Hélio Douglas

Participar da atividade coletiva de criação do conceito e de imagens da campanha Juventudes Contra Violência foi uma experiência com uma carga afetiva enorme. Foi o tipo de experiência de vida que a gente nunca esquece. Então, não me lembro dos acontecimentos exatos daquele momento, mas lembro da relação que eu criei com aquela construção. Eu não sei se na época eu tinha consciência de tudo o que estava em jogo ali (provavelmente não), mas foi muito legal, foi intenso, tinha alguma coisa que a gente sentia que precisava falar.

Foi uma construção muito interessante porque misturou um processo artístico, referências das nossas próprias vidas, trocas com outros jovens, e conversas sobre temas fundamentais, como invisibilidade, violências, preconceito e racismo. No processo, eu pude olhar para sofrimentos que eu vivi e vivo de um outro ângulo, e assim fazer associações que até então não eram tão diretas pra mim. Como, por exemplo, pensar: olha, aquilo que eu sofri foi por conta do racismo. Isso foi especial: ali, naquele processo, eu pude e tive que olhar para a minha experiência de vida – a minha identidade –, porque era a partir dela que todo o processo criativo se desenrolava, e criar algo novo a partir da minha realidade de vida, ressignificando um tanto de coisa no meio do caminho.

Primeiro, fizemos fotos dos nossos rostos e depois xerocamos as fotos. E conversamos muito sobre o que fazer com aquelas imagens. Foi um momento de muita escuta, todo mundo teve espaço pra falar das suas experiências, a gente dialogou bastante. E, no fim das contas, o que escolhemos foi detonar com as nossas fotos, com as nossas imagens. A gente não tinha a visão da campanha toda, mas tínhamos um impulso mesmo de colocar nas imagens dos nossos rostos alguma coisa que tivesse a ver com destruição, detonação… Porque direitos das juventudes – que era o nosso tema – era uma coisa que não conhecíamos; conhecíamos só pelo lado negativo, pelo que é negado pro jovem negro pobre.

Eu coloquei um papel vegetal por cima da minha foto, lixei, amassei, cortei, furei. Eu queria que fosse a imagem de um rosto invisível. Queria que quem olhasse conseguisse ver que ali tinha uma pessoa, mas não conseguisse ver que pessoa era aquela. E que visse sofrimento e violência, que desse pra ver que aquele rosto tinha sido machucado. Acho que o que eu queria era mostrar um ser humano desumanizado. Porque a gente é desumanizado o tempo todo. A gente sofre uma agressão que é existir, mas não de uma forma humanizada.

Eu, como homem negro, sei que sou como o personagem ruim da história, já de cara. E a vida desse personagem vale menos que as outras. Hoje eu vejo isso muito bem, tenho uma consciência que naquela época da campanha eu ainda não tinha, mas que estava aflorando muito ali naquele processo. Eu não tinha tanta consciência das violências que sofria o tempo todo por causa do racismo. Isso acontece com muitos de nós. A gente é criado pra não identificar as violências que sofre. Então, naquela época, eu não percebia várias coisas, mas tinha um incômodo, uma revolta. Sabia que existia uma injustiça, que os direitos não valiam do mesmo jeito pra todo mundo e que pra mim é que eles não valiam mesmo.

Acho que aqueles encontros pra criar a campanha foram uma sacudida na gente. Fazer aquelas imagens mexeu com todo mundo. Fazer tantas coisas violentas com a sua própria imagem é muito forte, tem que causar alguma coisa em você. E acredito, sem exagero, que um monte de coisa que a gente engolia, deixava passar, ia levando, apareceram ali enquanto detonávamos nossas imagens. E isso foi importante pra nossa formação política, mesmo. 

Olhando pra minha foto daquele momento, vejo que eu tinha o cabelo alisado, que ainda não tinha feito a transição capilar. Mas eu vejo também que eu já reconhecia que estava sendo apagado, amassado, ferido, que daquele jeito não dava. Por isso foi intenso. Por isso eu fiquei com aquilo tudo na cabeça por um tempão. Até levei a minha produção pra casa. 

Outra coisa que acredito é que foi uma experiência de me ver de um jeito mais profundo, mais real – ao mexer na minha imagem. Foi um olhar diferente pra mim mesmo. Foi uma experiência de me ver sem ser no lugar da selfie.

E o que ficou marcado pra mim foi a imagem. A palavra de cada cartaz – a minha era “expressão” – não foi escolhida no momento de criação da imagem. Foi pensada depois, a partir de um brainstorming que fizemos todos juntos. Então, acho que aquele conjunto de palavras – e não cada uma – tem a ver com o que pensamos e conversamos.

Também não foi durante a atividade com as imagens e palavras que saiu a ideia do uso da carteira de identidade como símbolo da campanha. Mas eu acho que foi uma escolha muito legal, porque parece que ela tem a ver com um reconhecimento da identidade do jovem e de que essa identidade não pode ser violentada. E esse símbolo da identidade é muito forte – porque, pra mim, se a gente consegue reconhecer a identidade, a gente humaniza de novo.

Por outro lado, essa identidade tradicional – a da carteira – não é a nossa realidade. É um personagem formatado que está ali. E ele não é o jovem real – ele é menos o jovem da vida real do que qualquer outra coisa. Com as fotos detonadas, a gente criou um personagem que era muito mais real do que o da foto 3X4 da carteira de identidade tradicional. Uma imagem muito expressiva.

Criamos uma imagem que sofreu uma violência, a imagem de alguém violado e esquecido. Penso muito que violência tem a ver com memória, cada imagem daquela mostra, nela mesma, algo / alguém que está se perdendo ali, e que não vai ser lembrado depois.

As outras imagens, criadas pelos outros jovens, também são muito fortes. Tem a foto do cartaz Diferença, que mostra uma mulher que a gente quase não vê, uma mulher numa situação de perda, de apagamento da identidade. Já a imagem do cartaz Dignidade mexe demais comigo, porque ali a violência é escancarada, é física. São duas violências muito cruéis: a que deixa invisível e a que marca o corpo.

O que a campanha fez foi voltar o olhar para o jovem brasileiro de carne e osso. Existe uma imagem muito fantasiosa. A sociedade acha que a juventude é um lugar perfeito, todo mundo quer ser jovem, mas a juventude da ficção não tem nada a ver com a dureza da vida da maior parte dos jovens. Ninguém olha pra essa juventude cheia de sofrimento, ninguém enxerga o que a gente passa. Então, as pessoas têm que olhar de novo. E lidar com isso. A campanha fala assim: a gente tá vivendo uma realidade horrorosa. Presta atenção nisso. Prestou? Então, o que é que a gente vai fazer pra mudar?

E eu acho essa campanha diferente de várias outras, que têm a intenção de vender uma ideia prontinha, bem embalada. Essa campanha não tem imagem bonita, ela é mais como uma porrada. Eu acho que, por conta disso, ela é mais política. Se as pessoas estão pouco se lixando em relação ao que um adolescente que se envolve com o crime passa, se elas acham que é só reduzir a maioridade penal e pronto, tem alguma coisa muito errada. Falar com elas de um jeito suave nunca vai funcionar. Tem que jogar na cara o que está podre, tem que deixá-las com aflição, com nojo, com alguma coisa. Se as pessoas não conseguem / não querem enxergar que os meninos do socioeducativo são crianças; se não conseguem enxergar tantas pessoas, elas precisam se deparar com alguma imagem da qual não dê pra fugir. Acho que aquelas imagens de rostos violados tentam fazer isso.

jovens e mães
contra o
genocídio
da juventude
negra