Bárbara de Faria Afonso

Me chamo Bárbara Afonso. Sou psicóloga e psicanalista e, desde o meu curso de graduação, atuo junto a adolescentes e jovens em conflito com a lei, que são o público com o maior risco de morte violenta no Brasil. Atuei como estagiária na Vara Infracional da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça, depois como profissional em iniciativas como o Programa Fica Vivo e, desde 2019, o Desembola na Ideia, projeto da AIC que oferece atendimento psicanalítico e atividades artísticas a esse público. Também me interesso e sou envolvida com a pesquisa de questões da subjetividade dos adolescentes e jovens em conflito com a lei. Acredito que, em função dessa minha trajetória, fui convidada pela AIC para uma ação que a instituição realizou junto com a Rede Mães de Luta: o projeto “Rede Mães de Luta: Fortalecendo a Resistência”, que aconteceu entre setembro e dezembro de 2021 para reaquecer a mobilização da rede, após o longo período de isolamento social que se fez necessário em função da pandemia da Covid-19.

Trabalhar com as mulheres da Rede Mães de Luta naquele projeto foi uma experiência muito rica. São mulheres com vidas muito duras, muito sofridas. Dar um jeito de se encontrarem presencialmente é algo extremamente desafiante para elas, pois moram em territórios muito distantes uns dos outros, espalhados pela RMBH. O tempo delas também é muito exíguo. Elas trabalham demais, é tudo super puxado. Tem ainda a questão das famílias, nas quais elas muitas vezes são provedoras, cuidadoras… São muitos desafios a vencer para conseguir participar de cada reunião.

Elas são tão exigidas no sentido de cuidar de outras pessoas que, muitas vezes, fica difícil para elas conseguirem voltar o olhar para simesmas; para as dores que elas enfrentam. E eu acho que esse nome que elas escolheram para a rede – Mães de Luta – já sinaliza, ao mesmo tempo, uma saída política e subjetiva para as opressões e os sofrimentos. Já indica que uma coisa não é possível sem a outra: subjetividade e luta política se entrelaçam.

Tem algo muito forte nessa rede, que é o testemunho. Para nós que trabalhamos com a psicanálise, ele é essencial. É só a partir do momento em que alguém topa dizer alguma coisa da dor, do sofrimento, e em que há outro alguém ali para escutar, como uma pessoa que testemunha o que que é a dor do outro, que pode haver um lugar de escuta, a partir do qual alguma transformação se faz  possível. O Vladimir Safatle defende a ideia de que há uma política dos afetos: algo precisa operar na dimensão subjetiva; há uma conexão entre mobilização afetiva e política.

Pensando no trabalho das Mães de Luta a partir desses elementos – subjetividade e política –, há uma questão que é ao mesmo tempo potência e desafio. Para essas mulheres, é muito difícil ter algum lugar para falar da dor da perda dos filhos que foram assassinados, seja dentro do sistema carcerário, seja em outros contextos de responsabilidade do Estado, seja em uma das inúmeras outras situações de violência decorrentes do racismo estrutural. Pela dureza de ter que dar conta da rotina do dia a dia, de ter que dar conta dos outros filhos, além do trabalho e tudo o mais, fica muito difícil para elas terem um lugar para mostrar o quanto a perda do filho dói, o quanto machuca.

Cada encontro da Rede é muito importante para elas como esse espaço em que é possível falar das perdas e dores, em que uma consegue fortalecer a outra, em que cada uma vai dizer um testemunho da sua história, da perda que vivenciou. Essa troca fortalece, possibilita a cada uma delas pensar que não se está sozinha, que existe um grupo de mulheres vivenciando as mesmas coisas, e que tais coisas são injustiças cometidas contra pessoas negras, principalmente. E é uma troca que envolve outras mulheres, que vivem questões afins: que têm filhos ou maridos encarcerados, por exemplo.

Por outro lado, é preciso criar algo a partir de tudo aquilo que aparece ali, para não retornar, para cada uma e para o grupo, só a impotência, a tristeza, a impossibilidade – só o que já se perdeu, o que não tem mais jeito. Então, fica sempre a pergunta: como é possível fazer com que o afeto do luto possa retornar em alguma coisa que seja luta?

Mas, sem dúvida, estabelecer o espaço em que as mulheres podem falar sobre o que viveram e outras podem testemunhar aquilo sem haver um olhar que julga é, com certeza, o primeiro ponto importante que o grupo precisou  trabalhar para, assim, fazer a travessia que torna esse luto compartilhado o ponto da luta. 

Vimos isso acontecer no “Fortalecendo a Resistência”: as mulheres falaram muito do que significava para elas serem vistas – por conhecidos, familiares, vizinhos – como uma mãe “ruim”. Repetiam coisas horríveis que costumavam ouvir. Coisas como: “Ah! Foi o filho dela que morreu, né? Ela que não foi uma boa mãe. Ela que não soube criar”. Ou “o filho era um vagabundo mesmo, então merecia morrer”. Julgamentos que as aprisionavam num lugar de vergonha e culpa, e ao mesmo tempo as deixava sem ter onde dizer desses afetos, onde compartilhar experiências com outras mulheres que pudessem entender o que elas viviam – com outras mulheres que também vivenciaram essa perda. 

Acho que é esse o ponto do luto para a luta. É claro que não se trata de acreditar que, em quatro meses de projeto, tudo se resolveu e foi construído o caminho para luta. Não é nada disso. Inclusive, porque não há caminho linear nessa experiência. É um caminho de idas e vindas, é um processo em que sucumbir à dor e construir algo a partir dela são processos que andam lado a lado.

Então, não fizemos encontros com a pretensão de avançar linearmente numa pauta ou num entendimento. Fomos intercalando diferentes momentos. Houve rodas de conversa em que a tônica era falar de dor, nos quais, ao mesmo tempo, perguntávamos: “o que que a gente faz com toda essa dor que está aí?” Houve momentos em que foram lançados pontos para discussão. Houve momentos em que tentamos encontrar modos de manifestar publicamente todas aquelas questões que as mulheres apresentavam. 

Num dos momentos, foi proposta a discussão do contexto ampliado da luta, e dialogamos um pouco sobre necropolítica. A equipe provocou essa discussão entendendo que aprofundar na reflexão sobre a injustiça seria essencial para pensar em como a Rede Mães de Luta se inscreve nas lutas dos Direitos Humanos (DH), em como ela pode manifestar a sua luta específica, e em como ela pode fazer conexões com defensores de DH, para que eles então levem a pauta adiante.

A Vivi Coelho lançou essa palavra – necropolítica – e foi colhendo entendimentos individuais para a construção de um entendimento coletivo da palavra. E foi interessante, porque o entendimento estava lá: a injustiça é profundamente sentida e compreendida por todas elas; há uma percepção de todas de que são os jovens negros que são mortos, e de que essas mortes funcionam dentro de uma lógica específica de sociedade e de Estado, que define quem se faz viver, quem se deixa morrer e quem se mata. Então, a Vivi foi aproximando as falas da teoria, da discussão política mais formal. 

A aproximação foi interessante porque as mulheres da rede puderam organizar o saber que já era delas, e isso empodera. E criar oportunidades de empoderamento é algo essencial para a gente da equipe , porque usualmente se espera que as coisas venham de uma pessoa, de uma coordenação, e é preciso quebrar isso. A Rede Mães de Luta conta com uma potência nesse sentido. Saber que está todo mundo enfrentando as mesmas coisas, vivendo a mesma luta, cria uma potência horizontal: a possibilidade de que uma possa ir puxando a outra, quando é mais difícil para a outra falar, chorar, pensar, construir, inventar saídas. Penso que assim, de alguma forma, vão se constituindo pontos do político, das manifestações, da luta por direitos, da luta por explicações em relação às mortes, por alguma reparação pelo estado.

Junto com isso, é preciso considerar cada uma que está ali, pois os casos são singulares, e há aquelas que têm necessidades mais pungentes e graves. Penso que é preciso identificar como elas lidam com o luto e quais delas precisam de ajuda clínica, além do espaço daquele grupo de ajuda mútua e de mobilização social. Isso é delicado, porque o processo de elaboração do luto é complexo. Há manuais de diagnóstico que cometem o absurdo de afirmar que há um tempo definido para a pessoa fazer a elaboração de um luto (ou seja, para que ela passe pelo processo que começa com a desorientação e a não aceitação da perda, passa pela dor profunda e pelo desespero, até que essa pessoa consiga reorganizar a vida e seguir adiante). Tem manual que fala, por exemplo, que esse tempo duraria um ano. Mas isso é, como eu disse, absurdo, pois o luto é uma elaboração totalmente pessoal, subjetiva. A elaboração do luto acontece no tempo singular de cada pessoa.

Mas quando você vê, por exemplo, uma mulher cujo filho morreu há uma década ou mais e ela ainda está muito fragilizada, chora e se desespera sempre que se lembra dele, sente dores, fraqueza, uma angústia imensa, é sinal de que essa mulher precisa de uma escuta especializada para enfrentar aquilo. Essa mulher relata uma dor que não passa e indica que não deu conta de seguir com a vida. Ela fala: “dói demais, é como se fosse ontem que ele morreu”. 

Mas ela continua viva e não pode morrer junto com esse filho também. Não pode ter uma vida tão mortificada. Em casos assim, é claro que o grupo continua sendo importante; que lutar junto com as demais, fazendo a elaboração política do luto, é essencial. Mas há um sofrimento tão grande, uma mortificação tamanha, que o atendimento psicanalítico se faz necessário. Há algo do âmbito singular que precisa ser endereçado para o atendimento clínico.

Lidar com a dor é de uma delicadeza enorme. Tomemos como exemplo a obra Chorar os Filhos. Aquele vestido é um símbolo importantíssimo da luta, é algo muito impactante quando elas levam aos espaços públicos. Ao mesmo tempo, se as mulheres da Rede Mães de Luta se apegam demais ao vestido – e já aconteceu de elas até disputarem quem iria vesti-lo – há um risco muito grande. Porque aquele é um vestido da morte, é um vestido mortificado. Se as mulheres só se colam nesse vestido, elas se colocam numa posição muito mortificada: carregam a morte, estão sempre com a morte. É quase que vestir a morte. Por isso, elas precisam inventar outras coisas além do vestido, outros elementos além das representações da morte. É preciso ter esse manejo entre a necessidade de levar toda a simbologia da dor aos espaços públicos e outra necessidade, talvez até mais importante do ponto de vida da saúde psíquica de cada uma delas, de se afastar um pouco desses símbolos e de buscar outros elementos de sentido, que afirmam a vida de quem ainda precisa ter a potência de vida resguardada e afirmada.

Eu identifiquei dois outros grandes desafios do processo de construção tanto daquele projeto quanto da mobilização das Mães de Luta como um todo. Um deles, é a necessidade de maior protagonismo das mulheres na construção da mobilização – percebi que o processo era algo muito puxado pela nossa equipe. Compreendo que isso tem muito a ver com o contexto super adverso de vida das Mães de Luta, mas penso que precisamos buscar modos de fomentar uma atuação mais articuladora partindo delas próprias. A ideia de encontros itinerantes, cada um acontecendo na casa de uma delas, pode ser um caminho para fortalecer e mobilizar mais a rede.

O outro ponto de atenção que notei também está ligado ao manejo da dor. Vejo que, às vezes, há integrantes da Rede que deixam de se perceber e de se cuidar como mulheres. Na dor, não conseguem cuidar nem de si e nem dos outros filhos. A mulher vira só mãe daquele filho morto. E isso é uma coisa também complicada. Acho que esse pode ser mais um ponto clínico, talvez, do que um ponto da luta em si, mas é importante que haja uma reflexão sobre ele, de todo modo. Afinal, cada uma delas precisa se cuidar e se fortalecer para que a luta possa continuar existindo. É preciso que elas se dividam entre mulher e mãe, lidem com esses dois lugares e não ocupem apenas o lado da mãe que se faz toda pelo sofrimento do filho morto.

Ao longo do projeto, tentei lidar com os desafios que ia percebendo, ao mesmo tempo em que buscava estratégias para exercer o que entendi que seria o meu principal papel: atuar no manejo das delicadezas da dor. Eu via que era importante identificar e ajudar a encaminhar os casos de sofrimento muito intenso – processos de adoecimento psíquico mesmo, para os quais seria necessária a busca de atendimento psicanalítico. E notei, desde o início, que seria fundamental tentar fazer uma mediação, identificando momentos em que seria interessante fazer intervenções que remetessem à elaboração mais coletiva e política do luto, a partir dos relatos surgidos. De todo modo, cabe ressaltar que a busca por essa elaboração política não era só meu: era a tônica do nosso processo como um todo.

Tivemos, por exemplo, um momento em que as mulheres contavam as histórias de suas vidas umas para as outras (em duplas) e, na hora de relatar as histórias no grupão, uma contava a história da outra. E sabemos que isso gera um efeito: saber do modo como a outra escuta e interpreta a sua história. Então, a ideia não é só compartilhar, falar e ser ouvida. Cada uma precisa dar conta de falar de si e de escutar sobre si. Há uma interação: olho para a minha história a partir de olhares das outras mulheres, e isso permite certos deslocamentos importantes para cada participante.

Muitas vezes, nesse exercício, a mulher percebe que não está conseguindo falar de si, mas só da história do marido encarcerado, ou do filho assassinado, como se a vida dela tivesse parado no momento daquela perda. Aí, vêm a reflexão sobre como se constituir como mulher, como mulher que luta, e como construir a luta, para ir além daquele ponto de dor.

Outra coisa forte foi que as atividades iam marcando o espaço da sala em que aconteciam os nossos encontros. Para o primeiro dia, foram preparados cartazes com os momentos mais importantes da construção da Rede Mães de Luta: fotos, datas, frases lembrando o que foi cada acontecimento. Tinha também o vestido Chorar os Filhos lá, desde o primeiro dia. Depois, a partir de cada dia de atividades, havia uma relatoria e eram selecionadas frases marcantes ditas pelas mulheres, que eram impressas em grandes cartazes, colados nas paredes. A sala foi se tornando uma mistura viva de falas e histórias das mulheres, imagens da luta, falas que iam sendo construídas. O impacto dessa mistura era muito grande.

E contar com um espaço tão rico em significados foi importante para criar uma ambiência para as atividades, e foi especialmente interessante em um determinado momento, no qual o grupo estava muito atado às falas do luto, do choro, estava difícil. Aí, após uma conversa da equipe, nós provocamos: “Não podemos ficar só nisso! Temos que ir para a luta! Vamos nos colocar em movimento”. E aí, propusemos a elas que andassem pela sala. Todo mundo tinha que se movimentar pelo espaço e, em algum momento, uma de nós falava: “para!”. E todas tinham que parar. E aí, a pessoa que estava coordenando chamava uma das mulheres pelo nome e a convidava a fazer algum gesto que pudesse simbolizar a busca por Justiça. Não podia falar nada, era só o gesto. Não importava se era um soco para frente, uma mão para o alto, uma mão no peito, um rosto no movimento de dar um grito.

Elas já haviam falado muito da situação de não poderem contar sua história para fossem testemunhadas, sobre ficar sem voz. Havia sido falado muito de um grito de revolta que ficava entalado na garganta. Então, naquela dinâmica, buscamos encontrar gestos que pudessem levar à construção de um corpo único, que na hora do ato se moveria e soltaria o grito contido, cheio de raiva, de revolta, de indignação. Isso também foi muito importante, porque construir uma intervenção toca o corpo, não é? Fazer uma performance como as que elas fazem tem a palavra, tem a voz e tem o olhar, tem o gesto – tudo isso possibilita colocar um corpo coletivo e uma voz coletiva em movimento.

Ainda nessa perspectiva de manifestação pública da luta, sabíamos todo o tempo que faríamos uma intervenção pública e acabamos decidindo que ela aconteceria no Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro), na frente do Tribunal de Justiça (TJ) aquele do alto da Avenida Afonso Pena, onde ficam os desembargadores). Mas elas decidiram ir além e também entregar suas reivindicações à Coordenadoria de Direitos Humanos do Ministério Público (MP).

Tanto para o ato quanto para criar um documento concreto para entregar ao MP, tivemos a ideia de escrita de uma carta coletiva. A carta, afinal, é o endereçamento de uma mensagem, é uma elaboração da fala tendo em vista determinado destinatário. E, nos encontros todos, as mulheres falavam da indignação pela perda dos filhos, por saber que eles deveriam ter sido protegidos pelo Estado, mas foram assassinados pelo Estado. Aparecia muito essa fala: “É uma injustiça! É uma injustiça!”. Então, propusemos que elas escrevessem uma carta, para ser levada aos espaços da Justiça, contando da injustiça. Aí, cada uma escreveu a sua versão de carta e, depois, construímos juntas uma só carta. No dia 10 de dezembro, a carta foi lida em frente ao TJ, junto com a performance do gesto e do grito coletivo, e entregue ao MP.

Foram esses os marcos do processo de que me lembro. Nossa equipe de mediação tinha a Vivi, que tem um trabalho de mobilizadora e articuladora, a Nina Caetano, que é artista, e eu. Na dinâmica do trio, penso que o lugar da psicanalista era conseguir acolher as dores com a escuta, mas ao mesmo tempo tentar colocar aquilo em movimento. No compartilhamento da dor do luto, há um impasse: como acolher o luto e não ficar só na dor, para que a gente possa produzir algo, fazer alguma coisa com isso, de modo que não retorne como impotência, como uma sensação de que está tudo acabado e que não tem jeito? O meu papel era transformar o impasse em desafio, perguntando: é preciso fazer alguma coisa com isso, não é?

Se a gente não toma esse cuidado, as falas são extremamente dolorosas, e uma vai reforçando e amplificando a outra, até chegar numa situação em que, o tempo todo, estão umas chorando e outras consolando. Isso vai ficando pesado, desorienta. O discurso fica muito fechado, muito impossível, muito sem saída, muito sem solução. É nesses momentos que a psicanálise pode ter uma contribuição interessante. E o que que a gente faz nessa hora? Vai tentando localizar os nós e intervindo, na medida do possível. Para aquelas que não dão conta de falar, é importante dizer: “Mas aqui é um espaço seguro para você falar. É preciso poder encontrar um jeito de dizer disso que não tem nome, dessa dor que fica difícil de colocar em palavra. Faça essa tentativa, nós estamos aqui para escutar”. Para o momento em que uma mulher diz que tudo está perdido sem o filho que morreu, lançamos questões como: “mas, então, o que a gente quer com esse grupo, já que o filho de volta ninguém vai ter? O que que a gente pode construir como uma luta coletiva, para que vocês possam ter mais segurança para vocês, para seus outros filhos que estão vivos, para que vocês também possam ficar mais vivas?”

Não estávamos ali num processo terapêutico, que certamente teria outros contornos e levaria muito mais tempo. Havia o compromisso de produzir um ato público, dentro de um recorte curto de tempo. É claro que a construção que vai do luto à luta é complexa e que, nela, a temporalidade é um fator forte. Naquele projeto, estávamos num certo tempo de urgência, que criava restrições, limitava algumas possibilidades. Afinal, tínhamos só quatro meses de atividades. E é sempre complicada essa questão, pois cada uma tem um tempo próprio para lidar com o processo de luto. 

Mas o tempo curto não é necessariamente ruim. Ter um prazo cria um tempo de urgência para que alguma coisa seja produzida. Criar uma urgência temporal também pode ser um estímulo para que alguma coisa seja produzida. 

Ir do luto à luta é, ainda, um deslocamento do individual para o social. Afinal, a lógica inicial do processo do luto é de isolamento, de lamber feridas: as energias ficam concentradas na pessoa, que fica muito centrada naquele processo da dor individual. É preciso romper com isso de alguma forma, direcionar a energia para o coletivo. Eu acho que essa leitura que a psicanálise tem do luto me ajudava, no projeto, a perceber o ponto em que cada mulher estava em seu luto, e como isso reverberava no grupo. Quando as narrativas de dor e impotência escalavam demais, era a hora em que eu entrava, para aquele afeto não circular o tempo todo e tomar conta, deixando tudo ainda pior do que já estava, antes, no grupo.

Porque a gente estuda, por exemplo, fenômenos como as parcerias que se constituem no contexto grupal, o modo como grupos operam, para onde as falas podem caminhar. A partir do conhecimento dessas coisas, tentamos identificar onde é preciso ora fazer um corte, uma intervenção, ora acolher, ora balizar as falas, quando há alguém tentando falar e outra pessoa monopolizando demais o momento de fala. Penso que o meu trabalho no projeto foi um pouco por aí, pois é nesse tipo de questão que o psicanalista consegue entrar mais. 

Mas é importante observar que as falas das Mães de Luta, por mais que sejam muito ligadas à questão da dor, e isso traga riscos, já carregam os elementos de potência. Elas trazem uma consciência da injustiça que é o ponto que impulsiona a luta. As questões se encadeiam: A Justiça não olha para nós? Como é que a gente faz com que a justiça possa nos enxergar de algum modo? Então, vamos escrever uma carta para a Justiça. Se o corpo fica impossibilitado, imobilizado, é porque reage à dor, então ele pode retomar o movimento, voltar a circular. Aí, vamos em busca de modos de sair da imobilidade.

O grande ponto é o deslocamento, a mudança de posição. E essa mudança começa quando elas podem falar entre si, testemunhar o que cada uma fala e acolher, e juntar o próprio olhar com o das demais. Isso tem um efeito transformador. Ao contar a história da outra, você acaba interpretando a vida da outra. Então, você pode trazer pontos em que ela nunca tinha pensado, e que passa a perceber, ao ouvir a história da própria vida daquele jeito. 

O ato de escrever uma carta também é o de se colocar de outra forma. Fazer um vídeo depois sobre o ato na rua é, de novo, uma prática que retorna a cada uma um outro olhar: ao invés de ser só aquela mulher que é julgada, seja na quebrada, seja pelos familiares, seja pelos outros que acham que o filho dela tinha que estar morto mesmo, ela se percebe uma mãe que luta por justiça.

O julgamento ao qual essas mulheres são submetidas é algo muito forte, muito danoso. O sentimento de culpa é uma das experiências mais complicadas da vida. Ele é muito vinculado com a pulsão de morte, porque a gente é capaz de se culpar por coisas completamente sem sentido, por coisas completamente insensatas – como, por exemplo, a morte de um filho. E isso pode ser devastador. Então, essas mulheres se culpam, como se elas pudessem ter feito alguma coisa, como se fossem responsáveis por uma coisa que, na verdade, atravessou a vida delas. Elas não tiveram culpa nenhuma em relação àquilo. Então, como acolher a questão do sentimento de culpa para ajudar a transformá-la, porque a culpa só afunda a pessoa? Não é possível fazer nada com a culpa, além de sofrer. Então, é preciso construir uma compreensão do contexto, entender os mecanismos que fabricam aquelas mortes.

Mas há ainda outro extremo, que também é muito perigoso: “eu fiz tudo o que eu dei conta e ainda assim um agente do Estado matou meu filho, a culpa é toda do Estado e ele é um monstro que não dá pra enfrentar”. Nos dois casos – o da culpa e o da não implicação –, o que está em jogo é a necessidade de construir um caminho de responsabilização, de cada uma identificar seu papel de alguém que age diante do que a vida impõe.

Eu acho que essas duas perspectivas – deslocamento de posição e e construção da ação possível para cada uma e o coletivo – foi o que buscamos em todas as atividades do projeto: na troca de olhares sobre as histórias de cada mulher, na escrita da carta, na combinação dos gestos num corpo coletivo para o ato. Deslocamento do olhar e da voz, é possível manifestar para serem vistas de outra forma, é possível falar e gritar o que antes mortificava.

E acredito que as Mães de Luta constroem essas perspectivas e vão além: fazem do coletivo uma rede de proteção e de segurança para elas. Com isso, mesmo aquelas que não podem estar nos encontros, estão conectadas ao grupo: compartilham coisas, conversam, tentam contribuir para os encontros acontecerem, para o afeto do acolhimento poder existir entre elas. 

Quando as Mães de Luta manifestam publicamente a indignação e a dor, eu acho que utilizam em seu favor um elemento de nossa cultura colonizada e eurocentrada. Há em nossa sociedade um lugar idealizado de mãe que é o de referência de pureza, bondade e entrega. É um jeito de enxergar a maternidade que oprime as mulheres, que são cobradas a um papel de abdicação, em relação ao qual se exige perfeição. Mas, no caso dessa luta, a maternidade idealizada é um elemento estratégico: facilita com que as mulheres consigam dizer sobre o assassinato desses filhos, ressaltando que o lugar sagrado da maternidade foi violado e serem mais escutadas.

Eu, que até participar desse projeto só havia trabalhado diretamente com adolescentes em conflito com a lei, vejo que sensibilizar a sociedade a partir deles é muito diferente, muito mais difícil. É super árdua a busca por mostrar o quanto esses meninos sofrem violações de direitos que os leva a um caminho de morte. O jovem negro é visto como aquele que escolheu ser bandido, como o errado de antemão.

De todo modo, seja na mobilização construída pelas e com as mães, seja na construída por e com os adolescentes e jovens, quando a gente tenta a sensibilização da sociedade para pensar o genocídio da juventude negra, penso que é preciso partir da vida, não da morte.

Contabilizar números de mortes, como foi na pandemia, não sensibiliza ninguém. Mas se você traz algum fragmento da história de vida de alguém que é interrompida, é possível sensibilizar. E o lugar das Mães de Luta ainda é mais forte nesse sentido também, porque não é possível pensar no genocídio da juventude negra sem pensar na mãe desses meninos, não é? Não é à toa que é um movimento que tem uma repercussão muito grande no país todo.

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