Alga Marina Silva
Me chamo Alga Marina Silva. Trabalho com comunicação, educação popular e mobilização social. Sempre tive um grande interesse nesses dois campos, e também nas lutas sociais. Por isso, a Comunicação Social foi a minha escolha quando entrei na UFMG, aos 19 anos, através da política de cotas. Pra mim é muito importante falar que o meu ingresso foi pelas cotas, pois tem a ver com minha trajetória de vida e minha identidade.
Na época da graduação, eu tinha o desejo de atuar em escolas, realizando ações que aproximassem a comunicação e a educação. Por isso, decidi fazer uma entrevista para um projeto de extensão da UFMG chamado Colabora, que realizava ações de educomunicação junto a escolas públicas e tinha atividades no Plug Minas (centro de formação do Governo de MG, que tem núcleos educativos realizados em parceria com diversas instituições, sendo a AIC uma delas). Na época, eu não sabia que o projeto era uma realização da AIC (Agência de Iniciativas Cidadãs) com a UFMG. Mal sabia eu que a relação com a AIC viria a ser muito marcante pra mim. Enfim… Era um projeto que tinha tudo a ver comigo, e eu fui aprovada!
O Colabora foi um projeto muito interessante, pois teve diversos debates e ações, envolvendo equipes escolares e estudantes, que propunham a escolas públicas práticas mais participativas e criativas de construção do conhecimento em sala de aula. Isso foi muito forte especialmente nas atividades do projeto voltadas a duas escolas vizinhas do Plug Minas: a Escola Estadual do Instituto Agronômico e a Escola Estadual Amélia de Castro Monteiro. Os estudantes dessas duas escolas, em parceria com a equipe do projeto, criaram uma Agência de Comunicação, uma Gráfica Jovem e uma Rádio Escola. Publicaram jornais, fanzines, livretos; produziram e difundiram conteúdos em rádio e vídeo. Também realizaram vários eventos de integração entre eles e deles com os professores. Foi uma experiência com a qual me envolvi muito e na qual pude conhecer o modo de trabalhar da AIC.
A partir da conexão criada com o Colabora, consegui também um estágio na AIC. Uma das atividades do estágio era a de atuar na frente de apoio comunicacional aos grupos e movimentos sociais. Foi assim que eu conheci o Fórum das Juventudes. Nasceu, ali, mais ou menos em 2016, um vínculo que foi um divisor de águas pra mim. Nos debates, nas mobilizações e nas atividades do dia a dia, e depois no processo super intenso de ocupação do CRJ (Centro de Referência da Juventude), identifiquei que as juventudes eram a minha pauta, a minha luta. Até então, eu já havia contribuído com alguns movimentos feministas, mas não tinha feito parte efetivamente da construção de um coletivo. Trabalhando com o Fórum, eu pude fazer parte dessa construção profunda e me encontrei.
Fui me envolvendo cada vez mais com o Fórum. O que começou como um trabalho/estágio, foi se tornando ativismo: me vi como parte de uma mobilização. Após a ocupação do CRJ, participei da organização de um seminário em que discutíamos exatamente os caminhos para a gestão democrática daquele equipamento público. A construção do evento foi bastante desafiadora, pois era um passo decisivo para ir adiante com aquela luta e todo mundo estava bem desgastado depois do processo todo da ocupação. Eu fiquei responsável por mobilizar as pessoas para ajudar e participar. Também atuei na montagem de uma linha do tempo da história do CRJ. Foi um processo que me envolveu bastante e se tornou umas das minhas principais prioridades.
Então, num percurso que começou com as primeiras atividades pela AIC e vem acumulando inúmeras ações marcantes, como a ocupação do CRJ, o seminário pós ocupação, os Okupas e tantas outras experiências, me tornei ativista do Fórum das Juventudes. Não sei dizer um dia específico em que isso aconteceu: fui participando e gradativamente me sentindo e fazendo parte dessa rede, num processo muito espontâneo e apaixonante. Preciso destacar ainda que, de processo em processo, o Fórum me formou: me descobri como educadora popular à medida em que fui vivenciando e desenvolvendo os processos educativos do Fórum das Juventudes.
É claro que, tanto do ponto de vista pessoal quanto do coletivo, tem sido uma trajetória cheia de desafios, com momentos muito difíceis. O seminário pós ocupação do CRJ foi um deles. Foi um evento muito conflituoso. Sofremos um ataque de bolsonaristas que tumultuaram a reunião com gritos e xingamentos. Lembro principalmente de um homem com capacete na mão e camisa do Bolsonaro, que berrava coisas super violentas ao microfone. Os bolsonaristas tomaram o evento de assalto e nos desestabilizaram muito. Havia uma pauta fundamental a ser discutida ali, mas boa parte da nossa energia foi para tentar barrar aquela violência extrema.
Apesar dos desafios e dos conflitos políticos, podemos ver que o resultado de toda a luta do CRJ teve bons frutos, e que hoje ele tem abertura à participação. É claro que ainda há muito o que se avançar em termos de orçamento para a estrutura e a programação do espaço, mas os gestores públicos sabem que é preciso dialogar com as juventudes para definir o que acontece no Centro de Referência da Juventude. É bom ver uma política pública diretamente impactada pelo nosso trabalho e suor.
O Fórum faz muita diferença na vida concreta dos e das jovens junto aos/às quais realiza ações educativas. Possibilitamos problematizações e aprendizados importantes, a partir dos quais as pessoas ressignificam muitas coisas que vivem, ao entendê-las como processos ligados a preconceitos e a lógicas de exclusão social. Essa ressignificação leva a ações, impacta nas trajetórias de vida. Contudo, algumas causas/pautas que o Fórum defende ainda são muito distantes de uma perspectiva de transformação efetiva. Em relação a pautas como as de construção de novas políticas de drogas e de segurança pública e a da luta pelo fim do genocídio da população negra, nós do Fórum conseguimos testemunhar debates e mobilizações tomando forma, pequenos avanços e vários retrocessos. Sabemos que o resultado que desejamos será colhido apenas pelas próximas gerações.
É, portanto, na lida com as juventudes das periferias que nós do Fórum construímos o que ele tem de mais rico: exercícios experimentais – práticas criativas e abertas, que utilizam metodologias participativas e são pautadas no diálogo – para identificar e amadurecer pautas, propostas de ação e ações. Discutimos com coletivos de diferentes regiões da RMBH e, com efetiva participação deles, construímos nossas propostas e cada uma de nossas atividades. Eu amo ir aos territórios e organizar atividades presenciais, na ponta! Essas metodologias de construção coletiva são muito enriquecedoras e gosto bastante de trabalhar com elas.
Um dos episódios mais marcantes que vivenciei no Fórum foi a construção do 7° Okupa, cujo evento de culminância aconteceu no dia 08/07/2017. Foi o primeiro de que eu participei, e ele parecia um festival, me encantei muito pela efervescência que vi ali. Fiz parte de uma discussão sobre saúde e, no nosso debate, identificamos que o que predominava era um único modelo de corpo saudável: o corpo magro! Construir tal entendimento foi importante para amadurecer, pessoal e coletivamente, nosso entendimento sobre saúde, padrões corporais impostos, e o impacto desses padrões sobretudo para as mulheres – o que conhecemos como “gordofobia”.
O 8° Okupa (cujo evento de culminância aconteceu no dia 29/09/2018), foi bem legal também. No dia do evento de culminância propriamente dito, tivemos um público bem menor do que esperávamos, em função de uma série de problemas. Choveu bastante (um temporal, mesmo), coincidiu com o #EleNão e era um momento especialmente complicado para qualquer mobilização: vínhamos de um processo de muito desgaste, frente à avalanche de retrocessos desde o golpe de 2016; o assassinato da Marielle havia acontecido em março, e nos abalou demais; estávamos diante da ascensão do Bolsonaro, que viria a ganhar as eleições presidenciais daquele ano… Mesmo assim, naquele dia, tivemos momentos muito especiais, como a participação da Áurea Carolina, que fez uma fala bem marcante!
Mas o evento é um pequeno pedaço de um amplo processo. Realizamos diversas atividades ao longo do 8º Okupa, cujo tema eram as violências institucionais. Trabalhamos com o Teatro do Oprimido, que propunha uma série de dinâmicas teatrais criativas e reflexivas para os jovens. Em uma dessas atividades teatrais, teve um rapaz que me impressionou bastante. A proposta era que cada um de nós encenasse uma vivência de violência institucional que tivesse nos marcado profundamente. Então, ele se ajoelhou, entrelaçou os dedos por trás da cabeça e interpretou uma cena de violência rotineira do sistema socioeducativo, pelo qual já havia passado. Foi muito forte, sensível e emocionante! Foi um momento de partilha de dores, mas não só! Tínhamos a liberdade de compartilhar e transbordar nossas aflições e afetos. Falo em transbordamento porque, ali, nós fomos além de expressar o sofrimento, foi um processo de ressignificação. Ao encenar e assistir encenações de traumas relacionados a experiências de violência, expressar o sofrimento que carregamos e falar dele, tentando entendê-lo juntos, surgia algo diferente. Há uma possibilidade de ressignificação do vivido quando se olha para a vivência do outro e se é olhado pelos olhos do outro.
Depois disso, tiramos alguns encaminhamentos, não tão práticos como gostaríamos, mas que foram importantes para compreendermos o sentido da corresponsabilidade, no âmbito da sociedade, do Fórum e da própria produção do Okupa. Um desafio que enfrentamos coletivamente, por exemplo, foi em relação aos banheiros. De início, pensamos em abolir o gênero nos banheiros, mas entendemos que mulheres cis ficavam desconfortáveis frequentando o mesmo banheiro que homens cis. A partir desse incômodo, que se tornou público, separamos um banheiro para mulheres cis e trans e outro para quaisquer outras pessoas.
Assim como nos outros Okupas, tivemos também Okupinha, que existe para que mães, pais, crianças e cuidadores de crianças participem das atividades. Eu amo atividades com crianças! Fazemos com elas algumas dinâmicas ligadas aos temas que estamos discutindo. Uma vez, perguntamos: “Qual a cidade você quer?”. E uma criança respondeu: “uma cidade toda feita de algodão”. Partindo desse ponto da fantasia, conseguimos, nas conversas com elas, vislumbrar ideias e perspectivas que se somavam às discussões do projeto. A importância desse tipo de espaço é sempre ressaltada pelas mães.
Muitas pessoas e grupos que fizeram parte desses movimentos em 2016/17 (Academia Trans Literária, MST e Coletivo Terra Firme, por exemplo), de certa forma, ainda fazem parte do Fórum até hoje. Isso acontece porque, embora muitas organizações se transformem ou mudem sua dinâmica ao longo do tempo, grande parte das pessoas que eram referências naqueles anos ainda têm ligação com o Fórum. Essa ligação com / entre coletivos dá vida à nossa rede.
O 10° Okupa, cuja culminância foi em setembro de 2022, trouxe à tona esses sujeitos essenciais, por meio de uma exposição de coletivos que participaram dessa história ao longo da última década.
O Fórum é muito importante para as lutas da cidade e enxergo o Okupa como um de seus motores de mobilização. Muitas pessoas se inseriram no Fórum através do Okupa. E não é só o evento em si o importante, é todo o processo do antes, durante e depois, numa construção que cria vínculos que proporcionam a participação das juventudes e, por consequência, a incidência política do Fórum nas cidades de Belo Horizonte e redondezas.
O principal papel do Fórum na sociedade é o enfrentamento às violências institucionais que acometem as juventudes e a promoção dos direitos dessa população. O Fórum das Juventudes realiza atividades visando o enfrentamento ao racismo no âmbito das instituições, levando em conta a interseccionalidade, pois também trabalha questões de gênero – com destaque, hoje, ao combate à transfobia. Tratamos da violência institucional que é percebida nas polícias, nas escolas e postos de saúde. Mas nosso maior enfoque tem sido na questão da segurança pública, porque ela está na raiz do genocídio da juventude negra. Contudo, temos que tratar disso sem perder de vistas as inúmeras outras violações de direitos cotidianas. O problema é que as pautas são tantas, é tão grande a quantidade de tarefas a realizar e de disputas que precisam ser travadas, que somos obrigados a escolher pautas e ações prioritárias.
Acredito que, atualmente, a ação do Fórum que mais incide na realidade cotidiana das juventudes são as atividades voltadas ao fortalecimento dos grupos que atuam nos territórios. Promover o protagonismo, empoderar, fortalecer a organização das ações coletivas e democratizar saberes sobre mecanismos para os necessários enfrentamentos políticos e institucionais é uma forma de prevenir violências e preparar os jovens para quando elas ocorrerem.
Apesar de avançar em várias discussões e do crescimento da participação das comunidades locais nas atividades do Okupa, a atuação do Fórum ainda é restrita no que se refere ao diálogo com a sociedade em geral. Ainda há muitas barreiras, relacionadas aos valores nos quais acreditamos, à comunicação que queremos construir, e à nossa própria capacidade de alcançar vastos públicos. Quanto aos valores, defendemos direitos que vêm sendo sistematicamente negados na onda reacionária que temos vivido no país desde a década passada – isso faz com que, muitas vezes, as discussões do Fórum fiquem mais restritas aos grupos que já o compõem. Para exemplificar, existe um conflito agravado pelo contexto político de nossa época, em que instituições do tipo “família” não lidam bem com membros da comunidade LGBTQIAP+, que é um dos públicos prioritários atendidos pelo Fórum. Já a nossa comunicação, por ser fundamentalmente participativa, tem os seus limites em termos de abrangência. Por fim, nossa pequena estrutura não nos permite ações para públicos super amplos.
Mas a potência da nossa comunicação são a criatividade e a vitalidade. Realizamos coisas muito impactantes, como a campanha “Juventudes Contra Violência”, a plataforma política e os ciclos de avaliação dos candidatos a cargos do poder executivo e legislativo – um dos ciclos, por exemplo, teve o ranking “Bola Cheia, Bola Murcha”, em relação a aspectos como os programas de segurança pública defendidos pelos candidatos.
Ao longo das campanhas, fomos percebendo a necessidade de tratar com muito cuidado das violências vividas pelas pessoas porque, por mais que conferir visibilidade aos casos seja relevante para criar pressão política sobre uma determinada pauta, há também o risco de se cometer uma dupla violência ao perguntar, por exemplo, para uma pessoa que foi vítima se ela lembra do número de identificação do agente público (policial, por exemplo) que a agrediu ou violentou. Muitos tem medo de algum tipo de retaliação ou o trauma é tão forte que não querem revisitar essas memórias, embora o número de casos de violência envolvendo agentes da segurança pública que identificamos seja realmente muito alto. Além disso, a denúncia formal é um processo muito burocrático, e as pessoas não têm a informação, a disposição e o preparo necessário para passar por todas as etapas, que são demoradas e há sempre o risco de “não dar em nada”. Compreendemos quando um jovem faz a denúncia na roda de conversa, mas se recusa a dar prosseguimento em uma ação pelo viés da política, da comunicação, da institucionalidade.
As denúncias e as críticas estão presentes nas músicas e nas poesias dos participantes, mas muitas vezes não há um viés institucional para elas. Realizamos, por exemplo, uma campanha em vídeo chamada Caso de Polícia, integrante do 8º Okupa. A proposta era que cada pessoa relatasse uma violência vivida por outra pessoa. Por exemplo: um jovem negro cis hétero contando a violência sofrida por uma mulher – ele contando em primeira pessoa. A campanha está no YouTube, no link: https://youtu.be/U8wXwEFwSzw. O resultado ficou bem diferente da nossa ideia original: o foco ficou nas denúncias, sem abordar de forma mais direta a necessidade de modificar as instituições, os canais e os instrumentos de denúncia, para que se tornem aliados, ao invés de inimigos, dos jovens. Mas a campanha ficou bem interessante, com relatos e performances fortes. E é assim mesmo: às vezes, a discussão toma um aspecto de denúncia, mas não se desdobra em uma proposta concreta a ser endereçada a instâncias de mobilização social e ao próprio Estado.
Essa campanha em vídeo teve um papel importante: deu materialidade para as discussões do Fórum acerca das violências institucionais, a partir do acolhimento e da escuta dos jovens, mas encontramos dificuldades em elaborar propostas de soluções práticas para o problema. Até mesmo para a elaboração de um produto comunicacional, encontramos algumas barreiras, como o medo das pessoas se exporem após sofrerem algum tipo de violência, ou o trauma de não quererem que aquilo fosse exposto ou sequer mencionado novamente. Transformar relatos de violações sofridas em campanhas de comunicação exige, enfim, cuidados éticos relacionados às dores e aos riscos enfrentados pelas vítimas.
Com o projeto Baculejo, que veio depois, que tinha um canal de denúncia anônima e o encaminhamento de denúncias ao Ministério Público, há outra delicadeza. Às vezes, queremos no curto prazo uma resposta do poder público, mas o tempo das instituições públicas é diferente do nosso. E, quando a resposta não vem ou custa demais a vir, acontece uma desmobilização.
Numa roda de conversa, a gente consegue umas 30 denúncias facilmente. Mas, na hora dos procedimentos institucionais de denúncia, muitas respostas são imprecisas e isso agrava a já tradicional morosidade do andamento dos processos, ou mesmo impede que avancem. Há ainda um cotidiano cheio de urgências e uma rede de proteção exaurida. Por exemplo: certa vez, uma menina trans que participava do Fórum foi expulsa de casa. Nós corremos atrás de possibilidades de abrigo para ela e a mais aberta era a Casa Tina Martins, que acolhe mulheres vítimas de violência. A Tina Martins, contudo, estava cheia e não tinha lugar para ela ficar. As possibilidades emergenciais foram se esgotando, até restarem ajudas improvisadas, de acolhimento temporário pelas próprias pessoas do Fórum.
Vivemos esse dilema de ser uma rede de ativismo e de proteção, mas ao mesmo tempo estarmos diante de problemas gigantescos, que deveriam ser tratados com seriedade pelo Estado, e não por redes como a nossa, que têm uma limitada capacidade de atuação. Isso se evidenciou de forma dramática na pandemia, que agravou profundamente a pobreza e as vulnerabilidades. Os jovens atendidos pelo Fórum foram um dos segmentos mais atingidos, e eles passaram a trazer demandas cada vez mais urgentes, como a necessidade de cesta básica, moradia e segurança. Fizemos ações para tentar reduzir o impacto da fome nas comunidades em que atuamos, por ativismo, por sentir que não dá pra cruzar os braços diante de tanto desespero. Mas entendemos que esse tipo de demanda não deveria estar no nosso escopo de atuação – até porque não temos recursos para lidar com elas –, e sim no das políticas públicas. É por isso, também, que lutamos.
Se me perguntarem qual é a maior riqueza do Fórum, e eu só puder escolher um aspecto dentre todas as coisas que ele faz, minha resposta será: o processo criativo. É claro que a gente quer estar nos espaços da cidade e dar o recado bem dado, e que preparamos cada intervenção cuidadosamente, pensando em impactar os públicos, em chegar a cada espaço de um jeito bem marcante. Mas o que nos anima, o que faz o olho brilhar são os processos. A gente fala que o Fórum tem “metodologias coloridas”: um jeito vibrante de colocar as pessoas pra dialogar e pra criar juntas. E as metodologias só são coloridas porque nos dedicamos muito a elas e porque elas são criadas coletivamente, de verdade.
Nossa lida com a dor também merece ser ressaltada. Para falar dela, vou contar de uma imersão de planejamento que o Fórum realizou em 2018, que me marcou demais. Foi um encontro em que as pessoas compartilharam muita dor, muito sofrimento. Mas foi também muito bonito, muito mágico. Tinha muita dor na nossa vida ali (o golpe contra a Dilma e tudo o que veio depois, a onda ultra reacionária, os retrocessos), precisava haver também espaço pra ela.
Olha, tratar de tanta dor é muito difícil. No nível macro, é só impossibilidade. Mas, no cotidiano, eu acho que há um caminho de falar, ser acolhido e politizar essa dor. A gente dá vazão, compartilha, escuta… E essa coisa de escutar e ser ouvido é muito presente no nosso dia a dia. Mas não é só desabafo não, sabe? Eu acho que, aos poucos, a gente muda de posição. Ou aos poucos a dor é que se muda de lugar dentro da gente, sai das sombras. O que eu sei é que há um movimento – e muitas vezes ele é intenso, até. É o que acontece, por exemplo, com uma jovem que sofre uma violência sexual e se culpa: “eu não devia ter saído, eu não devia ter usado aquela roupa, eu dei mole, eu pedi por isso”. Ela fica repetindo para si mesma os absurdos que está acostumada a ouvir. Além do horror da violência em si, ela enfrenta essa segunda violência, que é a culpabilização da vítima, tão comum em nossa sociedade machista. Quando compartilha isso com outras mulheres, quando ouve relatos de violências parecidas com a dela acontecendo, independentemente da circunstância, quando as meninas mais envolvidas com a luta feminista problematizam, trazendo discussões sobre a cultura do estupro no contexto da sociedade patriarcal e machista, aquele sofrimento sai do lugar só do escondido, da vergonha e do pavor. Ele vira raiva, ele vira vontade de proteger outras mulheres, de evitar que também passem por isso… Ele vira indignação: ódio, repulsa e não aceitação da injustiça.
Tem uma coisa muito forte no Fórum que é ligada a esse deslocamento. Eu acho que participar do Fórum das Juventudes é uma experiência em que os jovens e as jovens aprendem, nas conversas, que os lugares que já estão dados para eles – lugares que não têm dignidade, são violentos e preconceituosos – são injustos. E aí eles se deslocam e ocupam lugares que normalmente não são para a juventude negra e de favela. E eu penso muito que, por mais que a gente esteja longe de um cenário de conseguir, pela nossa ação de formiguinha, transformar as grandes estruturas que oprimem esses jovens, talvez a presença dessas juventudes em determinados espaços, em si, seja a nossa grande ação comunicativa.
Ocupar, palavra tão fundamental pro Fórum, tem a ver com uma presença que, por si só, afirma: esse espaço aqui vai ter que ser mais democrático agora, porque estamos aqui e vamos exercer nosso direito de circular e de nos expressar. E isso vale pra qualquer espaço: seja a praça, o centro cultural, o equipamento público de juventude concebido sem participação dos jovens, a câmara municipal, a assembleia legislativa, os espaços acadêmicos. Acho que possibilitar esse movimento, esse deslocamento, e assegurar essa presença das juventudes nesses espaços que não foram feitos pra ela talvez sejam as coisas mais importantes que realizamos em termos de mobilização social.