Débora Silva – Débora Maria da Silva
História pessoal e do Movimento Mães de Maio
De 12 a 20 de maio de 2006, na Baixada Santista, aconteceu um dos maiores massacres da história contemporânea do país: foram mais de 500 pessoas executadas num confronto entre o PCC e agentes policiais. Um dia antes, no Dia das Mães, e um dia depois do Dia das Mães, nós perdemos nossos filhos. Eu perdi o meu no dia 15 de maio: um dia depois dessa data que, apesar de ter um sentido meio comercial, celebra a maternidade.
Eu me deprimi muito. Não tem jeito: a gente cai, a gente não acredita. O filho passa o Dia das Mães com você, te dá um beijo de despedida e dois dias depois você escuta a notícia da morte dele pelo rádio: uma execução aleatória no meio de uma guerra. E depois vem o descaso das autoridades, porque no Brasil não existe isso de polícia investigar polícia. Fui ficando deprimida, deprimida, deprimida, nem comia mais, fui parar no hospital de tão debilitada. E, quando estava internada, eu tive uma visão do meu menino. Ele me falou “eu não volto mais”, e me pediu pra ir à luta pelos irmãos dele que estavam vivos. Assim ele me tirou daquela cama: me dando uma missão.
Eu saí determinada a encontrar outras mães e a ir atrás de justiça. Primeiro, encontrei a Ednalva Santos, que tinha perdido o filho, e depois a Vera Lúcia dos Santos, que tinha perdido a filha, grávida de nove meses, e o genro. Isso com muita dificuldade, porque ninguém queria falar nada, todo mundo tinha medo. A Vera disse: “vocês são doidas de ir atrás dessas mortes, vocês vão morrer”… e me perguntou se eu conhecia as Mães de Acari. Eu falei que não, porque até aquele momento eu tinha vivido no meu quadrado, o que eu sabia era criar os meus filhos.
Mas nossa indignação era maior que o medo, então fomos atrás de câmeras de monitoramento, fomos à delegacia, começamos a fazer ações de denúncia. E tivemos que lutar por coisas muito básicas, como o direito de os nossos filhos não serem enterrados em valas – o que já tinha sido autorizado pelo governo. E só conseguimos enterrar nossos filhos porque o presidente do CRM (o Conselho Regional de Medicina de São Paulo), Dr Henrique Gonçalves, não aceitou aquela desumanidade e intercedeu a nosso favor. Ele nos contou que, nos dias dos crimes, viu as cenas mais horríveis do mundo nos IMLs: os corpos eram tantos que foram colocados em pilhas. E a ordem era enviar os corpos para as valas, pois “deviam ser todos de integrantes do PCC”. Ele não aceitou, pediu exames, reverteu aquele absurdo.
Um ano depois da chacina, decidimos ir a São Paulo. E eu nunca tinha subido para São Paulo. Meu pai sempre falava: “olha, quem se perder em São Paulo não volta mais para casa”. Eu fui toda desnorteada, toda hora achava que íamos nos perder. Mas fomos atrás da Ouvidoria de Polícia, porque percebemos que em Santos todo mundo era compadre um do outro: o juiz pesca com o advogado do policial, o advogado do policial é padrinho do filho do policial e por aí vai. Então, vimos que o problema era muito maior do que a gente imaginava, mas mesmo assim fomos correr atrás, fomos à luta.
A gente estava assustada e meio sem rumo, mas chegamos à Ouvidoria, demos depoimento, e eles nos falaram pra irmos ao Conselho de Defesa da Pessoa Humana, e na região tinha cavalaria, viaturas… Deu aquela agonia no coração da gente, mas mesmo assim nós chegamos lá e o presidente do Conselho nos contou que eles tinham lançado o livro Crimes de Maio, do qual a gente nem tinha conhecimento. E a jornalista Rose Nogueira, que estava lá, me perguntou se eu conhecia a luta das Mães de Maio, da Argentina. Eu respondi para ela que não. Para você ver o mundo em que eu vivia. Aí, ela me disse: “elas lutam pelos filhos desaparecidos até os dias de hoje”. Então, até ali, a gente já tinha conhecimento de duas lutas: das Mães de Acari e das mães da Argentina.
Assim a gente foi: a cada dia, íamos atrás de um órgão ou uma autoridade, e denunciávamos o tempo todo. Depois de uns dois anos, fomos conhecendo outras mães, que passavam por sofrimentos que tinham a ver com os nossos: mães com filhos no sistema socioeducativo e no sistema prisional, mães que tinham perdido os filhos assassinados por traficantes ou policiais… Foram chegando outras mulheres e outros aliados pra registrar e difundir a nossa luta, e ela foi crescendo, assim como os nossos protestos na rua.
São Paulo ficou pequena. Veja bem, a gente não sabia andar de metrô, depois São Paulo ficou pequena e a gente foi para Brasília, pra dialogar com as instâncias federais. Além disso, nos aliamos à Justiça Global e a outras instituições que trabalhavam com defesa de direitos internacionalmente. Publicamos livros sobre a luta, vieram documentários, passamos a percorrer o país. Aí, o movimento explodiu.
A atuação do Movimento Mães de Maio
O Movimento Mães de Maio é um levante que ganhou as ruas de todo o país, com uma missão: lutar pela vida da juventude – principalmente da juventude negra e pobre. É a gente lutando pelos nossos contra uma lógica de extermínio. Denunciamos que essa juventude, que é o presente e o futuro do nosso Brasil, está sendo exterminada.
Essa luta não é só da mulher que perde o filho, ou que tem um filho torturado, desaparecido ou encarcerado. Temos um apoio gigantesco de mulheres que não perderam filhos, mas que se identificam com a luta. Elas falam assim: “eu não tenho nenhum filho, mas eu luto porque meu filho é um preto, eu sou moradora de favela”, ou então “eu sou pobre e a gente tem que apoiar”, ou mesmo “eu vivo em outro contexto, mas também não quero viver numa sociedade que extermina jovens negros”.
Nosso movimento se espalha principalmente a partir de mulheres ativistas e pesquisadoras que vão se aproximando. Nos espalhamos pelo Brasil e também temos articulações com mulheres dos Estados Unidos e da Colômbia. Fizemos o Mães de Maio Colômbia e foi muito impressionante nossa identificação com as mães vítimas das Farc e da guerra civil de lá… Famílias e mais famílias foram destruídas naquela guerra. Também vivemos a guerra e o extermínio nas periferias do Brasil, então nossas histórias se conectaram: nós conhecemos essa realidade. Do mesmo modo, a gente se ligou a mães de Chicago, nos Estados Unidos, que perderam os filhos de forma violenta. São mulheres que sempre se emocionam nos encontros, não conseguem falar de tanta emoção, então nós apoiamos, nós abraçamos, para que consigam colocar um pouco do sofrimento pra fora.
Nossa luta não é só uma denúncia genérica. Queremos justiça para cada um dos entes queridos que nos foram tirados. Exigimos que os assassinatos de cada um deles não fiquem impunes. Mas, com o passar dos anos, a gente foi vendo que as coisas caminhavam era pra não dar em nada, que as investigações buscavam era alguma coisa na vida da pessoa assassinada que pudesse associá-la ao crime (como se isso justificasse a execução da pessoa). Fomos vendo uma dança dos carimbos, em que ninguém investigava ninguém… E logo começaram os arquivamentos dos crimes. Sempre buscamos todas as medidas judiciais possíveis para barrar isso, mas logo percebemos que precisaríamos seguir outro caminho: agir em várias frentes para que os crimes não fossem esquecidos, para que chamassem sempre a atenção, para que houvesse sempre alguém interessado remexendo nesse assunto.
Uma coisa importantíssima que fizemos, já no começo da nossa luta, foi exigir um tratamento respeitoso da mídia. Falamos pros veículos que não aceitávamos o rótulo que o governo deu, de “ataques do PCC”. Que o correto seria falar em “crimes de maio”. Conseguimos mudar isso. Hoje em dia, até o próprio governo fala “crimes de maio”. E a imprensa passou a ter uma relação muito próxima conosco, discutia a matéria com a gente antes de ir ao ar…
Uma importante tática nossa foi sempre estar nas ruas, fazendo atos de protesto nos dias dos massacres, nas datas de Direitos Humanos, em protesto a alguma decisão do governo ou do judiciário. E, quando a gente vai pras ruas, é com o nosso jeito de nos expressarmos. Levamos sempre muitas fotos: pirulitos com as fotos dos meninos assassinados, camisas e bandeiras com as fotos deles, as fotos deles plastificadas. Essas fotos são uma marca do nosso movimento, porque a foto chama a atenção e mexe com as pessoas, que param para ver. E levamos sempre as faixas, porque elas mexem com o sistema. Elas pisam no calo do sistema. A polícia, por exemplo… no que ela repara primeiro e com o que ela mais implica? Exatamente com as frases das faixas, porque geralmente elas dão o recado de um jeito direto e muito forte. Uma das primeiras faixas que fizemos, e que usamos até hoje, diz: “Nossos mortos têm voz”. Esse é um jeito de dizer que não aceitamos a impunidade e não vão conseguir nos calar.
Sempre buscamos, em cada lugar, fazer ações com mulheres e jovens. Eles são o sentido maior da nossa luta e dão energia para ela. A gente também sempre trabalha com teatro, música (rap, funk, o que for), dança, vídeo, com o pessoal das artes plásticas. Sabemos que temos que trabalhar junto com a arte. É que sem arte a gente não consegue mostrar o que de fato precisa: o que a gente é, que é super ligado ao que a gente sente.
Já viemos várias vezes a Belo Horizonte realizar encontros e atos. Fizemos ações na UFMG, em ocupações e outras periferias. Mas nosso encontro com a Kaká Silveira, que teve o filho assassinado em BH e depois acabou criando o Mães de Maio Minas, foi inicialmente pelas redes sociais, em 2015. Foi nas redes que ela nos descobriu. Naquele ano, realizamos um evento na Praça da Sé e a convidamos. Ela chegou com uma foto plastificada do filho, que ela sempre carrega, até hoje. Quando viu o tamanho do ato, ela ficou tão emocionada que não conseguia falar ao microfone, quase desmaiou.
Era agonizante ver o isolamento dela, que não encontrava outras mulheres pra construir a luta em Minas, e estava desesperada. A gente sabe que o isolamento maltrata, fere. E não queremos isso de jeito nenhum. Aí, fomos incentivando ela a participar, mesmo que não entendesse as discussões, de início. Mas participando é que a gente vai aprendendo. Também incentivamos ela a procurar o conhecimento, e ela voltou a estudar, e hoje faz faculdade de Serviço Social. Mesmo com toda a dor, ela procurou o conhecimento. A Kaká surpreendeu muito.
Assim como acontece com muitas outras, com ela foi assim: plantamos uma semente no coração dela, e essa semente que precisou de muito adubo, porque ela não tinha paciência de ir entendendo os processos aos poucos. Então, eu brigava tanto com ela, mas brigava com amor. Porque quando a gente multiplica o Movimento Mães de Maio a partir do trabalho de outras mulheres como a Kaká, a gente não quer estátua nem clone, a gente quer a transformação.
E a Kaká não desistiu, até que encontrou as mulheres da Rede Mães de Luta, que apoiaram ela na criação, finalmente, das Mães de Maio Minas, em 2018. Uma vez, eu li num texto do Marighella, a frase “a luta perdida é a luta que a gente desiste”. A Kaká provou que ele estava certo.
O caso da Kaká exemplifica outra de nossas táticas: formar e espalhar multiplicadoras nos territórios. Tentamos acolher sempre e não deixar nenhuma desistir porque o que a gente mais quer é que em cada território haja mulheres defendendo a bandeira da luta contra a violência do Estado. E a gente acredita que a mulher, ao ser protagonista em seu território defendendo essa luta, cria um escudo, se fortalece para não se curvar. A gente diz: “não é porque tu perdeu o teu filho que tu vai se curvar para o Estado ou então cair para dentro de uma igreja para ser escrava do pastor”.
Um grande pilar da nossa luta é a certeza de que ela tem que ser construída por nós, a partir de nós: mulheres que são pobres e periféricas, sendo que a maior parte de nós é negra. Então, não acreditamos na esquerda do asfalto, na democracia branca. Nós exigimos é a democracia racial. Não há como querermos que os brancos acabem com o racismo. A dificuldade que é a discussão das cotas mostra isso. Então, a mulherada negra tem que buscar é ganhar as ruas e ocupar os espaços de poder – não pra repetir o apego aos privilégios, mas para incomodar e multiplicar a resistência. O caminho é o povo preto dentro dos espaços. Ocupar e resistir, e não ocupar e se acomodar.
O conhecimento também tem que ser um patrimônio nosso. Por isso, a gente faz um enfrentamento com as universidades também. A gente não quer ser pessoa-laboratório. Fomos entendendo que muitas vezes servíamos como laboratório para o privilégio, e esse privilégio não nos dava uma devolutiva de multiplicação. Então, tem mais de 200 pesquisas sobre o nosso movimento, nós servimos às universidades pra produção de um volume tão grande de material, e a gente se pergunta: “onde tá quem se formou? Cadê a pessoa para colaborar?”. A maioria some, dá tchau vai embora.
Então, nós fizemos um movimento de fora pra dentro: fomos ocupando, ocupando, ocupando… Hoje, em dia criamos nossas próprias pesquisas. Já atuei em algumas elas, tendo o reconhecimento de pesquisadora. De 2018 para cá, já desenvolvemos pesquisas com as universidades de Oxford, Harvard e Chicago, além da Unifesp – Universidade Federal de São Paulo. Levantamos o perfil das vítimas dos crimes de maio, investigamos as injustiças sociais de que somos vítimas, abordamos a saúde mental das mães que tiveram os filhos assassinados.
A gente segue aí, dizendo que a teoria pela teoria constrói é robô, e ainda por cima um robô que nos usa. E a gente precisa colocar a universidade na responsabilidade dessa transformação do sujeito, então nós partimos para cima e dissemos: “a produção do conhecimento é nossa. Não é só do acadêmico”.
Por conta de tudo o que já fizemos e dessa nossa postura, somos convidadas a fazer várias formações com conselhos de direitos, com o Ministério Público e outros órgãos do Judiciário, o Fórum de Segurança Pública, a Escola de Magistratura. E os juízes tiveram que ouvir de nós que não estão agindo de forma humana embaixo da toga, que a caneta deles muitas vez é uma máquina que, sem reflexão, mata, encarcera, tortura… Num evento, a professora de Harvard quis dividir a fala dela comigo. Porque é isso: o protagonismo é nosso.
O Boaventura uma vez falou que “a universidade foi feita para o capital”. As mães estão aí para destruir essa tese. E a melhor tese, que derruba qualquer outra, é o fator surpresa. As Mães de Maio são uma surpresa dentro da Universidade. E assim a gente vai ocupando as universidades e caminhando pra mudar a sociedade, pois muitas bases dela são construídas dentro das universidades. Por exemplo: de onde vem o juiz? De dentro da universidade. Então, a gente tem que estar lá onde ele se forma.
Uma sociedade se faz, também, com leis. Por isso, a gente batalha pra ter projetos de lei que reconheçam, em todos os estados, Semana Nacional de Luta das Vítimas da Violência do Estado, que vai de 12 a 19/05. São Paulo e Rio de Janeiro já têm essa lei. Junto com ela, a gente reivindica também medidas de reparação, mas sabemos que elas são bem mais difíceis de alcançar.
Num movimento como o nosso, que bate de frente com esse sistema que é uma máquina de moer gente, muitas ficam pelo caminho. Mas a gente também sabe que quando uma cair já deixou a semente.