mas continuamos lá. Silenciaram o carro, mas não nos silenciaram. 

Acredito que, como mineiras, somos mesmo mais tímidas, mas a gente aos poucos vai chamando a atenção. Por exemplo: o vestido que a gente costura com a Nina chama muito a atenção. Aquele vestido é uma história, aquele vestido é um livro… É um livro que a gente sempre está costurando, porque ele é feito com pedaços das nossas histórias, então temos um carinho muito grande em relação a ele.

E a Nina anda com aquele vestido para tudo quanto é lado, e vai falando daquilo tudo que está escrito ali. E ali tem é coisa, viu? Ali tem o que passamos escrito, ali tem lágrimas, ali tem dores. A gente se encontra pra bordar e, quando bordamos nele as nossas histórias, sentimos que cada pedacinho de pano ali é um lenço em que a gente limpa as lágrimas.

O vestido é então um imenso tecido cheio de pequenos registros de sofrimentos muito profundos, vividos por muitas mulheres. Mulheres que bordaram junto com a Nina cada frase que está naqueles pedaços de pano. A imagem dele em si e o tanto de sentimento e sofrimento acumulado que ele carrega fazem com que aquele vestido tenha uma força muito grande. Por isso, temos ido longe com ele, e onde vamos com ele nós somos notadas. As pessoas param, olham, leem, depois ficam meio chocadas olhando pra gente. Ele é um susto, uma sacudida, algo de que é muito difícil desviar. Por isso, eu acho aquele vestido maravilhoso pra nossa luta.

 ela vai chegar com aquele vestido não sei mas ele traz… as pessoas olham leem, ficam assim…olha para cara da gente.

Então, eu queria que esse vestido, junto com o nosso grupo, estivesse na Praça Sete e em tudo o que é praça. Eu acho que nossa mensagem precisa ser mais levada para a sociedade, porque a sociedade acha que um preso vive de papo pro ar, come, bebe, tem almoço, tem jantar, tem café da tarde, café da manhã… Acham que vida de preso é fácil e também não estão nem aí se não for. Não querem saber o que acontece lá dentro. Eu quero. Eu quis saber o tempo todo quando o meu filho ficou entrando e saindo de prisões horrorosas. Eu continuo querendo, porque sei muito bem que lá dentro não tem humanidade nenhuma, e isso a gente não pode aceitar.

Foi por isso que eu estive por três meses dentro de uma unidade prisional para o público LGBTQIA+ fazendo trabalho voluntário de cabeleireira e ensinando um pouco dessa profissão. Aquilo para mim foi tudo de bom: saber que eu podia fazer um pouco e dar um ombro para aquela pessoas. Elas também ficaram felizes e se sentiram valorizadas, pois a entidade que realizou a ação deu até certificado. Ao mesmo tempo em que foi muito bom poder estar ali com elas, ouvi histórias horríveis que tive que deixar ali. Tive que me obrigar a não falar nada. Porque, se eu abrisse a boca em relação ao que ouvi, no outro dia já não poderia entrar lá de novo. E eu sabia que, estar ali com elas, da forma como eu me coloquei lá dentro, é importante. Eu entrei com cabeleireira, eu dei o curso, então eu passei ali uma visão do que é ser cabeleireiro. Mas fiz outra coisa que também faz muita forma: fui com amor e pra ver amor nas pessoas. Elas me chamavam de mãezona…

Cada uma que eu atendi lá, dentro das celas, era um pouco como fazer a vida do meu filho valer. E eu penso que muitas outras poderiam ter esse tipo de experiência também, mas cada uma processa o luto de um jeito e muitas não aguentam: adoecem e morrem. Deus tem me dado uma força, que às vezes chega a ser sobrenatural mesmo, de tão grande que ela precisa ser, pra que eu não caia na depressão e siga em frente: pelo meu filho, por mim e pelas outras mulheres.

Então, eu não me permito cair. Muitas vezes, eu sinto muita vontade de só chorar – como agora… eu tô engasgada. Mas, quando me dão o microfone nas mãos, eu penso no quanto eu quero falar, em quantas coisas eu quero que mais pessoas saibam. Então, eu seguro o choro e grito, aproveito bem aquele espaço, aquele microfone. E eu não me permito cair porque, se eu cair, eu vou ficar lá no chão caída e não vou conseguir fazer nada. E com a minha luta, incomodando as pessoas do sistema de justiça, eu consigo gerar algumas respostas pro meu caso, e até mesmo pra outros casos.

Eu já incomodei muita gente… Já fui atrás de ouvidor, lá na Cidade Administrativa, e ele me atende numa boa. Olhou a questão do filho de uma das integrantes da nossa rede, que tem transtorno paranóide, mas foi preso em uma cela comum. Aí, ele verificou o que estava acontecendo no caso e se comprometeu em intervir. Você tem que ir futucando devagarinho… vai atrás de um, vai atrás de outro…

Foi assim também na Assembleia. Estive lá muitas e muitas vezes atrás de deputado e levando porta na cara, mas hoje com a rede a gente tem a Andréia, tem uma porta aberta.  

O respeito a gente vai construindo ao mesmo tempo em que leva muita pedrada. Eu fui chamada de vagabunda; me diziam: “tá com dó de bandido, leva pra você”. Já fui xingada de tudo o que é nome no Google. Mas eu sempre respondo tentando mostrar para quem me ofendeu que eu sou uma pessoa como ela – e uma pessoa que, como ela, também merece respeito e merece empatia.

A minha história é a história de uma mãe que tentou com todas as suas forças fazer tudo pelo filho, mas acabou perdendo esse filho, de forma muito cruel. E o Thiago também tinha uma história, que terminou muito cedo porque nunca ele teve uma oportunidade real de tratar a dependência química e reconstruir a vida. Começou com a dependência química cedo e, por isso, aos 17 anos já estava na Febem. E ninguém vê a luta de uma mãe para o filho não entrar pro socioeducativo. E ela luta porque ela sabe que, depois que o filho entra ali, é um caminho aberto para o presídio. Tem que olhar pra essas histórias antes de julgar e condenar.

Registrar a história num livro é registrar essa luta. Eu ficava em cima dele, de olho nas companhias, podei ele de muita coisa pra tentar evitar que ele se envolvesse com pessoas que poderiam levá-lo pro caminho da droga e do crime. Eu cheirava mão, cheirava roupa, cheirava bolso. Mas nunca peguei nada, até que descobri que ele estava naquele caminho da pior forma: quando ele foi parar na Febem.

Eu como mãe e pai ao mesmo tempo, lutei por ele desde que ele nasceu. Pra que ele pudesse estudar e pudesse sonhar. Ele queria ser jogador de futebol, e eu falava pra ele que tinha que ter os pés no chão também, que estudar. Ele fez um ensaio como modelo uma vez, pois era muito bonito, então eu achava que ele podia buscar alguma coisa ligada a mídia, olhava os testes pra ele. Mas ele só me respondia: “não, mamãe; eu não quero”. Ele nem ligava, porque aos 17 anos já estava com a cabeça virada. Então ele não pôde nem identificar o que queria ser na vida. Ele não teve esse tempo, ele não teve essa oportunidade nem de pensar no que ele queria ser na vida.

É desse lado da vida do meu filho e da minha vida que ninguém enxerga nem quer enxergar que eu falo em todos esses lugares em que vou. Contei essa história no livro “Memorial dos Nossos Filhos Vivos”, do Movimento Mães de Maio. Porque o livro pode chegar bem longe. Aonde a voz não chega, o livro chega.

No livro eu tento mostrar que, além de um caso de furtos, roubos e aprisionamentos, ali tunha uma pessoa, sabe? Porque parece que ninguém vê isso. Pelo furto de um celular, um juiz condenou ele a 3 anos 5 dias e 19 horas na prisão. Enquanto a gente sabe que tem assassino que, por ter dinheiro, consegue muitas vezes nem ir preso.

Eu fico me perguntando: será que o juiz que faz isso é ruim mesmo, é covarde? Porque não é possível que ele não veja o quanto aquela pena é desproporcional. Fico perguntando isso para mim mesma, porque que ele determinou tudo com um rigor enorme, sabe, a pena não dava ao meu filho nenhuma possibilidade que não fosse ficar totalmente aprisionado e isolado. Não: o Thiago era tratado como um marginal sem direito. Não estou dizendo que o meu filho não fez coisa errada, mas é como se ele não tivesse o direito de errar e, depois que errou, já era, deixou de ser gente, não merece chance nenhuma de tentar mudar.

Uma vez, numa audiência em que me permitiram entrar, o juiz perguntou para o policial: “você se lembra dessa pessoa?”. E ele respondeu: “Não. São tantos casos nos dias, no dia, no mês, que a gente não lembra.” É contra isso que eu luto. É por isso que eu levo a foto do meu filho aonde eu vou. Mesmo que às vezes eu cubra o rosto dele, por medo de alguma represália prejudicar o processo do Thiago, eu sempre levo a foto, sempre.

E tem hora que eu rodo a baiana. Como uma vez que o atual Deputado Sargento Rodrigues veio me dizer que eu não podia falar num evento político em que eu fui, aí na hora eu abri a minha pasta, levantei e mostrei as folhas que têm as fotos do Thiago pendurado naquela corda, todo destruído. Uma amiga minha disse que todo mundo ficou chocado, calado, e aí eu gritei, falei tudo o que me acontecia.

Eu grito, eu ocupo os espaços, eu rodo a baiana. Quando eu mal começo a falar e o evento tem tempo contado e eles me cortam, dizendo que acabou o meu tempo, eu digo: “Não acabou, não. Estou só começando, e não vou parar. Quando é político pedindo voto, eles ficam horas ali em cima da gente. Então, vão ter que ouvir a minha história. Não me calam, não. Só fico calada se eu não tiver lugar para falar,. Porque, se eu tiver lugar para falar, não me calam não. Só se me tirar de lá algemada. Algemada é pouco: só se me amordaçar.

Eu falo porque, através de nós, nossos mortos falam. O meu morto não fala, mas estou aqui por ele com a minha voz. E eu insisto que o corpo de um morto fala – ouvi isso uma vez de um agente –, porque nele ficam as marcas que mostram se ele sofreu violência, se a cena da morte foi forjada. Isso o corpo fala, e eles tentam de todo jeito esconder, maquiar – tentam calar até mesmo isso, que é a última coisa que aquele corpo pôde dizer. Por isso eu mostro foto, falo do quanto a cena do suicídio do meu filho parece ter sido forjada. E, quando morreu, ele estava sob custódia do Estado.

Por isso a gente usa muito a frase “nossos mortos têm voz”: através de nós, mães, eles passam a ter voz. O Thiago não vai falar, mas a mãe do Tiago vai. Tenho essa responsabilidade, já que o meu filho não teve tempo de falar, não deram tempo para ele falar. Então hoje eu sou a voz do meu Thiago.

E quando a gente passa a militar, a gente é a voz de outras mulheres também, e insiste para que as outras falem, quando estão constrangidas ou sentem medo. Porque a gente, que é pobre, não vê os direitos humanos acontecendo. E, se tem caso reaberto, investigado, se tem alguma coisa sendo feita é porque alguém que se importava foi lá e denunciou, correu atrás, incomodou.

É muito triste o modo como a coisa funciona. O Luiz Antônio, que denunciou que o meu filho foi assassinado, foi morto depois numa prisão em Vespasiano, para a qual havia sido transferido. Ninguém se importou com o risco que ele estava correndo por ter denunciado. Deixaram o menino ser transferido para Vespasiano, e lá em Vespasiano eles o mataram. E eu, que estava atrás desse menino por ele ter sido transferido, descobri isso por acaso, no meio de um curso dentro ali da Casa dos Direitos Humanos, na Praça Sete. Eu falei do caso e alguém comentou: “mas esse Luiz Antônio já morreu”. Ninguém quis saber da morte do Luís Antônio, deixaram ele morrer daquele jeito.

A gente também fica tentando dar um outro recado, que é: antes de aprisionar alguém, vamos dar oportunidade de estudo, de lazer, de educação. E ao invés de só mostrar o caminho da cadeia, vamos tentar dar oportunidade pra esses meninos terem outras escolhas na vida, vamos abrir portas de emprego. O filho de uma das mulheres na Rede é um exemplo do quanto ninguém do sistema de justiça liga. Ele tem um problema psiquiátrico e, quando está em surto, rouba celular, desodorante no supermercado, pão na padaria. Sai a esmo furtando as coisas. Da última vez, ele tentou sair carregando um colchão pela porta de uma loja. Olha se isso é coisa de uma pessoa que está em seu estado normal, você carregar um colchão na cabeça! Mas não. Ele é tratado como um criminoso qualquer. Agora mesmo ele está preso, e a mãe dele fica destruída, pois sabe que não adianta tentar tirar ele de lá, pois a vida dele é sair da prisão e voltar uns dias depois. Há tempos ela tenta conseguir tratamento pra ele, agora mesmo ela está pedindo isso no hospital Raul Soares. Mas o máximo que já fizeram foi levar ele pra Barbacena, pra cidade de doido, e mesmo assim com os dias soltaram o menino de madrugada, no meio da rua.

Mas a gente segue ocupando os espaços aqui em BH… mesmo que nos nossos atos não tenham a cobertura de grandes emissoras, como a Record nem da Globo – elas gostam de cobrir é quando tem crime, quando tem assassinato violento, feminicídio. E isso é totalmente o oposto do que nós precisamos.

No caso do Thiago, por exemplo. Quando aconteceu, tinha jornalista lá, foram atrás de mim no cemitério… Mas depois, por mais que eu procure a mídia, ela nunca tem interesse em acompanhar, eu ligo direto e nunca rende nada. Acho que, pra eles, é igual pra sociedade. de modo geral: é só mais um bandido que morreu, ninguém pensa que morreu uma pessoa: o filho da Maria do Carmo. Tem até uma frase que costumam usar pra falar desses jovens que morrem: graças a Deus, foi embora mais um bandido, baixou mais um CPF. Um dia eu liguei pra confrontar um desses radialistas que ficam repetindo “bandido bom é bandido morto” e outras coisas horrorosas. Aí ele me disse: “não fala assim comigo que eu sou advogado”. E eu disse: olha, você está no ar, então eu não estou perguntando o que você é não, eu tô te procurando como jornalista, como uma pessoa que devia ter alguma responsabilidade quando pega o microfone. Você falou aí que é bom que mate bandido, que o ar que o bandido respira te faz falta. Olha, por trás desse fulano tem uma mãe que não queria que o filho estivesse nessa situação, respeita ao menos essa mãe.

Uma vez, um desses ditos jornalistas, e que inclusive é político, me chamou pro programa dele. Ele convidou eu e uma pessoa da polícia cheia de patente. Provavelmente para me intimidar. Aí eu repeti algo parecido pra ele: “sabe, quando você fala que bandido bom é bandido morto, por trás do seu rádio aí tem uma mãe que chora, uma mãe que gostaria de ver o filho ali no seu lugar trabalando, uma mãe que gostaria de ver o filho na faculdade”… Mas a gente no máximo deixa eles constrangidos. Nunca dá em nada, fica por isso mesmo. É como se fosse normal eles falarem as coisas absurdas que falam.

Então, muitas vezes eu penso que eu não vou ver o resultado de nada do que estou buscando…. Mas pode ser que a minha neta veja. Que a filha do Thiago veja.

Criamos a bandeira das Mães de Maio Minas para marcar a nossa presença em tudo o que é canto. Sigo então levando a minha bandeira pra todo lado. Ela fala o que eu às vezes não posso dizer, ou não consigo traduzir em palavras. Mas é só olhar pra ela, não precisa nem abrir a boca. Mas quando alguém pergunta o que ela significa, eu explico: “na nossa bandeira, o símbolo da bandeira de Minas Gerais aparece jorrando sangue, porque aqui e no Brasil todo há jovens sendo assassinados pelo Estado o tempo todo. Na trilha desse sangue derramado, tem uma uma mãe desesperada e indignada diante da cela em que o filho está isolado da sociedade. É essa a nossa realidade”. Acho que essa imagem da bandeira comunica o que a gente passa. Então, temos uma menor, branca, que tem 2m2, que a gente estende no chão, durante os atos. E tem outra, menor, que é preta, que a gente carrega nas caminhadas, pendura nos lugares. E temos uma camiseta que tem a mesma imagem.

Então, a gente segue chorando e gritando. Porque até que uma mulher que passa o que eu passei consegue dar o seu grito, ela vive como se tivesse alguma coisa entalada na garganta. Até ela conseguir se juntar com outras mulheres e levar o grito pra rua, é como se passasse a vida conversando baixinho e agoniada, sabendo que chega só em três ou quatro pessoas. É diferente quando você vai pra rua junto com as suas companheiras, e então grita. Sai um grito lá do útero, lá da alma; parece até que todo mundo ouve. É uma coisa que não dá pra explicar, você sente que não é mais só vítima: você tem uma voz que grita pro mundo ouvir. Quando fui ao primeiro evento das Mães de Maio, em São Paulo, em 2015, primeiro entrei em pânico, diante daquela multidão, depois me deram o microfone e eu gritei e falei com tanta emoção que, no final, passei mal. Eu desfaleci, as pessoas tiveram que me amparar. Mas passei mal de emoção, porque é forte demais, você leva um choque…

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