Dona Tereza – Maria Tereza dos Santos

Meu nome é Maria Tereza dos Santos. Tenho sessenta e três anos e sou mãe de cinco filhos. No ano de 2007, meu penúltimo filho, o Ítalo, foi preso. Quando fui fazer meu cadastro para ter acesso a ele, para poder visitá-lo, sofri várias violações de direitos, que aconteceram bem na porta da unidade prisional. Numa das ocasiões, tive uma discussão muito forte com os agentes da portaria. Aí, uma moça da Pastoral Carcerária,a Maria de Lourdes, me falou que aquele tipo de coisa era normal. Que situações de violação aconteciam o tempo todo, com todas as mães, com todas as mulheres. Eu achei aquilo muito absurdo, fiquei indignada.

Ao ver que a minha indignação era muito grande, ela falou comigo que havia uma turma, formada por professores de Ciência Política e de Direito Penal, servidores públicos e alguns militantes, que estava se reunindo pra criar um grupo voltado a dar a voz aos familiares de pessoas encarceradas. Porque, embora seja inacreditável, até o ano de 2007, ninguém dava voz ao familiar de preso, gente. Não tinha quem defendesse os nossos direitos, que eram todos retirados, como se a gente fosse criminoso também. Aí, eu fui à reunião do grupo que esteva se formando. E passei a frequentar todas as reuniões. Desde a primeira vez que fui, eu nunca mais deixei de ir.

No grupo, o Pedro Otoni, o Flávio Badaró e o Virgílio de Mattos debatiam com a gente sobre as questões da pobreza, da prisão, da escravidão. É triste dizer isso, mas a retirada de direitos acaba nos conduzindo a um caminho de aprendizagens e de luta que não teríamos escolhido, caso não fosse necessário para enfrentar as violências de que passamos a ser vítimas. Mas, quando a gente começa a trilhar esse caminho, se entrega à militância, né? Comigo foi assim: fui participando das formações, passei a estudar sobre o abolicionismo penal… Com isso, venho atuando muito em relação a essa questão. 

Em 2009, o grupo que se reunia desde 2007 entendeu que precisava se formalizar, para ter mais força. Decidimos, então, criar uma instituição. Queríamos que a instituição se chamasse Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Mas, quando fomos fazer o registro jurídico da entidade, descobrimos que não podíamos chamá-la de grupo, tinha que ser associação. Aí, registramos ela com o nome de Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade de Minas Gerais. Eu fui presidente da Associação desde que ela foi criada até o ano passado (2022), quando saí porque me candidatei a deputada estadual.

Nesses mais de 15 anos de luta, só o que a gente tem visto é que nada dá resultado. Nada que se faça pra resolver os problemas que acontecem entre os muros de uma prisão dá resultado. A prisão em si é inconstitucional: ela opera num estado de total inconstitucionalidade. Tudo o que a nossa Constituição fala que não pode, acontece dentro de uma prisão. No tratamento do preso dentro da unidade prisional, não são seguidas as regras mínimas de respeito à dignidade daquela pessoa, não há respeito à Convenção Internacional dos Direitos Humanos, às Regras de Mandela (as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos), aos diversos protocolos que o Brasil assinou, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Ao perceber que as prisões são lugares em que o desrespeito aos direitos é a regra e que não há denúncia ou ação legal capaz de mudar isso, nós começamos a estudar sobre abolicionismo penal, porque vimos que a única alternativa possível seria abolir as prisões. Nós passamos a compreender que o Poder Judiciário, que deveria tomar providências em relação às inúmeras inconstitucionalidades que acontecem nas prisões, não faz nada porque, dentro do sistema prisional, está um bando de pretos pobres, periféricos, favelados. Então, no fim das contas, esse povo encarcerado, para a Justiça, não tem direito algum. Nesse sentido, a vida que as pessoas negras, pobres e faveladas têm na prisão reflete o que também acontece fora dela: é como se, para a Justiça e o Estado, essas pessoas não tivessem direitos. Só que o desprezo aos direitos dessas pessoas tem consequencias muito piores para aquelas que estão na prisão, não é mesmo? Ali, elas estão afastadas da sociedade e as violações acontecem sem que ninguém veja.

Hoje, os movimentos sociais e diversos estudiosos falam muito em racismo, mas é preciso reconhecer que o racismo mais duro que enfrentamos é o do nosso sistema de justiça. Para ele, são dois pesos e duas medidas. Se a pessoa é periférica, ela tem mais chance de ir para a prisão. Se ela é preta e periférica, a chance de isso acontecer aumenta infinitamente. Por outro lado, quando se trata de uma pessoa branca, que mora num bairro que tem uma infraestrutura melhor, essa pessoa vai pras penas alternativas, né? As pessoas são escolhidas para ir para o cárcere pela cor da pele e pelo CEP de onde moram. Essa é a seleção que é feita. Eu falo, em tom irônico, que a justiça não é cega, ela é caolha. Mas não é brincadeira, isso é muito sério. A justiça brasileira é caolha porque ela enxerga os pretos e os periféricos só de um jeito, que é enviezado: para punir e para encarcerar. Nunca os enxerga para garantir direitos.

Essa seletividade da justiça brasileira ficou mais evidente ainda para mim no episódio da prisão dos responsáveis pelos atos terroristas realizados em Brasília no dia 08 de janeiro de 2023. É importante ressaltar: estamos falando de terroristas, de um grupo que cometeu um grave crime de terrorismo. Entretanto, rapidamente, as pessoas idosas e com doenças que haviam sido detidas tiveram acesso a benefícios de alternativas à prisão ou de prisão em certas condições que jamais existiram para os pretos pobres que estão no cárcere.

Diante de tudo isso, não existe outra alternativa que não seja nossa sociedade encontrar formas de responsabilizar as pessoas em conflito com a lei que não seja a pena de privação de liberdade. Porque sabemos que a prisão é uma instituição falida, e que o sistema prisional consome um volume muito grande de dinheiro, que a gente não sabe onde vai parar – porque esse dinheiro não chega ao preso, a polícia penal não tem nenhum benefício no seu salário, as condições das unidades são pra lá de precárias… Então, a família do preso e a sociedade em geral têm que custear um sistema que não funciona e não usa os recursos com transparência. O dinheiro investido no sistema prisional é dinheiro da sociedade trabalhadora, honesta, que está sendo jogado fora, que vai ralo abaixo, porque ele não dá resultado nenhum. Prender pessoas não dá resultado nenhum.

Prender pessoas não dá resultado porque não tem nenhum efeito de “reabilitação” de quem é encarcerado. O efeito é o contrário disso, pois a experiência do cárcere é de muita brutalidade. Além disso, prender pessoas não resolve problemas de segurança pública porque a maioria está presa ou por crimes que não cometeu, ou por pequenos crimes. A grande maioria dos meninos que estão no sistema prisional são vendedores do varejo de droga. A gente não tem traficantes presos. As prisões estão lotadas de pequenos vendedores de droga. De entregadores, fogueteiros, doladores. Mas traficante de verdade mesmo é aquele que sai do país e vem com o avião cheio de droga… E sabemos muito bem que nos presídios comuns do nosso país não há pessoas presas com esse perfil.

Por tudo isso, temos convicção e trabalhamos para sensibilizar os movimentos e a sociedade como um todo de que é preciso compreender que insistir no encarceramento em massa de pretos e pobres só agrava o problema. Mas é muito difícil fazer esse debate. Levamos essa discussão para coletivos, fóruns e redes, mas encontramos sempre uma resistência muito grande a ela. Essa é uma pauta que, muitas vezes, é rejeitada até pelos coletivos periféricos de pessoas pretas, de mulheres pretas, de mulheres pobres, de trabalhadores. É difícil demais discutir o abolicionismo penal.

Penso que essa dificuldade imensa está ligada ao fato de que, historicamente, as pessoas atrelam a questão da segurança pública à prisão. Mas a verdade é que a prisão não traz segurança alguma para a sociedade. Tanto é que todos os presídios estão lotados e a gente continua sem segurança nenhuma nas ruas, não é mesmo? Mas discutir isso com os movimentos é difícil demais, infelizmente.

Recentemente, cheguei a afirmar que não iria mais participar de debates sobre questões das mulheres. E eu não falei isso à toa. Falei porque não aguento mais a carga enorme de preconceito que encaro quando toco em determinadas questões. Quando vou a um debate desses e começo a falar das mulheres que estão encarceradas, até o semblante das pessoas muda. Porque as pessoas estão ali para debater questões sociais mas o que se debate, geralmente, são questões ligadas a um determinado padrão de mulher.

As pessoas acham que a mulher pode gerenciar o fogão, a cozinha, o restaurante, a lavanderia; acham até que ela deve rejeitar a imposição do trabalho doméstico e reivindicar igualdade de oportunidades no mundo do trabalho… Mas essas mesmas pessoas acham que a mulher não tem condições de gerenciar uma boca de fumo, por exemplo. Não dão conta de discutir o tráfico como um dos espaços em que a mulher dá conta de atuar, e efetivamente atua. E, se isso é impensável, é considerado mais absurdo ainda a gente propor que, para essa mulher que se envolve com a boca de fumo, o cárcere não é a solução.

Então, é muito complicado levar esse tipo de discussão aos coletivos. Mas temos tido alguns pequenos avanços. Nosso movimento, hoje, está numa conversa com a Sueli Carneiro, por exemplo. Participamos do RAESP (Rede de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional), colocando em discussão um questionamento do sistema como um todo. No entanto, lá ainda há pouco espaço para essa discussão, então acabamos não participando tão ativamente. Mas vamos buscando aliados e espaços para o debate… Eu já conversei muito sobre essas questões na Rede Mães de Luta, e sinto que as mulheres da rede, aos poucos, vêm se abrindo a elas.

É assim que a gente faz a pauta avançar. De tanto insistir nela, pouco a pouco fomos conquistando parceiros. Alguns de nossos parceiros, inclusive, têm um peso muito grande. É o caso do Instituto DH e da Universidade Federal de Minas Gerais. Vira e mexe, professores da UFMG estão nos chamando para ações conjuntas e apoiando as nossas ações. A AJUP (Assessoria Jurídica Universitária Popular), do Curso de Direito da Universidade, sempre está conosco, e durante a pandemia realizou cursos online com os familiares dos presos, para ensiná-los aspectos do regulamento do sistema prisional de Minas Gerais. Além disso, o CRISP (Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG) promoveu junto ao nosso grupo o curso “Cadê meus direitos?”, voltado a ensinar os familiares dos presos a não dependerem de ninguém e irem eles próprios em busca de seus direitos. Desde 2018, temos tido cursos que são realizados pela UFMG em parceria com o Instituto DH.

Além disso, fizemos uma parceria com o CULTHIS, programa de extensão do curso de Psicologia da UFMG que oferece atenção psicossocial a familiares de pessoas presas e sobreviventes do sistema prisional, coordenado pelas professoras Vanessa Barros e Carolyne Reis. Por meio da parceria, conseguimos assistência psicológica para os familiares e amigos das pessoas no sistema prisional. Essa assistência foi fundamental durante a pandemia, porque as mães ficaram numa agonia enorme, sem poder visitar os filhos. Ao mesmo tempo, chegavam notícias de mortes de presos por causa da Covid. Mas não informavam qual ou quais presos havia(m) morrido e era difícil conseguir essa informação; tínhamos que ir atrás e insistir até descobrir. E esse tipo de coisa mexeu muito com a cabeça dos familiares. Algumas famílias entraram em surto em função das situações drampaticas que aconteceram naquele período tão difícil. 

De todo modo, não dialogamos só com esses parceiros. Vamos em todo tipo de reunião – encontros de movimentos sociais, eventos do movimento hip hop, saraus… Tentamos levar a pauta da luta pelo desencarceramento a todos os lugares. 

E o que temos percebido é isso: ainda existe muito preconceito, inclusive da classe operária, contra quem se encontra no sistema prisional. E acho que isso acontece porque as pessoas ainda não se deram conta de que a a falta de acesso às necessidades básicas faz com que a nossa juventude, muitas vezes, busque um atalho… Pra ter um dinheiro, um ganho rápido… E esse atalho a conduz ao cárcere de uma forma muito mais rápida.

Eu me tornei participante da Rede Mães de Luta por acreditar que as questões do encarceramento e do assassinato de pretos e pobres estão totalmente conectadas. Considero essa rede fundamental e sempre que pude participei dos debates e atos. No ano passado, isso não foi possível porque me candidatei a deputada federal e a construção da campanha me tomou todo o tempo e energia. Nesse ano de 2023, por não estar mais na presidência da Associação de Amigos e Familiares, penso que não conseguirei atuar diretamente nas ações das Mães de Luta. Quem deve assumir esse papel é a nova presidente, a Estefânia. Hoje, eu ocupo na Associação os cargos de mobilizadora social e de coordenadora de ações, e essas duas frentes têm me demandado vinte e quatro horas por dia. Sei que preciso acumular menos tarefas… Porque, se eu tentar fazer tudo, vou acabar não conseguindo fazer coisa nenhuma. 

Meu trabalho dentro da associação é muito pesado. Tenho, muitas vezes, que correr atrás de leite e de cesta básica para familiares que estão sem acesso a trabalho. Há momentos em que preciso intervir junto a serviços públicos de saúde para que não tratem familiares com descaso. Há ainda a necessidade de apoiar os inúmeros meninos que saem da cadeia totalmente perdidos. Temos que ir às casas deles pra conversar, pra explicar a situação em que se encontram, às vezes até pra explicar o que que está escrito no alvará de soltura deles. Porque, muitas vezes, o menino é preso novamente por descumprir uma medida que está escrita lá no alvará, mas que ele não entendeu. Então, ele descumpre por desconhecimento, sabe? Por conta dessas várias demandas, estou mais focada no dia-a-dia da Associação de Amigos. Além disso, para marcar nosso posicionamento político e fazer denúncias, participo do RAESP. E há pessoas representando a Associação em outros espaços, como o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Muitas vezes, participo com elas das reuniões, dando apoio. Participamos também da Coalizão Negra por Direitos, que sempre realiza reuniões online. Participo das reuniões junto com a Estefânia.

Acho importante participar de espaços como a Coalizão Negra por Direitos porque ela está no país inteiro…E, além disso, a gente precisa ter acesso a cabeças pensantes que nos ajudem a pensar um novo Brasil, um Brasil em que caiba a juventude preta. Um Brasil que o espaço que seja garantido pra gente seja digno, e não só a pior escola, os piores bairros (as vilas, aglomerados e favelas), os piores empregos, os piores salários… e o tráfico como fonte ilusória de renda, que na verdade leva ao cárcere e à morte. 

Precisamos pensar e construir um Brasil onde o povo preto, pobre e periférico possa ter acesso a direitos. Onde as políticas públicas sejam efetivas, realmente criem oportunidades para o nosso povo. Porque as que existem ainda são muito falhas. Por exemplo: o sistema de cotas. O menino faz o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e passa, já que a cota garante que ele entre na na faculdade. Mas como é que ele vai se manter na faculdade, sem renda? Então, há uma alta evasão dessas pessoas, porque elas não dão conta de ficar nesses espaços. Não basta chegar num determinado espaço. A pessoa precisa ter condições de permanecer naquele espaço. No caso da universidade, ela precisa de condições mínimas para terminar o curso, para que a partir dele possa buscar o acesso a uma qualidade de vida melhor. E isso é muito importante porque, nas famílias pobres, se um sobe, o outro sobe junto. Mas se ninguém sobe, fica todo mundo no mesmo lugar. 

Os problemas são muito profundos e estão todos ligados. Então, é preciso mudar todo o modo de pensar e de administrar o país. Afinal, o Brasil é um país em que a população negra é a maioria, mas meia dúzia de brancos continua dando as ordens e a gente segue cumprindo né? Pra mudar isso, é importante que a juventude negra e periférica estude, preste concurso público e alcance os cargos de poder. Porque só quando os nossos estiverem lá é que a gente vai ter realmente acesso a direitos. 

Quando um preto periférico favelado sentar na frente de um promotor preto que veio da periferia, de um juiz preto que veio da periferia, de um desembargador preto que veio da periferia, essas pessoas vão saber de onde ele veio, vão entender o que ele está falando e vão compreender o que ele passou. Enquanto a gente estiver lá sendo julgado por uma meia dúzia de homem branco, rico, machista, racista, homofóbico, só o que vai restar pra nós é o cárcere. 

A mãe de um encarcerado é condenada o tempo todo por essas pessoas que não têm a menor noção da luta e do sofrimento dela. Por pessoas que se esquecem que nenhuma mãe cria o filho pra ser bandido. Você nunca vai ouvir uma mulher falar: “meu sonho é que o meu filho seja bandido”. Nenhuma mãe quer isso. As mães fazem o que podem e o que não podem para que seus filhos não acabem nesse caminho. Mas, muitas vezes, apesar de lutarem de todas as formas, isso acaba acontecendo. E aí a sociedade vai pra cima delas com todas as pedras. A lei diz que a pena não pode passar da pessoa condenada. Mas toda mãe, toda família que tem uma pessoa no cárcere, hoje, está presa também.

A Rede Mães de Luta aborda muito essa questão. E eu entrei na Rede Mães de Luta, a convite da Cris Ribeiro, justamente por perceber a necessidade de falar dessa mãe que sofre tanta violência do Estado e enfrenta tanto preconceito, quando o filho dela passa pelo sistema prisional e quando o filho dela é assassinado. 

A Cris me convidou pra fazer parte das Mães de Luta e eu topei na hora porque, como ela, entendi que precisávamos criar uma rede pra tratar dessa pauta em Minas; precisávamos construir uma rede como as que já existiam em vários estados brasileiros, como Goiás, Rio, São Paulo. Em todos esses lugares, já havia redes de mulheres que se uniram para enfrentar o Estado. São movimentos que se inspiram nas Mães de Maio, da Baixada Santista (que denunciam e exigem justiça quanto aos Crimes de Maio, chacina ocorrida em 2006), e nas Mães de Acari, do Rio (que desde 1990 lutam para que a chacina de Acari, que teve 11 vítimas nunca encontradas, seja investigada). A Débora, das Mães de Maio, e as líderes das Mães de Acari, são referências fundamentais, e os movimentos dessas mulheres se tornaram conhecidos mundialmente.

E aqui em Minas Gerais, as mães que perderam os filhos pelo braço armado do Estado não tinham onde chorar, não tinham um ombro amigo pra acolhê-las… Pensando nisso, essas mulheres, e mulheres de lutas ligadas a outras violências do Estado, como eu, se juntaram em 2019 para construir as Mães de Luta de Minas Gerais. Desde então, essa rede tem realizado discussões, eventos e ações muito importantes. 

A Rede criou até um Projeto de Lei (PL), apresentado em 2019 à Assembleia Legislativa pela deputada estadual Andréia de Jesus, que prevê a inserção, no calendário oficial de Minas, da Semana de Luta das Vítimas da Violência do Estado. O PL prevê que o calendário mineiro incorpore o que os movimentos já elegeram, e algumas cidades e estados já asseguraram em leis: o período de 12 a 19 de maio como uma semana voltada ao debate sobre a violência do Estado e a atos por justiça para as vítimas de tal violência e os familiares delas. 

O PL de Minas Gerais recebeu o nome de Elenira Rezende. Elenira foi torturada e assassinada por soldados do Exército durante a Ditadura Militar,contra a qual lutava. Até hoje o corpo dela não foi encontrado. O nome dela foi escolhido por ela ter própria ter sido morta pelo próprio Estado. 

Nós também realizamos alguns atos muito bonitos em espaços como a Praça da Estação, e o CRJ (Centro da Referência da Juventude, localizado no centro de BH). Também já promovemos vários encontros pra que as mulheres cujos filhos foram assassinados tivessem um espaço de acolhimento. Eu participei de toda a construção, como presidente da Associação de Familiares e Amigos das Pessoas Privadas de Liberdade.

Na Associação, nós nos deparamos com assassinatos de pessoas o tempo todo. O braço armado do Estado mata muito dentro do cárcere. E o sistema prisional mineiro é um exemplo disso. Morre gente toda semana, às vezes há várias mortes numa só semana. E as mães dessas pessoas assassinadas não recebem nenhum tipo de acolhimento. Elas não têm onde reclamar, não recebem nenhum tipo de resposta… E a pá de cal, que destrói essas mulheres, é reconhecer os corpos dos filhos no Instituto Médico Legal, que é pra onde o cadáver é enviado. E lá, além de ter que fazer o reconhecimento dos corpos de seus filhos, elas se depararem com atestados de óbito em que, no lugar da causa da morte, vem escrito: “causa mortis desconhecida”. O corpo de uma pessoa que estava sob a tutela do Estado vai parar no IML e, lá, onde deveria haver peritos empenhados em identificar a causa mortis daquela pessoa, o que ocorre é a conivência, expressa no atestado que afirma que a causa da morte, que todo mundo sabequal foi, é desconhecida. 

E sabemos que tudo isso, de alguma forma, está atrelado a um sistema de segurança pública que é todo estruturado para que os direitos sejam violados e os assassinatos aconteçam num ambiente de impunidade. Porque, se pensarmos bem, o órgão que emite o atestado de óbito, por exemplo, se chama Instituto Médico Legal. Ele teria que estar atrelado e responder ao Conselho Regional de Medicina. Mas não é isso o que acontece. Ele é composto por médicos policiais. Quando você leva uma pessoa no Instituto Médico Legal para algum tipo de exame para identificar se ela sofreu alguma agresão, se essa pessoa foi presa pela Polícia Militar ou pela Polícia Civil, o policial entra na sala junto com o médico. Isso impede a pessoa agredida de fazer qualquer tipo de denúncia. E, quando o IML recebe um corpo que foi recolhido dentro do presídio, para aquelas pessoas, aquele é um corpo que não tem valor, e automaticamente o atestado de óbito apontando “causas desconhecidas” é emitido.

E ninguém tem acesso a nenhuma informação, ninguém sabe de que forma esses laudos são feitos. E muitas vezes, quando o familiar não tem nenhum tipo de orientação para que possa questionar, aquele corpo se torna só mais um e o caso fica por isso mesmo. É por isso que eu sinto uma angústia muito grande em relação aos exames médicos que foram feitos nos meninos que morreram no massacre de Varginha. Eu acompanhei o processo… Alguns corpos tinham marcas de algema nos pés e nas mãos, dava pra ver que teve tiro a queima roupa, que a arma que disparou naquele indivíduo estava a poucos centímetros do rosto dele. O que se viu pelo estado dos corpos das vítimas foi algo muito diferente da versão oficial, de que teria havido uma situação de troca de tiros. Mas o que aconteceu? No IML, não foram feitos procedimentos básicos, como o exame de resíduo de pólvora nas mãos das vítimas… Porque, afinal, já estava estabelecido que aquele caso seria registrado como “troca de tiros com a polícia”…

Enfim… estamos falando de uma situação em que a violência do Estado é considerada normal, e nunca é reconhecida. Então, para as mães, enfrentar essa situação é muito sofrido. Por isso, a gente tem uma esperança muito grande de que a Rede Mães de Luta seja um movimento que cresça e que realmente possa, sempre, acolher essas mães e estar ao lado delas na batalha tão árdua que enfrentam.

E elas precisam de muito apoio, pois aqui em Minas as pessoas têm muito medo de denunciar. Se uma mãe perde um filho para o braço armado do Estado, ela se sente muito intimidada, porque ela muitas vezes tem um outro filho (adolescente ou maior de idade) e sabe que, mesmo que esse filho não tenha envolvimento nenhum com nada ilícito, caso ela denuncie, pode acontecer algo com aquele outro filho dela. Para piorar, com base em tudo o que ela já viu na vida, ela no fundo pensa que, por mais que lute, se o caso chegar a ser investigado, aquilo não vai dar em nada. Então, diante de tanta injustiça e de tantas situações de desespero que essas mulheres enfrentam, todas nós que nos somamos a essa mobilização sabemos o quanto é necessária a Rede Mães de Luta, o quanto esse movimento tem o papel fundamental de ser um espaço de acolhida vital para essas mulheres.

Eu mesma, apesar de estar à frente da Associação há mais de 15 anos, diante desse tipo de situação me sinto de pés e mãos atadas e totalmente sem ação. Quando alguém me liga e fala “Dona Tereza, o alvará do meu filho deu impedimento”, eu sei como ajudá-la. Eu sei onde ir, o que fazer, eu sei onde procurar por uma solução. Se uma mãe me pede que a acuda porque o filho foi preso, é a mesma coisa: eu sei o que pode ser feito, eu tenho o que falar com aquela mulher, eu sei como orientá-la. Mas quando uma mãe me liga e fala “meu filho morreu”, eu perco o chão. Eu não sei o que dizer para aquela mulher. Não consigo ver nada que possa ser feito.

Eu acabei tendo um filho assassinado e, quando isso aconteceu, eu percebi que não há mesmo nada que possa ser dito a uma mulher nessa situação. O meu filho não foi assassinado pelo braço armado do Estado. Ele já tinha passado pelo sistema prisional e, depois, foi vítima de um homicídio justamente por tentar proteger uma mulher da violência. Ele prestou socorro a uma mulher que tinha sofrido violência doméstica e o companheiro da mulher o matou em vingança. Quando aquele horror aconteceu comigo, eu senti que nada que os outros falavam pra mim servia. Eu só queria ele vivo, sabe? Eu só queria ele. Então, se a gente não dá conta de lidar com com determinada dor, com determinada angústia, a gente precisa se juntar a um grupo em que seja possível colocar aquela angústia pra fora de algum jeito, pra achar um jeito de lidar com aquilo que nos dilacera. Sabe por que? Porque, se você não tiver alguém pra te amparar, você acaba se isolando e, no isolamento, a depressão acaba tomando conta, pois é dor demais, não tem como lidar com tanta dor sozinha.

Por tudo isso, repito: a Rede Mães de Luta precisa crescer, e tenho muita esperança de que ela cresça. Mais pessoas precisam se movimentar, se mobilizar, e ampliar essa rede. Eu sei que é muito difícil conseguir aumentar a mobilização, principalmente pela falta de recursos financeiros para coisas básicas, como o dinheiro da passagem de ônibus, que muitas vezes as mulheres não têm e, por conta disso, não conseguem ir às reuniões. Falta dinheiro também para viabilizar o deslocamento e a hospedagem de mulheres das redes de outros estados, para que estejam aqui participando dos nossos debates e dos nossos atos; assim como para que a gente possa ir participar das atividades nos outros estados, ou mesmo para que possamos ir ao interior de Minas conversar com outras mães, em cidades onde muitas mortes acontecem e as mães das vítimas não têm amparo algum.

A situação delas é muito mais difícil exatamente porque falta uma rede. Eu, por exemplo, sou cercada por comunidades e conheço todo mundo. Circulo por elas, ajudo as pessoase sou ajudada. As mães de muitas cidades pequenas do interior não podem contar com isso.

Nas comunidades pelas quais circulo, as pessoas sofrem muito e tem muito jovem sendo morto pela polícia, o tempo todo. Mas a gente se junta, denuncia, vai atrás de provas, provoca o Ministério Público, que custa a abrir inquérito. Sabemos como a coisa funciona: a polícia mata e o Ministério Público enterra. Há muita conivência. Isso não significa que tenhamos que aceitar caladas, mas sabemos que a luta por justiça é praticamente impossível. Tem mães aí que estão buscando uma resposta a vida toda, mas essa resposta nunca chega. E a dor nunca acaba. Então, só nos resta formar redes como as Mães de Luta, pra conseguirmos lidar com essas dores e seguir em frente.

Bato muito nessa techa do papel que as Mãe de Luta têm de acolhimento das famílias porque sei o quanto faz falta ter com quem conversar. Eu descobri que, quando a gente perde um filho, a gente fica chata. O assunto é repetitivo, sabe? A sua dor é muito grande e é muito necessário colocá-la pra fora. Mas nem todo mundo tem a paciência pra escutar. E eu falo por mim mesma: não tenho paciência para escutar uma pessoa, por horas seguidas, me falando a mesma coisa. 

Mas, quando existe um grupo, a tarefa de escutar é compartilhada. A mulher que está sofrendo consegue conversar um pouco comigo, um pouco com a Maria, um pouco com a Clemilda, um pouco com a Jussara, um pouco com a Ana… um pouco com a Beatriz, um pouco a Clarisse… Assim, ela vai conseguindo colocar pra fora um pouco daquela angústia e aquilo não vai pesar demais em ninguém. Porque quando uma dor enorme é descarregada toda numa pessoa só, a coisa fica pesada demais, é uma carga que pode levar aquela pessoa que recebe ao desespero. É muito difícil de dar conta. Mas, quando você tem ali diversos ombros, cada um disponível pra carregar um pouquinho da dor da outra, aquele fardo se torna um pouco mais leve, sabe? Então, esse acolhimento é algo vital e as Mães de Luta precisam crescer, o movimento precisa avançar, para levar esse acolhimento a mais mulheres. 

No ano passado, eu não pude participar das atividades, porque, como já disse, decidi me candidatar a deputada estadual, justamente para levar a luta do abolicionismo penal à esfera do poder legislativo. Foi muito difícil e não consegui me eleger, porque uma eleição depende de fatores, como recursos financeiros e influência, que acabam se concentrando nas mãos de poucos. De todo modo, ao final do percurso, senti que construir uma candidatura política envolve uma série de constrangimentos e restrições que acabam sendo amarras muito duras de suportar. Você não pode xingar, você não pode brigar, você não pode expressar várias coisas… E eu sou briguenta, e não sou de ficar calada. Então, o processo acaba sendo adoecedor. Sinceramente, não sei se eu quero isso para a minha vida… Acho que nasci mesmo foi pra militância, pra atuar no meio do povo, dando grito e esbravejando, sabe?

Por outro lado, a gente sabe que o poder legislativo de Minas Gerais precisa mudar. As pessoas que estão lá não nos representam. Mesmo as pessoas ligadas às lutas sociais e que se tornaram deputadas… Elas representam outros movimentos sociais, mas não a família carcerária. Em vários momentos em que é preciso assumir uma posição do nosso lado, as pessoas permanecem em cima do muro. E quem está em cima do muro não está do nosso lado. Na hora do “vamos ver”, essa pessoa vai pular pro lado do mais forte. E o lado do mais forte nunca é o nosso. Porque nós somos os periféricos. Nós somos as pessoas desprovidas de recursos financeiros. Então, essas pessoas nunca vão ficar do nosso lado. Com isso, as torturas e as mortes dentro do sistema prisional seguem acontecendo cotidianamente e não há ninguém nas estruturas de poder se movimentando em relação a isso.

Eu sou muito crítica a certos padrões hipócritas que percebo nos espaços institucionais e mesmo nos movimentos sociais em relação à causa que defendo. Uma coisa que me incomodou muito, por exemplo, foi a mobilização enorme que aconteceu em função da morte do George Floyd, em 2020. Vira e mexe o caso dele é lembrado em algum ato. Não estou desmerecendo quem o homenageia nem menosprezando o caso do assassinato dele, que foi brutal. Mas fico indignada ao ver as pessoas militarem por uns – de contextos distantes – e se esquecerem de outros – que estão bem ao lado delas. Para a maioria dos casos que acontecem bem diante dos nossos olhos, o tempo todo, é como se a pessoa que cometeu um crime e morre pelo tiro da polícia não tivesse mãe, e como se essa mãe não tivesse sentimento. Como se quem foi morto não tivesse filho, esposa, irmão, irmã. Todo mundo só julga e ninguém quer saber do sofrimento de quem foi afetado por aquela morte. 

Se eu, hoje, por exemplo, convocar um ato em protesto pelo caso do Marquinho, que foi assassinado à queima roupa, numa abordagem policial que aconteceu na Vila Barraginha, em Contagem (MG), no dia 16/07/2022, acho que nenhum movimento social vai se mobilizar pra ir. O motivo? O rapaz já teve envolvimento com o tráfico. É como se, por conta disso, a vida dele valesse menos e a polícia tivesse o direito de fazer qualquer coisa com ele, e também de assassiná-lo. Mas se eu convocar um ato pelo pelo George Floyd, provavelmente, muita gente vai aparecer. 

É uma lógica muito cruel. Alguns casos ganham a mídia e, com isso, todo mundo fala deles o tempo todo, enquanto milhares de outros casos seguem invisíveis. Quantas mulheres negras são assassinadas e ninguém fala nada? Mas da Marielle se fala todo dia. E tem que falar mesmo, não podemos nos calar nunca sobre o terrível caso da Marielle. O assassinato dela foi uma violência absurda, uma enorme afronta e o maior desaforo pra população brasileira. Mas existem muitas Marielles sendo mortas todos os dias e ninguém fala nada. Existem muitos George Floyds sendo assassinados todos os dias bem diante de nós e ninguém fala nada. 

Não faz sentido nenhum as pessoas fazerem protestos por casos ocorridos em lugares distantes e não ligarem a mínima para a avalanche de gente sendo morta perto delas, na cidade delas. Eu não vi ninguém chorando nas redes sociais no dia 28/06/2021, quando a polícia matou o Ryan, de 18 anos, com um tiro nas costas e um na cabeça, durante uma ação policial no Aglomerado da Serra, em BH. Mas eu vi a mãe dele gritando de desespero. Eu vi a mulher dele caída no chão, aos prantos, repetindo desesperada que não sabia o que seria da vida dela dali pra frente. Um pedaço enorme da vida daquelas pessoas foi arrancado brutalmente. Elas ficaram devastadas. Mas eu não vi nenhum movimento social lá denunciando ou protestando.

Quando o Marquinho morreu, nosso grupo realizou dois atos na Barraginha. Ninguém apareceu. E não foi por falta de chamar. Ninguém se interessou. Isso é muito triste. Nós somos chamados para todo tipo de ato – de mulheres, de jovens, do sarau, do hip hop. Mas quando acontecem essas coisas e convocamos uma mobilização, ninguém aparece. E digo mais uma vez: não é por falta de chamar.

É isso: estamos sempre somando nas ações dos espaços de outros movimentos. Mas eles nunca estão no espaço da gente. É como se nós, mulheres que temos filho encarcerado, fossemos leprosas – aquela pessoa da qual ninguém quer chegar perto. Ninguém quer estar perto de nós nunca, sabe? É como se a nossa dor fosse pular pra elas e transformá-las em mães de pessoas privadas de liberdade. É muito difícil lidar com isso tudo.

A gente faz manifestação de familiares de pessoas encarceradas e, nelas, você não vê uma pessoa que não sejam os próprios familiares e parceiros próximos, como o pessoal do Direito e da Psicologia da UFMG. Esses parceiros vão porque estão no nosso dia a dia prestando assistência jurídica ou psicológica. Então, eles conseguem entender a nossa dor e somam quando a gente precisa. Fora isso, ninguém mais soma. É um mundo muito cruel esse em que a gente vive.

Na Rede Mães de Luta, vivemos uma situação parecida, experimentamos a indiferença, a rejeição e a crueldade. Mas já conseguimos trazer para os atos mulheres de outras lutas, que se solidarizaram com a dor daquelas que perderam os filhos assassinados. E à medida em que isso for crescendo, acredito que as Mães de MG vão acabar tendo a força de outras grandes redes, como as Mães de Maio.

Quando a gente conseguir fazer essa luta crescer, ela vai ser um movimento tão grande quanto vários outros que existem no Brasil. E isso precisa acontecer, porque em Minas Gerais tem muita mulher precisando do apoio que só uma rede como essa é capaz de dar.

Mas, ainda que tenha muita esperança, sei que construir essa luta é muito difícil. Uma das maiores dificuldades é mobilizar as próprias mulheres que perderam os filhos. É árduo o processo de apropriação do espaço da luta. Essas mulheres não estão acostumadas a um espaço de expressão e de construção coletiva. É difícil pra elas entender que o espaço da luta é delas. Essa é uma dificuldade histórica da mobilização social. Mas as mulheres da Rede Mães de Luta estão construindo, aos poucos, o seu próprio caminho.

Há momentos muito impactantes das ações dessa Rede, que mostram que ela tem uma força enorme. O momento que mais me marcou foi o do ato de 10/12/2019, no CRJ, na inauguração da grande escultura chamada “Memorial da Juventude Negra Viva”. Naquele dia, as Mães de Luta se juntaram à artista Lucimélia Romão para criar um ato de denúncia ao assassinato dos jovens negros. No ato, havia uma piscina de plástico no meio do espaço e vários baldes de água tingida de vermelho em volta. Cada balde tinha uma etiqueta com o nome de um jovem negro assassinado; de um jovem cujo sangue foi derramado. E aí, a gente caminhava até aquela piscina, virava um balde de água cor de sangue nela, e falava o nome daquela pessoa.

E foram tantos baldes que a piscina, que era de mil litros, transbordou. O líquido vermelho escorreu pelo chão. Eu olhava para aquilo e, na minha mente, vinham imagens de diversos corpos, de diversos jovens, que já vi caídos no chão, sem vida. Naquele momento, surgiram na minha mente também as imagens dos meus próprios filhos… Eu via naquele chão coberto de vermelho o terror de muita tortura e morte, que tenho presenciado ao longo de muitos anos… As imagens de tantos meninos assassinados não paravam de surgir na minha cabeça, sabe?

E teve um momento em que eu vi a própria inagem do meu filho assassinado, vi nitidamente ele caído e revivi todo o desespero que foi presenciar a morte dele. E aquilo me deu uma sensação que eu não consigo explicar… Foi como se, naquele momento, eu estivesse colocando pra fora toda aquela dor que estava acumulada dentro de mim, como se eu tivesse jogando ela pra fora junto com aquele sangue que transbordava. E era um descarrego da minha dor que não precisava de palavras, nem de alguém escutando… Eu descarreguei o sofrimento todo ali, naquela cena de terror.

Mas essa é uma dor que nunca sara, que se repete todo dia… O tempo todo eu recebo a notícia da morte de um desses jovens, me deparo com imagens deles assassinados. E é sempre bem doloroso de ver, sabe? É doído demais ver esse sangue dos meninos que não para de jorrar na maldita guerra às drogas. 

E eu fico sem entender como é que, no centro desse horror todo, está a Cannabis, que é uma planta medicinal, uma planta que salva, que cura vidas, que dá qualidade de vida para muitas pessoas, que é o melhor antidepressivo que existe né? Muitas pessoas que usam a maconha de forma recreativa são muito ativas, criativas, que não têm nem tempo pra ter depressão… Mas, como o uso dessa planta é crimilalizado, ela faz girar uma imensa engrenagem de encarceramento e de assassinato de jovens pretos. E o assassinato começa com o jovem vivo, porque quem está encarcerado já está praticamente morto. Porque ele sai da prisão doente e sem nenhuma perspectiva de futuro. O antecedente criminal impede que consiga um trabalho digno…

E é um desespero ver esses meninos numa guerra uns contra os outros. Porque eles não têm como entender quem é o nosso verdadeiro inimigo. Não podem perceber que o inimigo não é o Neguinho que mora na favela, o inimigo é o braço armado do Estado. E essa guerra precisa acabar. É por isso que, além de abolicionista, eu sou antiproibicionista. Eu acho que precisa legalizar a droga, colocar pra vender lá na Drogaria Araújo, na Farmácia Santa Clara, em tudo o que é drogaria que existe, ou então o caminho pode ser liberar que a cannabis seja vendida em um monte de tabacaria espalhada por aí. Porque, se puder vender, se for legalizado, não vai ter guerra, não vai ter morte, vai pagar imposto, e o imposto vai servir pra tratar quem fizer uso abusivo, né? Porque quem faz o uso abusivo de droga não precisa nem de prisão, nem de clínica terapêutica, porque clínica terapêutica é outro lugar de massacre. É um lugar, muitas vezes, de tortura e lavagem cerebral. Então, a gente precisa acabar com essas clínicas terapêuticas. Tem que encaminhar esses meninos para os CRAS (Centros de Referência em Assistência Social, do Sistema Único de Assistência Social), para os CREAS (Centros de Referência Especializados em Assistência Social, do Sistema Único de Assistência Social), e para equipamentos de saúde pública, para que eles recebam um tratamento adequado e acompanhamento especializado. E os locais de atendimento precisam estar bem equipados, com profissionais à disposição vinte e quatro horas por dia, para atender essas pessoas nas urgências. Só assim a gente vai conseguir manter a nossa juventude sã e protegida. Mas para chegar até isso – falo assim porque a gente precisa acreditar que é possível, um dia, chegar lá – nós ainda temos muito trabalho pela frente. Nossa luta é muito, muito longa.

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