Ednéia Aparecida de Souza

Sou moradora do Taquaril desde a década de 1980. Minha trajetória, iniciada ainda durante o regime militar, vem da luta pelo direito à moradia em Belo Horizonte. Naquela época, ainda muito jovem e por necessidade absoluta, ingressei nessa luta. Fui uma das integrantes do movimento comunitário, a Associação de Moradores do Alto Vera Cruz e posteriormente criou o Centro Comunitário Taquaril – lugar de onde eu nunca saí nem por um dia, exceto em momentos em que estive internada por questões de saúde. 

Nós corremos atrás demais para ter o direito à moradia assegurado. O Taquaril foi o local que conseguimos para morar, mas era uma área perigosa em todos os sentidos. Aqui, além de ser um terreno condenado para a construção de moradia, não tinha nada quando viemos pra cá. A gente ainda não tinha nenhum direito básico assegurado: não tinha água, não tinha luz, não tinha ônibus. Não tinha nada. Absolutamente nada. Não tinha creche. Nada. Nós fizemos quase tudo aqui na mão. Nós marcamos as ruas todas. Os lotes todos.

Por muitos anos, batalhamos para receber os programas habitacionais do município, mas nenhum deles chegava para nós. Nós éramos os rebeldes da época. Tínhamos iniciado a rebelião pelo direito à moradia na cidade e criado o nosso bairro a partir da mobilização do povo e, por essa ousadia, recebemos uma punição: fomos ignorados pelas políticas públicas.

Então foi isso: nós tivemos que vir pra cá na luta e permanecer aqui na luta. Tínhamos um índice de mortalidade infantil que era muito alto. Vivíamos numa situação de violência urbana – o mais correto, acho, é dizer que era gravíssima a violência urbana contra a mulher. Porque a mulher engravidava aqui e não vinha carro para levar ela para ter a criança de madrugada. Então era uma loucura. E para as mulheres com filhos recém-nascidos, nem o acesso à água existia. Ela tinha que recorrer ao caminhão pipa que levava água para as obras das casas. E aquela era a água que ela tinha para cuidar da criança, para cuidar da casa, para cuidar dos outros. Era uma condição de vida extremamente desumana. E a gente teve que permanecer organizado para buscar essas condições mínimas. É por isso que eu digo que da luta por moradia vieram todas as outras de que eu participo até hoje.

Foi só no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 que recebemos o direito de ocupar aqui, pelo poder público. Mas foram distribuídos só 2854 lotes – e eram oito mil famílias reivindicando! As famílias que ficaram de fora resolveram seus problemas de moradia da forma que era possível na época: ocuparam todas as outras áreas. Ocuparam tudo: as áreas de risco, as áreas de preservação, as áreas de comércio, a área que era pra fazer praça, a área em que seria construída uma creche. O único espaço que passou foi o que estava destinado à construção da escola e do centro de saúde. E isso porque a gente montou lá um acompanhamento e bateu o pé, insistindo com as pessoas que garantir pelo menos uma escola e um centro de saúde era o básico. Essa quantidade imensa de ocupações irregulares degradou ainda mais a nossa condição de vida.

E nós só tivemos melhora mesmo a partir de 1993, com a entrada da prefeitura democrática popular. Naquela época, nosso sistema viário foi organizado (até então, não havia vias que possibilitassem que carros ou ônibus circulassem no Taquaril) e finalmente foram construídas uma escola pública e um centro de saúde na nossa comunidade.

Não ter os direitos garantidos para a população dificultou demais a nossa vida, desde o dia que nós viemos para cá. A gente não tinha outra opção que não lutar pelo direito à moradia com dignidade. E eu era a secretária do movimento – que, como eu disse, reunia mais de oito mil famílias. Eu organizava as fichas de filiação dessas famílias. Eu organizava as nossas caminhadas e a formação das nossas frentes de trabalho. Quando saía um terreno, eu estava lá organizando a turma pra montar os grupos de capina – porque a gente capinou tudo aqui no braço.

A gente tinha uma turma muito forte, de muita coragem. Com muita necessidade também. A necessidade fazia a gente tirar coragem de onde não existia.

Imaginem a condição de vida da mulher e do jovem nesse contexto que eu descrevi. Tentem visualizar o quadro, pensem no que é a vida de um menino que mora numa rua sem nenhuma infraestrutura, cuja declividade é acima de 50°, que ele sobre praticamente botando a mão no chão. Quando chove, ele não consegue sair de casa. Nem subir, nem descer. O barraco em que vive é de lona ou de tábua e não tem nem banheiro. O quarto é um só pra todo mundo. 

Então, naqueles primeiros anos, a gente perdeu muitas vidas. Não só em função da violência urbana que é a gente não ter quase nada, mas também da violência que veio com o tráfico de drogas, que se instalou aqui já no início, pois o Taquaril era um lugar propício para se esconder. E a violência relacionada ao tráfico tem ceifado a vida de muitos dos nossos jovens.

Eu descrevi bem o cenário porque é dele que a gente precisa falar quando as pessoas afirmam coisas como “esses meninos entram pra essa vida porque querem”. Pensem em tudo o que eu contei, das várias violências e da falta absoluta de oportunidade de estudo, trabalho, lazer. Considerando tudo isso, fica bastante evidente o porquê de os jovens acabarem nesse lugar do crime e do caminho que leva tantos deles à morte.

Pensem agora na situação das mulheres. Eu percebo que as mais agredidas são as mulheres. Por que? Porque se atinge a família, a mulher é quem vai segurar a onda e sofrer o baque. Costuma ser assim. Quando o bicho pega, muitos homens não dão conta e abandonam as famílias. E as mulheres têm então que segurar as pontas. Elas não têm outra opção: têm que encontrar forças e se virar. Não é nem se virar nos 30, como dizem por aí. É se virar nos 90, nos 180 graus. Porque pra gente não sobrou a opção da fraqueza. Em momento nenhum. Nós não temos esse direito. Nós não temos essa opção. Quando acontece a violência com um jovem, é filho da gente. É neto da gente, é irmão da gente. A situação é enlouquecedora.

Mas a gente também não pode enlouquecer. Tudo o que nos resta é lutar. Por isso, nossa trajetória foi sempre a de cobrar as políticas públicas e, ao mesmo tempo, construir melhorias por nossa conta mesmo. Foi desse jeito que, ainda na década de 1990, nós iniciamos uma campanha chamada “Campanha Permanente pelo Direito à Vida Digna no Conjunto Taquaril”. Realizamos várias atividades culturais e educativas, e chamamos a imprensa para cobrir. Cobramos que os veículos de comunicação abordassem nossa região com algum respeito, ao invés de disseminar o preconceito, associando nossa região apenas à violência. Essa é uma briga que a gente trava até hoje, e seguiremos travando. 

Enfim, foi exatamente naquele período que a gente começou a se contrapor ao preconceito com mais firmeza. Dissemos aos jornalistas: Nós não vamos aceitar ser retratados dessa forma. Porque aqui a gente é trabalhador. Porque nós lutamos pelo direito à moradia. Porque nós temos o direito à vida digna. Porque aqui não é lugar de bandido. Se tem bandido, a responsabilidade por dar conta da situação é da polícia. Não é nossa.

Eu fico muito incomodada com essa postura extremamente preconceituosa, que também costuma ser a postura da polícia. Quando uma reunião é convocada pela polícia, geralmente é para cobrar de nós a identificação de criminosos, esse tipo de coisa – como se todos os crimes da cidade fossem cometidos por moradores daqui. E eu sempre digo: nós somos trabalhadores e o crime é um problema da cidade inteira e da sociedade toda. Não venham colocá-lo nas nossas costas. A responsabilidade de criar estratégias para lidar com esse problema é de vocês.

O Conselho de Segurança Pública segue o mesmo modelo: querem que a gente da comunidade participe para vigiar e denunciar ações criminosas. Um dia, tive um embate forte com um coronel, num debate sobre segurança pública num programa de TV. Ele falou que era importante nós das comunidades participarmos desse conselho porque a bandidagem não podia vencer as pessoas honestas que vivem nessas áreas. Que tínhamos que ter coragem de denunciar, pra que os bandidos não tivessem mais destaque do que a gente. Eu não me contive e interrompi esse homem. Eu enlouqueci com essa coronel. Eu falei assim pra ele: “O senhor tá doido?” Já interrompi ele desse jeito: “O senhor tá pirado? O quê que o senhor bebeu? Tá bêbado? Olha aqui, deixa eu falar com o senhor. O senhor, pelo cargo que o senhor ocupa, pela renda que o senhor deve ter, se tiver algum problema com segurança, o senhor tem condição de na hora mudar de cidade, mudar de estado, mudar até de país. E nós? Vamos para onde? E quem é que vocês querem que a gente denuncie? Vocês estão dizendo que tem bandido no morro? A obrigação de saber quem é bandido é de vocês. Não é nossa, não. Nós não temos obrigação de fazer papel de polícia”. Por conta dessa lógica, que considero perversa, eu nunca participei do Conselho de Segurança Pública.

Tem um outro lado horrível do preconceito que eu também descobri na década de 1990. Naquela época, aconteceu um episódio que me fez descobrir o que é ser uma pessoa invisível e o que é ser uma comunidade invisível – algo que até então nunca tinha passado pela minha cabeça. Foi assim: conseguimos marcar uma reunião com o Amílcar Martins, Secretário Municipal de Governo da Prefeitura de Belo Horizonte. A reunião era pra cobrar melhorias básicas: água, luz, esgoto, ônibus, escola. Aí, ele abriu o mapa da cidade em cima da mesa e pediu pra gente apontar aonde estavam o Taquaril e Alto Vera Cruz. O problema todo, gente, é que nós não estávamos incluídos no traçado do mapa. No pedaço do mapa correspondente ao lugar em que vivíamos, não havia nada: era um branco total. Eu fiquei chocada. Aí o Amílcar virou pra gente e falou assim: “Mas como? Não existe nada nessa área. Não existe nada”. E a gente insistia que existia, que nós existíamos ali. Todo mundo que estava na reunião se desesperou. E ele simplesmente nos disse o seguinte: “Eu sinto muito. Vocês não existem no mapa de Belo Horizonte. Eu não posso destinar recurso público para uma área que não existe. Vocês não concordam?” Exatamente nessas palavras.

Saímos da reunião completamente desnorteados, desolados mesmo. Porque nossa região era uma das áreas de maior mortalidade infantil do estado, não tínhamos nada. Éramos tratados com tanta desumanidade que houve um vereador que apresentou uma proposta de, para resolver o problema de falta de água, instalar um boqueirão de água em cada rua da nossa comunidade. Era muita falta de dignidade. Se o projeto de lei passasse, tudo o que teríamos seria um chafariz por rua. E a gente teve que ir a pé para a Câmara lutar contra isso. Era muita violência misturada.

Éramos pessoas jovens, lutando, e passando por essas coisas. Eu era jovem nessa época. Com as crianças todas recém nascidas. Eu fui violentada desse tanto.

Enfim… assim começou a nossa história e é por todas essas coisas que a gente não tem uma única praça. Não temos um local que seja digno para convívio comunitário. Não temos um local que dê para fazer um corredor econômico, por exemplo, para gerar renda. Temos um pedacinho de terreno que é a praça Che Guevara aqui do Taquaril, da qual a gente cuida com todo o carinho, porque é a única. Como eu disse, nos anos 1990, melhorias e políticas públicas começaram a chegar, mas temos muitos problemas estruturais que se mantiveram. Nós, mulheres, e os nossos meninos, vivem até hoje em situação de violência, sem acesso a vários direitos básicos.

Foi em função da lida com muitas lutas relacionadas às mulheres e ao valor das vidas da população periférica que eu vim parar na Rede Mães de Luta. Pra ser mais precisa, a gente acabou integrando o grupo de fundadoras da Rede a partir de diálogos que temos, desde o começo dos anos 2000, com algumas políticas de segurança pública (ainda que eu não goste essa expressão e não a use, porque nós das periferias não sabemos o que é segurança pública, pois sofremos violências o tempo todo).

Uma das parcerias que temos é com o Centro de Prevenção à Criminalidade (CPC) do Taquaril, que é um equipamento público ligado à Secretaria de Estado de Segurança Pública. O CPC tem um trabalho de mediação de conflitos que dá bons resultados, ajuda no encaminhamento de muitas questões locais a partir do diálogo. E tem uma proposta de realmente ouvir a comunidade em relação à prevenção à violência. Além disso, implantam oficinas, voltadas a jovens e realizadas por pessoas da própria comunidade, ligadas à cultura e a habilidades que são importantes para os meninos. Eu gosto muito das oficinas. Acho que elas são um bom caminho, apostam na oferta de oportunidades, e deveriam ser complementadas por outras capacitações mais profundas, que possibilitassem a inclusão no mercado de trabalho.

As oficinas realmente têm impacto porque dão oportunidades para os jovens da nossa comunidade, mostram possibilidades além do crime. E os jovens vivem isso e levam adiante, para outros. Eu acho que esse é um caminho pra conseguirmos mudar a realidade. Os CPCs, ao apostarem nisso, criaram uma potência tão grande dentro das comunidades que elas não deixam o Estado, independentemente de quem esteja no poder, mudar a lógica desse programa. Nem acabar com ele. Já tentaram. As comunidades foram pra cima e não deixaram.

Mas, voltando de forma mais direta ao caminho que nos levou às Mães de Luta, ele começou em 2017, quando a equipe do CPC procurou a gente para discutir uma pesquisa que tinha saído, que colocava o Taquaril no ranking de comunidades que mais violam direitos das mulheres em Minas. Eles tinham assistido alguns vídeos, que havíamos feito ainda nos anos 1990, em que discutíamos alternativas de prevenção à violência a partir do envolvimento dos jovens em ações ligadas à cultura e a ações de geração de renda – como uma feira, envolvendo as mulheres, que tínhamos já naquela época. Ao verem que tínhamos propostas consistentes há três décadas, nos convidaram para uma ação em parceria que buscasse criar alternativas à violência. Nós topamos, mas com uma condição: só discutimos enfrentamento à violência se fosse acompanhado de geração de renda.

Como eu disse, tínhamos experiência com esse tipo de ação desde os anos 1990, quando realizamos uma feira que envolvia as mulheres na produção das peças comercializadas, que eram sobretudo de costura. Já naquela época, usávamos como estratégia o ponto de costura para poder conversar, aliviar, fortalecer, criar redes. Não tinha política de enfrentamento à violência contra a mulher. E aí a gente construía essa estratégia de enfrentamento, do nosso jeito.

Então, em 2017, começamos com o CPC um projeto, que existe até hoje, chamado “Vidas com Arte: Enfrentamento à Violência Doméstica e Geração de Renda”, que criou um grupo de mulheres com o mesmo nome. Temos criado, com esse grupo, alternativas coletivas de geração de trabalho e renda e, junto com isso, levantado discussões em que elas próprias refletem sobre a construção de saídas para o problema da violência.

A gente busca, por exemplo, um jeito de criar uma feira de artesanato aqui na praça do Taquaril. Mas questionamos o modelo de expositoras individuais, pois as mulheres daqui não têm dinheiro para fazer artesanato e encher uma barraca. Mas, juntas, elas podem ter uma excelente barraca de venda. Também montamos grupos coletivos de produção. Afinal, já tínhamos aprendido ao longo de nossa história, apanhando muito, que é juntas que a gente vence as dificuldades. Então, nós não queremos nada individualizado. Nada. Tudo o que for individualizado pode ficar lá embaixo, no asfalto. Podem individualizar pra lá. Aqui nós queremos participar juntas.

Além disso, em 2018, a Secretaria Municipal de Segurança Pública tinha nos convidado a participar da construção do plano de segurança pública da PBH. Então, realizamos algumas atividades aqui no Taquaril, como a feira (que já mencionei) e várias rodas de conversa. A partir dessas atividades, elaboramos nossas propostas para o plano.

Eu, particularmente, naquela época, estava especialmente sensível em relação a esse tema porque tinha perdido um afilhadinho que vi nascer e amava demais, filho de uma amiga minha, integrante de uma família muito amiga. Um menino que era um doce. Esse menino foi ao Arraiá de Belô, no centro da cidade, e ao voltar foi assassinado por um morador de rua que cismou que uma pessoa da turma dele estava mexendo com sua mulher. Eu fiquei muito revoltada. Eu pensei: se nós tivéssemos uns lugares legais aqui, umas atividades legais, esses meninos não precisavam descer para o centro. Desde esse acontecido, tenho batalhado muito pela criação de um lugar legal, aqui na comunidade, em que os jovens possam conviver, tocar músicas que eles mesmos façam, aprender música e outras artes, interagir.

Essa questão dos jovens assassinados nos tocava muito, pois há uma mortalidade muito alta entre a nossa juventude. E pensávamos também que seria importante amparar mulheres, como essa minha amiga, que perderam os filhos. Aí, fomos convidados pelo pessoal da Secretaria Municipal de Segurança Pública, com a qual dialogávamos para a criação de uma feira e de alternativas de lazer para o Taquaril, para a construção da atividade que deu origem à Rede. O encontro “Do luto à luta”, que realizamos com outros coletivos da cidade no dia 25 de maio de 2019, a PBH e a AIC, para receber, apoiar e abraçar essas mães, para que elas tivessem coragem de sair do luto, da depressão, dessa situação, e ir para a luta mesmo. 

É muito ruim falar isso: “a vida continua”. Mas não é que a vida continua, não. A vida tem que continuar. Não tem jeito. Elas têm outros filhos, são chefes de família. Têm que seguir batalhando, e isso num estado de depressão que muitas vezes é grave. Em silêncio. Tem algumas que ficam engasgadas e não conseguem nem falar sobre a violência que sofrem. Não podem falar nem dentro de casa. Nem dentro de casa. Então a gente começou a criar um espaço de escuta e de aconchego.

O encontro “Do luto à Luta” rendeu muitos frutos. A articulação foi crescendo, com encontros nas comunidades das mulheres e, depois, uma articulação com o gabinete da deputada estadual Andreia de Jesus, que é negra. Ela se propôs a atuar conosco porque, afinal, quando a gente fala de mortalidade de jovens, nós estamos falando de cor. Então junto com essa discussão do enfrentamento à letalidade, a gente foi discutir essas questões de raça e gênero. Quem é que está morrendo? São as mulheres pretas e os meninos pretos.

E então, nós trocamos o nome. Escolhemos trocar “Do Luto à Luta” para Rede Mães de Luta, e ampliamos a discussão. Também realizamos nosso primeiro evento na Assembleia Legislativa de MG, que aconteceu no dia 06 de agosto e teve uma mesa pra falar do tema, lançamento de livro do Movimento Mães de Maio, roda de conversa sobre geração de renda como forma de enfrentamento à violência e, ainda, a “Feira Thereza de Benguela”, em que as mulheres dos diversos coletivos podiam vender os seus produtos.

Ao participar da Rede, temos dialogado com mulheres incríveis, com as quais aprendemos demais. Uma discussão que eu fui compreender participando da Rede Mães de Luta foi a do encarceramento em massa do povo negro e periférico, e ainda os assassinatos no sistema prisional. Quem chamou a atenção para esse tema foi a Dona Teresa, que nos falou da pauta do abolicionismo penal, que denuncia que o nosso sistema penal tem raízes na escravidão e é seletivo: criminaliza a população pobre, negra e periférica. Ela mostrou que os presídios são estruturas de extrema violência, superlotados de pessoas que, em sua grande maioria, cometeram delitos de baixa gravidade, e que sofrem tantas violações ali que vão perdendo sua humanidade. Assim, ao invés de reabilitar as pessoas para que se reinsiram na sociedade, os presídios fazem o oposto. Ela falou também que a guerra às drogas é um dos grandes mecanismos dessa engrenagem.

Eu devo tanto à Dona Teresa… Ela abriu a minha visão quanto a essa questão. Antes, eu tinha uma visão muito turva. Ouvi-la naquele momento foi fantástico. Porque foi lá que eu compreendi pela primeira vez, de verdade, o que estava em jogo. E olha que eu já tinha feito um curso em que ela deu uma palestra, mas naquele espaço mais formal eu não consegui alcançar a compreensão que fui construir naquele dia na Assembleia. Naquele momento, eu pensei: “caramba… a Dona Teresa entendeu como funciona o sistema e desenhou pra gente”. 

Aprendendo umas com as outras, nossa rede ganhou organicidade. Pudemos contar, nos dois primeiros anos, com a Cris Ribeiro como articuladora, depois veio a Vivi Coelho. E fomos seguindo. Mesmo na pandemia, nós não paramos… Sabemos que precisamos seguir sempre em frente e que nossa força está no apoio mútuo.

E tem uma coisa que é preciso dizer: na nossa Rede o que mais tem são mulheres muito potentes. Tem a Dona Teresa, que como eu disse nos possibilitou entender que o sistema carcerário é uma máquina que mói gente preta e pobre. Tem a Kaká, que eu tinha conhecido alguns anos antes, no mesmo curso sobre segurança pública em que conheci a Dona Teresa. Ela chegou no curso desesperada, gritando, meio louca, denunciando que o filho dela tinha sido assassinado numa prisão e que ela queria saber quem matou o filho dela. E ninguém deu ouvido pra ela. E isso num curso que formava lideranças exatamente naquele tema, que tratava justamente desse sistema que mói pobre, que moeu o filho dela dentro do sistema carcerário. E depois eu tive o privilégio de acompanhar o desenvolvimento da Kaká, de ver ela encontrando outras mulheres e criando o Movimento Mães de Maio Minas, de vê-la se empoderando como liderança. E ela se empoderou de uma forma tão imensa que hoje não tem como a Kaká abrir a boca e as pessoas não escutarem com atenção o que ela está falando.

Enfim… Eu fiquei muito impressionada com a força da Kaká. Ouvir o relato de vida dela mudou a minha vida, pois fui tocada. Uma coisa é você ver a história conta na televisão. Outra coisa é você estar olhando nos olhos dessa mãe que viveu essa situação. É outra coisa. Ali eu entendi que a luta pela vida dos jovens e a busca daquela mulher eram a mesma coisa, que estava tudo interligado. Tomara que as pessoas entendam que a gente precisa se interligar mais ainda. 

Mulheres de outros estados que se somaram às nossas ações também me ensinaram demais. Como a Débora, uma das criadoras do Movimento Mães de Maio. Ela levantou as questões que tanto a Dona Teresa como a Kaká levantam, falando a partir do contexto de luta dela, nascido de uma das mais horríveis chacinas que o Brasil já teve, os crimes de maio. Falou da importância da memória dos jovens assassinados ser sempre lembrada, e de como as mães são as maiores guardiãs dessa memória e da luta por justiça e pela transformação dessa realidade. A Nívia Raposo, da Rede de Mães e Familiares de Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense, também trouxe as mesmas questões a partir do contexto do Rio. E as duas, junto com outras mulheres do Rio que participaram do evento de agosto de 2019, chegaram com as bandeiras, fotos dos meninos assassinados, gritos de luta. Aprendemos com elas, também, sobre esse jeito de chamar a atenção para a luta.

Todas essas coisas vão marcando a gente. A Débora falou uma frase que eu nunca vou esquecer: “somos nós mulheres que vamos parir um novo mundo”. Eu acho que ela está coberta de razão.

As mulheres são essa potência enorme e, por isso, todas as ações da rede foram extremamente marcantes. Não teve nenhuma que não fosse. E nós realizamos muita coisa! Naquele evento do dia 06 de agosto de 2019, nós esfregamos a nossa dor na cara da Assembleia. Nós obrigamos o público de lá a escutar todos os nossos relatos. Todos eles. Do menino que deveria ter sido protegido pelo Estado, mas foi encarcerado pelo roubo de alguns chocolates e assassinado na prisão (o filho da Kaká). Do outro que saiu de casa para ir num evento cultural e que foi assassinado na rua. E de tantos outros… Nós esfregamos isso tudo na cara deles. E protocolamos um projeto de lei que tinha o objetivo justamente de criar a Semana Nacional das Vítimas da Violência do Estado.

Nós fizemos vários eventos para mostrar que somos capazes de produzir coisas muito bacanas juntas. E que juntas a gente consegue vencer inclusive a violência da falta de renda. E que nós, se estivermos em rede, somos capazes de agir para que nenhuma mulher passe pelo sofrimento sozinha. Afinal, nós queremos e precisamos ser abraçadas nas nossas dificuldades. Então, tudo o que nós fizemos me ajudou a ser uma pessoa mil vezes mais humana. A me aproximar da humanidade mesmo. A entender o sistema. A entender a dor da outra.

Tudo isso vai dando um outro sentindo pra vida… Mesmo que a gente saiba do desafio gigante que enfrentamos, a mudança acontece na gente e a gente leva adiante. Se fortalece pra enfrentar um mundo em que a gente por vezes é literalmente invisível (como no episódio em que nossa comunidade efetivamente não existia no mapa da cidade), e no qual as pessoas falam abertamente que as vidas dos nossos têm menos valor, que bandido tem mais é que apodrecer na cadeia ou morrer. E hoje quem constrói as leis e governa o país é que está falando isso, escancaradamente, sem nenhum pudor.

Aí, a gente fica se perguntando: como é que podemos afetar essa sociedade? Será que a gente consegue afetar? Mas quando eu penso em tudo o que realizamos, a resposta que me vem é: com certeza. Penso isso a partir do que me aconteceu. Sou uma pessoa que está na luta social há uns 40 anos e que sempre lidou com essas questões da segurança pública. Mas eu não tinha, por exemplo, a visão que a Dona Teresa me deu sobre sistema carcerário. Faltava ela. Eu não tinha essa visão da necessidade de um questionamento radical desse sistema. E vendo o empoderamento gerado pelas ações da Rede nas comunidades eu firmei a convicção de dizer: eu quero que as ações todas sejam realizadas aqui no Taquaril, porque eu quero ficar aqui, que é um lugar legal, e quero que as discussões aconteçam aqui. Eu não tinha essa visão. Eu desenvolvi a visão dessas questões nesse coletivo, juntando as várias visões dessas mulheres empoderadas, ao longo desse trabalho que a gente fez numa construção coletiva. 

Então, eu cresci muito com tudo isso. E, com esse crescimento, eu consigo levar questionamentos e provocar transformações em outras pessoas. Hoje, eu consigo travar debates com relação a assuntos que antes eu não compreendia. Mas agora eu posso sentar em qualquer lugar, com qualquer técnico de política pública, e falar assim: “a situação da gente é essa aqui, entendeu? Essa é a nossa realidade. O que nós vamos desenvolver a partir disso, e não dos entendimentos rasos e preconceituosos que há por aí?

É claro que a gente se fortalece, mas também esmorece. Tem horas que o pensamento é que produzimos só uma gota d’água em um oceano, e que não há como mover pessoas que não têm empatia nenhuma. Você abre a rede social e você fica apavorado com as coisas escritas lá que mandam pra você. Mesmo nos grupos de whatsapp da comunidade. Tem gente nesses grupos que, ao invés de se indignar com as mortes dos jovens, fala coisas como: “Rezando não estava. Se estivesse na igreja não tinha morrido”. Mas aí eu respiro fundo e me lembro da frase que ouvi da Kaká e de tantas outras: “olha, nenhuma mãe pare filho par ser bandido”. Eu tive a oportunidade de ouvir isso delas e me empoderar. Assim, quando me deparo com discursos de preconceito e ódio dentro da própria comunidade, vem à tona tudo o que aprendi.

Mas tenho fé que a voz tem quando a gente tem um propósito. Aí, eu aciono esse poder e trabalho pra desconstruir o discurso de ódio. Eu problematizo a visão rasa da pessoa, ao dizer: “Olha, eu tô aqui falando para você que nenhuma mãe pare um filho para ser bandido. Imagine a sua mãe nesse lugar. Merece estar chorando na beirada no asfalto porque o filho foi metralhado na rua? Você acha que é justo acontecer isso com alguém da sua família? Se coloque no lugar! Imagine uma pessoa da sua família está num lugar chorando pela pessoa que perdeu a vida, aí passa alguém e fala que é bem feito, que se estivesse rezando não estava morto. Você vai gostar?” E eu falo mesmo, nunca me calo.

Falo que esse tipo de preconceito é o cúmulo na falta de humanidade. Falo pra pessoa: “Você não é humano se fala uma coisa dessa. Você precisa melhorar. Você precisa se colocar no lugar do outro”. Porque convenhamos: ouvir esse tipo de coisa de uma pessoa que não vive na favela é uma coisa, mas quando sai da boca de uma pessoa negra e favelada que mora do lado da sua casa e que passa uma dificuldade danada, que está desempregada, é um horror. Não posso aceitar isso.

Mas é um enfrentamento pesado, viu? Porque a gente traz todos esses argumentos, e o que ouve de volta? “Esse menino morto tem mesmo uma mãe, que deveria estar cuidando dele. Se tivesse cuidado não tinha acontecido isso”. É como se a mulher tivesse feito o filho sozinha. Não existe o pai nesse raciocínio. Eles nunca pensam no papel do homem nessa história toda. Aí eu vou e falo da violência de gênero, do machismo. Falo mesmo. E o assunto rende até no grupo da comunidade.

A gente aprende e leva adiante. É isso o que a gente faz. E aprende juntando a sabedoria que essas mulheres nos oferecem, que trocamos. Eu, por exemplo, tento contribuir na Rede com a discussão da geração de renda como condição para a superação da violência, porque não tem jeito de fazer luta se você não tiver dinheiro. É costurando essas sabedorias que a gente vem construindo essa história toda. E isso é poderoso demais, porque a gente multiplica o tempo todo, na nossa luta do dia a dia.

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contra o
genocídio
da juventude
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