Benilda Brito – Benilda Regina Paiva de Brito
Meu nome é Benilda Regina Paiva de Brito, tenho 53 anos. Nasci na região nordeste de Belo Horizonte, no bairro Pirajá, onde morei até me casar, aos 19 anos. Depois, mudei para a região norte da cidade, em que vivo hoje, no Heliópolis. Me formei em Pedagogia na UFMG e fiz meu mestrado Gestão Social na Bahia, onde morei por um tempo. Lá, construí uma casa, o que me tornou uma “baianeira”, como costumo dizer, porque eu fico um pouquinho na Bahia, na Ilha de Itaparica (que eu amo demais) e um pouquinho aqui, em Belo Horizonte. Atualmente, vou muito também para São José de Almeida, na região da Serra do Cipó, que é minha geografia afetiva, porque minha mãe e minha avó nasceram lá. Comprei uma casinha lá, na roça, onde adoro ficar. Assim, fico dividida entre esses três lugares.
Desde muito cedo, descobri que ser preta, mulher e pobre faria uma diferença muito grande na minha vida e que, por isso, eu precisava me posicionar. Minha avó foi mãe solteira, uma mulher que pariu minha mãe e criou todos nós com muita luta, afirmando nossa identidade e enfrentando o racismo. Então, desde pequena, eu estive em contato com a discussão dos direitos humanos e, uma vez que me envolvi, eu nunca mais saí dela. Fui crescendo nessa área, nessa militância.
Entrei no movimento negro aos 13 anos de idade, muito atenta às violações de direitos humanos, buscando alternativas. Eu era muito nova e fui crescendo no meio da luta, e perceber as profundas violações me provocava muita indignação. Assim, fui construindo um posicionamento político muito forte.
Tem sido uma longa trajetória. Em 2021, eu completei 40 anos de movimento negro. Trabalhei com a Dona Helena Greco, que é ícone dos Direitos Humanos em Minas. Trabalhei na prefeitura de Belo Horizonte, lidando com a violência policial, com o racismo, com violência contra a população LGBTQIA+. Trabalhei com o pessoal da Anistia, a partir do fim da ditadura militar.
Na juventude, depois de ir para o movimento negro, eu me conectei ao e nunca mais larguei esse lado mais institucional da luta. Também fui professora de Direitos Humanos na PUC. E a indignação sempre foi uma constante na minha militância.
Quando fui morar na Bahia, participei da criação do Odara – Instituto da Mulher Negra, que é uma ONG existente até hoje, super bacana, para a qual me dediquei muito. No Odara, eu criei um projeto chamado “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”, dentro do programa de direitos humanos que eu coordenava lá. E o projeto foi muito interessante porque denunciava o quanto era recorrente a violência policial com a juventude negra. Ele ainda funciona lá na Bahia, no Odara, mas também reflete a realidade de Belo Horizonte. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. A violência não tem limites geográficos.
Então, na Bahia, eu comecei acompanhar muito de perto os focos de extermínio e criei o projeto utilizando o samba, que é um instrumento de denúncia do povo negro no Brasil. Usei o Trem das Onze, de Adoniran Barbosa, em que chamo a atenção das pessoas para a letra da música: “Não posso ficar nem mais um minuto com você. Sinto muito, amor, mas não pode ser”. Tratei, a partir dessa canção, do amor de jovens negros, imaginando que essas pessoas sonham, têm desejos, projetos de vida. A letra segue: “sinto muito, amor, mas não pode ser. Moro em Jaçanã”. Mesmo quem não conhece São Paulo, imagina que Jaçanã é um lugar longe e que quem perdeu o trem que sai às 11 horas, só conseguirá pegar o próximo amanhã de manhã. A partir disso, propus uma discussão sobre o direito à cidade: quem garante a livre circulação pela cidade? Qual é o horário limite em que essas pessoas podem andar? A música ainda fala: “Além disso, mulher, têm outras coisas. Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”. Nesse ponto, no projeto, eu dizia que nenhuma mãe dorme tranquila quando o filho está na rua, mas a mãe preta dorme menos ainda, porque ela sabe que, além da violência urbana, existe a violência racial. Os meninos, quando param para mostrar o documento de identidade para a polícia, o fazem com receio de serem mortos, de se tornarem alvo dela. Ainda assim, muitas vezes, recebem tiro, porque a polícia acha que eles vão sacar uma arma. Já atiram antes, e depois classificam o episódio como “auto de resistência” (resistência seguida de morte).
Assim, muitos jovens morrem tentando mostrar os documentos. E eu denuncio esse horror a partir da música, quando ela diz “a minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”. Nenhuma mãe preta dorme mesmo! Ela passa a noite em claro enquanto os filhos não chegam. A letra ainda fala “Sou filho único”, trecho que eu utilizo para resgatar valores da ancestralidade negra, do respeito aos mais velhos, da importância da nossa ancestralidade. Assim, fui trabalhando todas essas questões tão fundamentais. Vivi, assim, a criação de um projeto inédito e muito importante.
Depois, nós criamos um coral na Bahia, e fizemos várias denúncias junto ao Ministério Público e a outros órgãos. Criamos momentos de formação, ensinando as mulheres da periferia e a juventude preta sobre como reagir diante da violência. Foi um projeto lindo. Foi no momento de construção dele que conheci a AIC (Agência de Iniciativas Cidadãs). A Cristiane Ribeiro, que é uma grande parceira e amiga, trabalhava lá e fez a ponte. Então, quando a Rede Mães de Luta nasceu, nosso projeto já acontecia e já havia uma conexão entre a Bahia e Minas. Tanto é que representantes das Mães de Luta participou de uma roda de conversa nossa em Salvador, já em 2019, ano em que a rede foi criada
Assim, logo que conheci o projeto, me apaixonei e propus juntar a iniciativa de Minas a outros fóruns, de outros estados. Chamamos as mães do Rio de Janeiro, mães de São Paulo e as Mães de Maio que já estavam articuladas também nessa denúncia e fizemos uma rede muito legal. Foi assim que cheguei nas Mães de Luta.
Naquele período, eu estava num momento particularmente intenso: atuava no Nzinga, coletivo de mulheres negras de Belo Horizonte, e estava também no Odara, na Bahia, e morava lá. Um tempo depois, eu voltei para Belo Horizonte, e aqui continuo no Nzinga, e o projeto continua lá. Então, foi muito fácil o “namoro”, o “casamento”, o processo de integrar a iniciativa Mães de Luta e de conectá-la a outras com as quais estava envolvida. Afinal, o projeto mineiro se relacionava com tudo com que eu já vinha trabalhando há muito tempo, dentro da área de violação dos Direitos Humanos, no enfrentamento aos racismos. Essa aproximação, que perdura até hoje, eu respeito, adoro e admiro muito.
Achei muito significativo quando a rede mudou o nome de “Mães de Luto” para “Mães de Luta”. Foi uma escolha muito expressiva, que mostrou uma ação de resistência, ao invés de uma passividade. Mães de Luto pode soar como uma coisa definitiva, como uma sina para o resto da vida. Mas o luto virou luta. Isso me encantou e me encanta no projeto.
Todas as nossas lutas precisam se conectar e construir caminhos de fortalecimento mútuo, porque enfrentamos um processo sistemático de assassinato em massa. No meu percurso de articulação de movimentos de enfrentamento ao racismo, observo que o genocídio da juventude negra só vem se agravando. E esse agravamento vem acompanhado e é sustentado por algo terrível: a banalização do extermínio de certas vidas humanas.
Quando olho em retrospecto para os meus 40 anos de militância, às vezes tenho a impressão de que mal saímos do lugar. Caminhamos em termos de identidade, de reconhecimento, mas em relação às políticas públicas de denúncia, de enfrentamento e de combate ao racismo, estamos muito atrasados. Morre muita gente preta o tempo todo, e isso é banalizado, é como se não importasse. Vemos pessoas assassinadas por tiro à queima roupa, por sufocamento, com a polícia pisando em cima ou jogando na viatura e ligando gás lá dentro. São sempre os mesmos métodos de extermínio.
A polícia e as milícias vão na favela e matam sem o menor constrangimento. E, quando as pessoas percebem que é um corpo preto ali morto, há uma banalização muito grande. O que temos feito é a conscientização de que não é só o assassinato que é uma violência. Essa naturalização das mortes, essa desumanização do corpo preto assassinado, é uma violência enorme, também. Temos tentando chamar a atenção para isso, porque a luta do povo negro é muito difícil. Temos que garantir um direito básico, que é o direito à vida, um direito constitucional, um direito que é elementar – ou que deveria ser. No entanto, as pessoas justificam que quem morreu parecia bandido, então tinha mais é que morrer. Isso é uma violência imensa, que age para justificar o que é injustificável. Então, o que fazemos é continuar, incansavelmente, denunciando o racismo que dá sustentação ao genocídio.
Existem vários movimentos hoje – inclusive movimentos da própria juventude –, voltados para difundir esse olhar que desvela a associação entre racismo e genocídio, que não querem deixar que o debate caia na vala comum que se tornou o debate da segurança pública. São iniciativas do movimento social e do terceiro setor, e que chegam aos poucos também às empresas e a outros espaços.
Eu tenho denunciado isso muito nas empresas em que trabalho. Eu criei uma consultoria de direitos humanos, em que abordamos diversidade, equidade e inclusão. Nesses trabalhos, discuto muito que, quando você dá oportunidade e respaldo a um jovem negro ou a uma jovem negra, você também está preservando uma vida. Fazer com que um menino preto não seja expulso de um lugar público também é um jeito de mitigar o extermínio. Afinal, por qualquer razão se mata; então, por outro lado, qualquer caminho que gere oportunidade, qualquer tipo de apoio, pode proteger da morte. É por isso que tentamos de todas as formas criar caminhos de trabalho, estudo, lazer; insistir na busca por perspectivas que dêem sentido aos projetos de vida dos jovens pretos. Sabemos que a maioria deles não acredita que vai viver por muito tempo, e que é preciso buscar, o tempo todo, modos para que esses jovens não se rendam a essa profecia horrível.
Construir uma possibilidade de futuro é uma dificuldade muito grande, mesmo. O risco de morte é uma verdade, e ele dá muito medo. A cada minuto existe uma ameaça. O nosso corpo preto está sempre em ameaça. Eu sou uma mulher preta de 53 anos e eu morro de medo. Eu tenho medo de muitas coisas. Esse é um privilégio branco: não ter medo. Eu sempre digo isso. Branco tem um privilégio muito grande, do qual eu tenho muita inveja: não ter medo. Nós morremos de medo da polícia, do que pode acontecer com os nossos filhos, de alguém roubar por perto, do carro forte quando está trocando dinheiro na porta do banco. Tememos muitas coisas, e isso provoca uma tensão que é contínua e muito intensa.
A visibilidade abre possibilidades para diminuir um pouco a violência. A certeza da impunidade encoraja os agressores. Porque existe uma banalização do operador de direito diante de uma situação de racismo. Um avanço que conquistamos foi a injúria racial também ser considerada crime de racismo. Antes, tudo era tratado assim: “só chamou de macaco”, os autos de resistência (“achei que ia atirar, então eu atirei antes”) eram tidos como inquestionáveis, todas as violências eram absolutamente banalizadas. Hoje, não. Tudo isso ainda existe, mas o tempo todo há quem conteste, denuncie, lute. Temos discutido de forma ampla a necessidade de humanização, temos dado uma abrangência muito maior às ações de conscientização. Com isso, as pessoas estão mais informadas sobre os direitos delas. Então, é muito comum, em uma abordagem policial, você ver alguém com o celular filmando, para poder vigiar e denunciar. As pessoas estão mais conscientes dos direitos e de que é preciso haver limites para a atuação policial.
Porém, em termos de políticas públicas, acho que tudo é ainda muito precário, estamos muito distantes do que seria o patamar mínimo necessário. Para piorar, com o governo reacionário e antidemocrático dos últimos anos, retrocedemos muito, perdemos avanços que havíamos conseguido a partir de muita luta.
A minha esperança, enquanto mãe de meninos pretos, enquanto avó de menino preto, e enquanto alguém que acompanha esse debate cotidianamente, é que nesse governo Lula que está se iniciando seja possível resgatar e avançar nas políticas o que temos de denúncia de violência, para que a impunidade não prevaleça. Espero que nós possamos dar um basta em tanta morte e que as pessoas se posicionem, inclusive pessoas não negras. Isso tem que te afetar, cara! Uma pessoa branca tem que se sentir afetada. O horror que vivemos não é comum, não pode ser considerado normal. Sei que estamos no início dessa luta ainda, que só caminhamos pouquíssimos passos, mas eu tenho esperança. Afinal de contas, não temos o direito de desistir.
Em relação ao papel de acolhimento, cuidado e escuta de traumas no movimento de luta social dessas mães de jovens assassinados, a minha experiência mais direta foi em Salvador, coordenando o “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”. Trabalhava no Cabula (região periférica de Salvador), no Nordeste de Amaralina (um complexo de favelas muito grande) e no Uruguai (que é na cidade baixa, também uma região de alta vulnerabilidade). Cada região dessas tinha uma realidade. Então, a escuta coletiva era fun-da-men-tal!
E a preciosidade desse tipo de ação está nos momentos em que a mulher consegue dizer sobre as dores para a outra, se fortalecer na outra, em que ela percebe que não está sozinha e, aolongo das trocas com as demais, vai criando caminhos para conseguir resistir, apesar de toda aquela dor. Porque é uma dor indescritível. É uma dor sem tamanho. Eu sou mãe, nunca perdi um filho e eu não consigo imaginar o que seja isso. Mas, ao conviver com elas, percebi que a culpa, a impotência, o medo e o vazio eram imensos e avassaladores. Então, pra enfrentar tudo isso, elas precisam se fortalecer a partir do apoio e do compartilhamento umas com as outras. A importância do coletivo foi tão notável que, nas três comunidades, o atendimento terapêutico individual não fluiu. Conseguimos fazer atendimento terapêutico em grupo porque havia a necessidade delas de estarem juntas, de uma ver que a outra também está vivendo a dor e, ainda assim, seguindo adiante.
Elas compreendem a ferida aberta que é enfrentar a perda de um filho. No Dia das Mães, você não fala sobre filhos. No Dia de Natal, você não fala sobre ressurreição e vida nova. São datas muito doídas. Aniversários dos filhos são muito doloridos. Assim, uma só se fortalece com a presença da outra, que sabe que dor é aquela.
Diante disso, na Bahia, nós criamos um caminho para cada território, junto com cada grupo de mulheres. Em Amaralina, elas gostam muito de cozinhar. Lá é uma vila em que uma empresta farinha de trigo, ovo e fermento para a outra. Assim, inventamos uma ciranda em que uma ensinava a outra. Uma fazia trança embutida, outra ensinava a fazer bolo, outra mostrava como fazer torta, enquanto a outra aprendia a costurar. Dessa forma, a partir da ciranda, montamos um núcleo em Amaralina, em que as mulheres trocavam entre elas, e isso funcionou muito bem.
No Cabula, conseguimos máquinas de corte costura. Então, as mulheres faziam a oficina todo final de semana, além de curso de corte e costura durante a semana. Desenvolvemos uma oficina para discutir a questão da violência doméstica e outros temas que elas traziam: assédio, assédio sexual, o que é o direito ao mercado de trabalho. Elencávamos esses pontos que elas levantavam, chamávamos parceiros e fazíamos formações. Já no Uruguai, as mulheres gostam de cantar – elas gostam de plantar e de cantar. Por isso, lá criamos um coral. É o coral “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”. Conseguimos uma professora e as mulheres começaram a cantar a dor. Gravaram até um CD, que a professora estimulou muito. Dessa forma, fomos tentando encontrar maneiras de minimizar a dor – porque não vamos acabar com ela, isso é impossível. Mas é possível criar caminhos para não sucumbir à dor.
Esse fortalecimento coletivo e a busca de alternativas as ajudou demais. É o que tem feito uma conseguir ficar de pé diante da outra. Ameniza. Realizamos várias dinâmicas com esse propósito. Uma de que eu me lembro, que eu inventei e elas amaram, foi a de dar uma planta de presente para a outra, uma muda. Elas acompanhavam o crescimento da muda, sempre lembrando: “A muda não pode murchar. Você tá cuidando da sua, amiga?”. Assim, a planta crescia e ficava viçosa. Depois de um período, nos encontrávamos e todas levavam a planta para mostrar para a outra como a planta estava sendo cuidada – como o carinho estava presente ali. Porque esse é o povo preto, isso é a nossa raça. Isso é do afro-centrismo, uma forma de bem viver, em que uma se preocupa com a outra.
Desse modo, vamos criando, através da musicalidade, da oralidade, da ludicidade, formas de fortalecer a nossa identidade. Eu aprendi muito com aquelas mulheres. Foi um projeto ao qual dediquei o máximo de mim, mas que também me ofereceu coisas maravilhosas, me trouxe muita coisa da resistência e da coragem daquelas mulheres. Eu tenho um respeito profundo por elas. E é por isso que eu gosto tanto desse movimento daqui de Minas das Mães de Luta. Ele também tem essa riqueza, essa força das mulheres que resistem, apesar de terem as vidas atravessadas pelo mais profundo sofrimento.
Quando essas mulheres se conectam, o acolhimento tem um forte efeito nas vidas delas. Gera um fortalecimento pessoal, articulado à coletividade. Quando uma mãe perde o filho, geralmente, o marido também vai embora e ela fica sozinha. Existe uma culpabilização muito grande pelos homens. Elas ouvem deles coisas como: “É seu filho! Você que não criou o seu filho direito”. É uma relação machista, misógina, racista, patriarcal. Então, além da dor de perder o filho, vem a dor da solidão.
Quando falamos da solidão da mulher negra, não é solidão afetiva dentro de um casamento, do matrimônio. Não é nada disso. É a solidão nas decisões da maternagem. A maternagem preta, ela é muito solitária. Minha mãe passou por isso, minha avó passou por isso, eu passo por isso, minhas irmãs passam por isso. É uma solidão muito cruel, difícil, em que precisamos dar respostas que não temos. Estar em grupo possibilita contornar isso. Em termos de uma esfera individual, de fortalecimento, de empoderamento e de busca por alternativas, estar em grupo é muito importante.
Nos movimentos, eu acho que outro aspecto essencial é a denúncia, que é constante e insistente, embora eu avalie sempre que as nossas lutas ainda são muito solitárias. Nós somos todas feministas. O movimento feminista consegue discutir a pauta feminista junto com mulheres pretas. Mas o movimento feminista não incorpora a pauta negra. Quando convocam para discutir sobre aborto, as mulheres negras estão juntas na praça. Porém, se chamamos para falar do extermínio da juventude negra, as mulheres negras vão sozinhas. Nós, mulheres negras, vamos sozinhas porque essas faltas são solitárias. Vivemos muito isso, mas não desistimos de denunciar. Há as mães que fazem cartaz, pegam a foto e escrevem os nomes dos filhos em suas camisetas; várias vão fazer Direito, vão estudar; outras vão discutir as políticas públicas e vão interagir nos conselhos políticos e cobrar dos deputados. Tem outras muitas que vão para dentro do Ministério Público ou do Fórum para entender quais são as alternativas, e trocam entre elas informações sobre isso. Eu acho que as redes se fortalecem assim, criando circuitos de aprendizagem, de troca e de visibilidade.
Um sucesso que nós tivemos foi de criminalizar o Estado – conseguimos mostrar que o Estado age de forma criminosa com as pessoas pretas. E, mesmo que isso ainda não tenha se traduzido em mudanças no modo de agir do Estado, temos que valorizar demais esse passo dado, pois ter sucesso é muito raro na nossa luta. Ainda assim, não descansamos. Os nossos mortos têm voz e eles não serão esquecidos. Esse é um lema que o movimento sempre prega e que eu acho muito verdadeiro: nós não vamos descansar. Não vamos!
A minha esperança é muito grande no governo Lula. Estou em um processo de adubar esperanças. Penso que precisamos resgatar a possibilidade de vida e de criar esperanças, para não cometer os mesmos erros. A cultura africana ensina: olhar o passado para entender o presente e pensar o futuro. Acredito que necessitamos disso: ver o que já passamos, o que não queremos mais, e pensarmos na perspectiva de novas possibilidades. Eu vislumbro e acredito em um mundo com menos racismo. Eu não vou dizer sem racismo, porque isso é muita coisa. Mas com menos racismo, em que as pessoas possam viver sem tanto medo. Muitos discutem o afrofuturismo na música, no cinema, na literatura. Eu costumo dizer que, para mim, o afrofuturismo é a possibilidade de pensar pessoas negras vivendo no futuro, felizes, sem medo, com as suas famílias e o menino preto e a menina preta crescendo, acreditando na felicidade. É por isso que eu luto.
Segurei lutando, todas nós seguiremos lutando, mesmo que nossa luta sempre esbarre na indiferença. As narrativas de dor dessas mulheres, quando levadas aos espaços públicos, têm menos efeito do que eu gostaria na sensibilização social sobre o genocídio da população negra. Vivemos isso quando o Beto Freitas foi assassinado numa unidade do Carrefour. Ele foi acusado de ser ladrão, foi espancado brutalmente e asfixiado até a morte pelos seguranças da unidade. Diante de tamanha violência, as pessoas se comoveram em um primeiro momento. Porém, houve um caso em que uma cadela foi assassinada em outra unidade da mesma rede e tal caso gerou uma comoção pública imensamente maior do que a manifestada diante do assassinato do Beto Freitas.
Penso que as pessoas banalizaram a vida do preto. Vidas negras não importam. Acho que silenciar piora, precisamos dizer, e nós temos dito. Temos ganhado alguns adeptos, parceiros, algumas pessoas indignadas. Mas a mobilização está muito aquém da indignação que deveria acontecer diante de um quadro de violência generalizada e de genocídio. Não quero fazer nenhum juízo de valor, mas a morte de uma cadela ser mais impactante e provocar mais revolta do que a de um pai de família que estava com a esposa e morreu na frente da mulher, em um espaço público, isso me assusta. O crescimento que vimos do fascismo ao longo do desgoverno dos últimos quatro anos vem dessa naturalização da violação das nossas vidas. É profundamente enraizado em nossa sociedade um modo de enxergar as vidas pretas que se conecta diretamente ao fascismo: que aciona, empodera e estimula a violência, o ódio, a intolerância. Isso me assusta muito. Eu não sei onde vamos chegar.
Alguém me perguntou o outro dia em uma entrevista se, diante de todas essas coisas, eu não me canso. Eu estou cansada, porque 40 anos depois, eu esperava que contássemos com outros resultados. Mas desistir, não vou nunca! Essa alternativa não existe, porque nos matam todo dia. Matam na falta de oportunidade, na negação, na invisibilidade, no silêncio, na falta de políticas públicas, do Bolsa Família, do auxílio emergencial, da vacina. Nos matam todos os dias. Morremos e ressuscitamos cotidianamente. Esse país, hoje, não pode mais admitir que digam que não existe racismo. Isso é inconcebível até para a pessoa mais retrógrada. Não dá! O racismo está aí. Nós escancaramos isso há muito tempo e hoje ele é um fato reconhecido pela sociedade. Acho que fizemos um barulho bom. A sociedade não fazer nada, ou fazer muito pouco, em relação a isso, é outra coisa. Mas que o racismo existe, o branco mais racista não pode negar. É nisso que eu acredito, nessa visibilidade. É muito lento o que se conquista a partir disso, mas temos que continuar.
Por isso, a rua é muito importante, e é essencial que haja essa coragem de expor a dor e de fazer da dor denúncia e poesia. Porque, quando as Mães de Luta realizam um ato em praça pública, não são filmes sendo mostrados ali. São intervenções públicas artísticas em que as mulheres escancaram os horrores que vivem. Há muita dor nesse gesto em público, e isso é muito pesado para quem realiza. Porém, acredito que o silêncio é pior, pois o silêncio é cúmplice da violência. Então, é preciso ir mesmo pras ruas levando todo o sofrimento da mãe que perdeu o filho, criar ações de comunicação, ganhar operadores da Justiça, clamar pelos direitos humanos, fazer denúncias internacionais. Tudo isso dá visibilidade. E a visibilidade é a grande estratégia. Eu já participei de vários momentos de busca por essa visibilidade, e vou continuar participando. Eu acho que essa ação é fundamental para inibir, minimizar ou erradicar as violências.
Eu fiz uma entrevista com a Elza Soares uns seis meses antes de ela morrer. Foi um presente fazer isso. A Elza, uma mulher preta, perdeu dois filhos para a fome. Houve um momento em que pedi: “Elza, manda uma mensagem para as mães que estão lutando, que perdem seus filhos para a violência e estão desacreditadas, sem esperança”. Então ela simplesmente disse: “Nunca desistam! Nunca desistam! Tenham coragem!”.
Eu sei que pode parecer pouco sensível pedir para uma mãe que perdeu o filho assassinado para ter coragem. Mas eu também sei que essa mãe tem que encontrar a coragem de algum jeito, pois a coragem é o único caminho para que o luto se transforme em luta e ela possa, assim, resistir à morte. Essa é uma característica que nós, mulheres negras, aprendemos desde o período da escravidão: tirar coragem de onde não existe. Fortalecer a outra e estar junto da outra até para tentar evitar que a situação horrível que aconteceu com uma aconteça com outras. Já fui em velório de mães que estavam enterrando seus filhos e não viveram o luto. Correram para casa com receio de perder o filho mais novo, ou com medo da polícia chegar e levar o outro irmão, mais velho. Isso é precisar ser uma fortaleza quando seria essencial ser amparada e descansar. Só que não há tempo para processarmos a dor sem medo. Não sei de onde tiramos coragem. Ou melhor, eu sei sim. Afinal, eu sou uma mulher de Candomblé, lésbica, negra, e o que me mantém em pé é a certeza da ancestralidade, da espiritualidade, de que nós não estamos sozinhas. Então, eu queria dizer para todas essas mães, para essas mulheres, que elas não estão sozinhas. Acreditemos em Exu, que é o dono dos caminhos, e na nossa ancestralidade, para nos fortalecer. É muita violência, muito absurdo. Mas nossos mortos têm voz e a gente não vai silenciar.