Elizete Marques
Meu nome é Elizete Marques. No dia 7 de maio de 2012 às 18h, eu tive uma perda muito grande: tive um filho assassinado. Diante daquela dor, assim que ele foi enterrado, algo tocou meu coração. Foi aí que eu fundei o grupo “Mães que choram”, porque eu entendi que a minha dor não podia ser inútil, que ela tinha uma razão, e eu não queria que outra mãe passasse pelo que eu estava passando.
Antes da morte dele, eu já fazia uma ação social aqui no bairro. É que eu sou pastora – sou uma pessoa que prega a palavra de Deus – e sempre busco fazer um trabalho de aconselhamento e de ajuda às pessoas mais necessitadas aqui do Paulo VI. Então, tínhamos o grupo “Eis-me aqui”, e nos reuníamos para falar dos problemas da nossa região, em que têm morrido cada vez mais jovens. O grupo acompanhava e apoiava famílias do bairro, buscando itens básicos como alimento e apoio psicológico para os que tinham problemas graves de saúde mental. Nosso público eram principalmente famílias que tinham filhos presos.
Eu soube que o jovem que matou o meu filho era meu vizinho e que era um jovem que eu acompanhava. Eu tentava apoiar a família dele, pois ele tinha passagens pela prisão. No dia seguinte à morte do meu filho, minha cunhada viu um grande número de policiais na casa dos meus vizinhos para prender aquele rapaz. Quando ela me contou sobre aquela cena, o que mais me tocou foi ver a mãe, no portão, chorando. Naquele momento, eu entendi que não poderia culpá-la e que todas choramos pela mesma dor, que vem da violência sem fim que existe no local em que vivemos. Então, eu não senti ódio dela, mas misericórdia. Ali eu entendi que temos que agir contra o que destrói as nossas vidas, ao invés de ficarmos culpando a nós mesmas e à nossa juventude.
Então, no mesmo dia em que o meu filho foi sepultado, eu estava erguida no meu coração e já buscando dar ao grupo o propósito de agir para ajudar as mães a não passarem por aquilo que eu estava passando: enterrar um filho com 23 anos. E, logo em seguida, pensando na minha situação e na daquela outra mãe – a mãe do assassino do meu filho , propus que mudássemos o nome do nosso grupo para Mães que Choram”. Eu não fiquei em casa chorando pelo luto do meu filho. Imediatamente, decidi lutar. Foi assim que nasceu o nosso grupo.
Fui atrás das mulheres que eu sabia que estavam enfrentando coisas parecidas com as que eu estava vivenciando. Eu dizia pra elas que a solução não era se encher de remédio, não era ceder à depressão e afundar naquilo. Falava que a morte dos nossos filhos tinha que ter algum sentido, e que isso dependia de cada uma reagir àquela situação. Conseguir que essas mães participem é difícil, porque elas sentem muita culpa e vergonha, mas eu nunca parei de tentar. E elas foram chegando, aos poucos.
Comecei com as mulheres, mas depois apareceram pais querendo participar, surgiram vários jovens para me apoiar, como o Acácio, o Josehp e o Marcos. Os jovens têm um papel muito importante, pois nos auxiliam muito a fazer com os adolescentes num trabalho preventivo em relação às drogas.
Tem muitas dores e muitas tragédias nas famílias da nossa região. Muito sofrimento que está ligado ao fato de que a maioria das pessoas que vive aqui é negra e é pobre. Então, eu vejo que as drogas e a criminalidade, que estão por trás de tantas tragédias aqui na nossa comunidade, não são à toa. Tudo está ligado ao nosso lugar na sociedade.
Nossa sociedade não permite que as crianças e os adolescentes das nossas comunidades sonhem. Ela discrimina essas crianças e esses adolescentes – a maioria desses, negros –, pois quem vive na periferia e tem determinada cor de pele nem é visto como gente, direito. Então, no Mães que Choram, combatemos isso incentivando todo mundo a sonhar. Sonhar é direito de todo mundo.
A discriminação também é muito pesada quando o jovem entra no caminho do crime: é como se ele só fosse bandido e mais nada, é como se a mãe fosse bandida, como se a família toda fosse criminosa. E quando uma mãe resolve correr atrás dos direitos do filho, vai cobrar qualquer coisa do Estado, ela é muito mal atendida, é humilhada. O caso do filho dela, muitas vezes, está todo errado, já era para o filho ter sido solto há muito tempo. Mas ela não tem um advogado, não entende nada de burocracia, não sabe dos direitos que tem. Quando essa mãe vai ao presídio visitar o filho, é muito maltratada na fila daquele presídio. A gente tenta atuar nessas coisas, dando orientação e buscando atendimento jurídico. Eu mesma enfrentei grosseria e desrespeito no julgamento do meu filho. Isso está errado. Nós merecemos respeito
No grupo, oferecemos cursos de artesanato para mulheres, oficinas de arte e de esporte para as crianças. Sempre com muita dificuldade, pois não temos nenhum apoio político ou religioso. É que o grupo não defende nenhuma causa política e nem religiosa. Só queremos apoiar as famílias. Pra conseguir fazer isso, aceitamos ajuda de onde ela vier. Então, qualquer pessoa que se aproxima e oferece alguma ajuda que possa beneficiar as famílias, nós aceitamos.
Nós temos, por exemplo, a ajuda de psicólogos e advogados, que são duas coisas muito necessárias pra nós. São voluntários, então o apoio deles acaba acontecendo por um período, e depois eles se vão. Mas é assim mesmo: uns vêm, outros vão, e assim nós vamos levando o grupo, mesmo que seja com muita dificuldade. Em algumas vezes, eu recebo aqui a demanda de uma mãe por um atendimento para alguma coisa relacionada ao filho dela e, se eu não tenho nenhum voluntário para atender naquele momento, corro atrás de instituições que ofereçam aquele apoio gratuitamente. E assim a gente vai levando.
Uma das atividades que realizamos, com o apoio de psicólogos e psicólogas, são encontros de terapia comunitária. Eles são importantes, principalmente para as mulheres, porque todas elas passam por muitos problemas, têm uma vida difícil demais. Algumas estão com filho preso, algumas perderam o filho, muitas estão lutando desesperadas para que os filhos não sigam o caminho da droga e do crime, que tem um apelo muito grande para eles, aqui. Porque aqui falta tudo para eles: escola, atividade cultural, esporte, diversão sadia. Além disso, tem muita pobreza. Com isso, eles acabam atraídos por esses caminhos que geralmente têm um fim trágico, que acaba com as famílias.
Trabalhamos muito nesse sentido: tentamos, no diálogo com as mulheres, mostrar que elas não têm culpa. Nem elas, nem os jovens. Depois, fazemos um trabalho de conscientização com as famílias e com a comunidade. É muito importante fazer isso porque todo mundo, inclusive eles próprios, culpam a mulher e o jovem pelas situações que envolvem droga e crime. E a gente fala dos problemas que são da nossa sociedade, que nos discrimina e nos oferece tão poucas oportunidades.
Nossos encontros, que costumam ser de mulheres, são sempre em roda. E a roda é muito aquele lugar onde choramos juntas, sabe? Porque tem coisa que deixa aquela mulher tão desesperada, desestrutura tanto a família dela, que ela vive com o peito apertado, então tem que chorar. No grupo, vamos falamos das nossas vidas, das dificuldades, e quase todas choram: seja ao contar a própria história, seja ao ouvir a história da colega. Poder chorar, ter espaço pra chorar, é importante.
Nas rodas que fazemos, várias mães contam seus problemas familiares (alcoolismo, drogas, violência, desemprego, fome). E o grupo tenta ajudá-la a buscar em soluções. Um exemplo muito comum que acontece é o seguinte: uma família tem um jovem que se torna usuário de drogas. Ao perceber isso, a mãe já começa a se culpar: ela começa a achar que é responsável por aquilo que está acontecendo com aquele filho dela. E isso já gera um sofrimento, porque geralmente ela tem outros filhos e eles cobram dela atenção, começam a achar que ela está privilegiando o filho que está passando por aquilo.
E a situação dessa mulher só piora, porque geralmente ela entra em desespero e faz de tudo pra tirar o filho daquela vida, pois ela sabe que com a droga só virão coisas horríveis pra dele. E aí o que acontece? Isso acaba revoltando os outros irmãos. Além disso, dificilmente o pai, se é que ele está presente, apoia. Muitas vezes, o pai renega e quer distância daquele filho. E como fica aquela mãe? Não tem como não sentir muita tristeza, desespero e revolta, pois ela fica totalmente perdida no meio daquela situação!
A partir do desespero, essa mulher começa a entrar em depressão. Muitas delas pesam até em suicídio, pois não sabem mais o que fazer. E, quando nós nos reunimos e ela vê que está diante de outras mães com o mesmo problema, ela começa a se fortalecer. Começa a ver que o problema não partiu dela; que o problema não é uma falha dela, e sim uma falha da sociedade, que muitas vezes leva o nossos jovens para esse caminho. E ela começa então a enxergar uma luz no fim do túnel.
Nossas rodas são, então, esse momento no qual ninguém vai ter vergonha de ninguém, porque estamos todas na mesma situação, a mulher que está ali não se sente pior que ninguém. É assim que uma vai fortalecendo a outra: elas vão vendo que têm os mesmos problemas, e passam a buscar juntas as soluções para as famílias delas. É assim comigo também, desde o início. Assim, nós vamos nos firmando umas nas outras.
Nos próprios encontros, aparecem necessidades que elas têm, até mesmo para se reerguerem: “estou precisando de um advogado”; “preciso de um tratamento para o meu filho”; “preciso conseguir algum dinheiro, pois a minha família está passando por necessidade”. Também acontece de muitas mães me procurarem pessoalmente com esse tipo de pedido. Aí, eu vou atrás dos nossos aliados e tento os atendimentos de que elas precisam. Para a questão da renda, eu vou muito pelo caminho de elas fazerem comigo artesanato, costura – porque eu já trabalho com essas coisas há muito tempo. Às vezes, a gente realiza eventos de lazer pras crianças e coloca alguns produtos à venda, e eu tento cavar espaço pra vender em outros lugares. Vamos fazendo todas as tentativas possíveis para ir além da roda, para apoiar aquela mulher na caminhada, pois é um caminho lotado de pedras.
Temos esse propósito mas, como eu disse, o grupo sobrevive, mas passa muitas dificuldades. Uma delas é a questão do espaço físico. Toda hora, estamos pedindo espaço para as nossas atividades. Já fizemos oficina em escola, mas estava dando conflito dos nossos horários com os horários de aula. Já estivemos em muitos lugares, mas o espaço é sempre emprestado. Hoje, estamos na escolinha Oficina do Saber, que é um espaço temporário, cedido por uma grande parceira nossa. O espaço é aberto, e isso dificulta muito as atividades quando está frio ou chovendo…
A realidade é que nós não temos um lugar adequado para atendimento dos adolescentes, das famílias e das crianças. E aqui na comunidade nós temos crianças com problemas de adultos, e que precisam da oportunidade de voltar a ser criança.
Então, a nossa luta maior é por espaço, mas também faltam verbas para comprar os materiais das oficinas. E é muito difícil conseguir apoio – sejam doações de materiais, dinheiro, voluntários. Sempre estamos pedindo ajuda em vários lugares e dificilmente a gente consegue verba para a compra dos matérias, ou os outros apoios de que necessitamos.
Mas já realizamos muitas coisas: cursos profissionalizantes; aulas de ginástica, balé, violão, pintura, capoeira… Todas foram surgindo a partir da oferta de profissionais voluntários, que abrem essas possibilidades para a comunidade. Nos cursos e nas oficinas, as pessoas têm uma atividade que pode ser divertida, diferente da rotina a que estão acostumadas e, muitas vezes, aprendem ali uma forma de ganhar um dinheiro pra ajudar nas despesas da casa.
Tentamos então oferecer esse tipo de atividade o máximo de vezes possível, para a maior quantidade de pessoas possível. Mas, atualmente, para que elas aconteçam, somos nós que arcamos com tudo. Quando eu digo nós, aqui, estou falando do pequeno grupo de mulheres que são as mais participativas no grupo e dos voluntários, que várias vezes tiram dinheiro de seus bolsos pra comprar os materiais e poder oferecer as atividades para as famílias.grande
Afinal, nós não podemos pedir que a mulher doe esses materiais. Quando ela está muito ferida, ela não quer saber de nada, ela não tem interesse em nada. O nosso foco é buscar que essa pessoa sinta vontade de viver, que volte a sentir prazer pela vida. Não dá pra pedir pra ela nenhuma ajuda, até que ela volte a sentir vontade de viver, até que sinta algum prazer pela vida.
Temos consciência de que, para fortalecer o grupo e conseguir os parceiros dos quais tanto precisamos, temos que melhorar a nossa comunicação, nos tornando mais conhecidas. Uma pessoa que tem nos ajudado muito nisso é a Sheila, que é repórter e faz a divulgação do grupo nas redes sociais. Com isso, aos pouquinhos, os parceiros vão chegando….
Foi pela Sheila que chegamos à Rede Mães de Luta, que reúne grupos, daqui de Belo Horizonte mas também de outras cidades e estados, que são como o Mães que Choram. Nós temos tentado estar nas atividades dessa rede, principalmente com a participação da Sheila, mas pra nós é muito difícil, pois a realidade da nossa região piorou muito nos últimos anos, então nosso grupo tem dificuldade até pra seguir em frente. Mas a Sheila nos traz muita coisa que aprende nas atividades de que participa. Eu vejo que estar nessa rede leva a nossa experiência para outras mulheres e traz várias experiências pra gente ter contato. Com isso, todo mundo cresce.
Temos uma identificação muito grande com essa rede, porque ela também quer que a sociedade veja o pranto e o desespero das mães e pare de culpar a juventude e as mães por essa tragédia que se tornou a questão do crime e do tráfico nas periferias. Nós também acreditamos que sensibilizar, que mostrar as nossas lágrimas, é o caminho para chamar a atenção da sociedade para a nossa luta.
Queremos muito que as pessoas conheçam e entendam o nosso nome e o nosso lema, que é “Existe justiça? Onde está?”. O nome foi escolhido porque somos todas mães que choram: as que perderam os filhos assassinados como eu, as que ainda têm os filhos envolvidos em situações de risco, as que estão com seus filhos presos, as mães dos policiais que também correm riscos todos os dias. Todas choramos, de jeitos diferentes, por nossos filhos. E essa dor nos faz lutar, buscar juntas meios de mudar essa realidade de violência. Temos que mostrar às mães da nossa comunidade que podemos transformar nossa dor em apoio, em solidariedade, em mudanças… Não precisamos sofrer sozinhas: podemos mudar nossa história e também as de outras mães.
Já o nosso lema mostra a nossa situação, bem escancarada. A situação de mães que buscam para os filhos e para elas apenas o que seria justo, mas que nunca conseguem. Essas mães não sabem onde a justiça está, pois a justiça nunca foi acessível para elas.
Veja os direitos que elas buscam para os filhos: direito a se alimentar, estudar, conseguir trabalho quando for a hora; a um apoio psicológico, quando tiver algum problema, como a dependência química; a ser considerado inocente até que se prove o contrário; a ter um tratamento humano no sistema prisional, e a se reabilitar, a ter oportunidades para se reerguer depois que sai da prisão.
E elas buscam, também, o que seria justo para uma mãe: condições para criar os filhos sem que eles estejam em risco e sem ter que se matar de trabalhar para dar a eles o mínimo; saber que os filhos não vão ser humilhados e nem considerados suspeitos de cara numa batida policial; dormir tranquila; ter assistência jurídica e a tratamento digno para o filho que foi preso. Por fim, buscam o direito mais doído: o de exigir que, quando seu filho é morto, o caso seja investigado, os culpados sejam punidos e o Estado assuma a responsabilidade dele.
É por tudo isso que perguntamos: “Existe justiça. Onde está?”. Vamos continuar perguntando enquanto acharmos que ela está distante de nós.