Cris Ribeiro – Cristiane da Silva Ribeiro

Faço parte de duas redes que têm um papel muito importante na minha vida: o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras, e a Rede de Mulheres Negras de Minas Gerais. As vivências nesses espaços de construção de luta me deram sustentação e legitimidade pra realizar o trabalho de articulação da Rede Mães de Luta em seus dois primeiros anos (maio de 2019 a maio de 2021). 

Mas foi um trabalho muito desafiador: atuar na Rede Mães de Luta, mesmo não sendo mãe. Isso me coloca num lugar muito desafiador. A questão do encarceramento me atravessa muito profundamente, mas eu sei que não tem dor comparável à de uma mãe que perde um filho. Então, vejo o meu papel, e o papel da AIC, no lugar mesmo de coordenação executiva e de articulação política.

De todo modo, Rede Mães de Luta, Rede de Mulheres Negras e Nzinga são experiências de luta contra as formas de opressão. Luta de mulheres – o que não é qualquer coisa. São mulheres lutando contra toda forma de opressão. Esse ponto é forte, é central. 

Por outro lado, eu moro no aglomerado Morro das Pedras, numa das sete vilas, que é a Vila São Jorge. Na região Oeste de Belo Horizonte. Sou uma mulher preta, favelada, o que significa que a minha experiência de vida é profundamente marcada pelas violências e pelo fenômeno da letalidade juvenil. No meu aniversário de 15 anos, 90% dos meus amigos estavam mortos. Eram meados dos anos 1990, período de explosão do número de assassinatos no Morro das Pedras. Então esse fenômeno atravessa a minha história. 

E um jeito que eu achei de criar respostas pra isso foi me envolvendo em ações voltadas à criação de alternativas, à mitigação desse problema que é tão gigantesco: em projetos culturais no Morro, em oficinas do programa Fica Vivo, em projetos da AIC relacionados a essas questões.

Por isso, comecei no ativismo bem nova: fui participar de associação comunitária quando eu tinha 13 anos. Mais ou menos na mesma época eu participei do Arautos do Gueto, grupo cultural muito importante do Morro – primeiro como atendida, depois com uma jovem que começou a fazer um movimento mesmo, a coordenação de alguns grupos. A minha sensação é que a gente nasce militando, como necessidade da vida, e isso vai ter nome só depois. 

Mas, formalmente, me reconhecer como uma mulher militante, é algo recente, construído ao longo dos últimos dez anos. Mas é isso: a gente nasce militante quando nasce em determinados lugares e vivencia determinadas coisas. 

O Nzinga tem 35 anos já de atuação em Belo Horizonte. É uma história muito longa e muito vitoriosa. Acho que passaram por esse coletivo todas as lutas contra todas as formas de opressão e com o recorte de gênero e raça. Se a gente faz o exercício de pensar o Nzinga há 33 anos, dentro do movimento negro, propondo esse recorte, a gente consegue imaginar o quanto as mulheres que o criaram foram pioneiras. Porque, no contexto em que o coletico surgiu, a questão da raça estava acima de qualquer coisa. Então, o Nzinga é um desses coletivos que inauguraram a discussão sobre interseccionalidade, porque coloca raça, classe e gênero em debate. 

O coletivo N´Zinga é como a maioria dos movimentos: é pura resistência, insiste em não entregar os pontos. Enfrenta muitas adversidades, tem vários momentos de interrupção… A ponto de a gente pensar: “vixe, acho que agora ele não volta mais”. Mas aí, vem uma mulher ou um grupo de mulheres e injeta um gás novo e coloca as coisas em movimento novamente.

A Rede de Mulheres Negras é um movimento mais recente, instituído em 2010. Mas é um movimento muito importante porque, considerando os marcos sociais e históricos, ele vai pra rua com a Marcha de Mulheres Negras em Brasília, em 2015, e logo no ano seguinte ele já foi o primeiro movimento a ir pra rua depois do impeachment da Dilma. Isso é muito significativo: nos mostra que essas mulheres se organizam sempre que necessário, com todas as dificuldades que se colocam. Se organizam prontamente pra levar o corpo e a voz para a construção da mudança social. 

Já a Rede Mães de Luta é uma rede muito novinha. Muito novinha, mas muito potente. Sempre me encanto com ela. É uma rede que nasce em maio de 2019, com um encontro que se pretendia até ser pontual – não que isso fizesse dele um encontro menos importante, mas ninguém imaginava a intensidade da potência que seria aquele encontro. As mulheres se juntaram ali e reivindicaram que tinha que ser fundado um espaço permanente, para uma atuação contínua. Desde então a gente só cresce. Cada vez mais coletivos e movimentos se aproximam de alguma forma.

Então a Rede Mães de Luta, hoje, conta com mais de 30 coletivos, e coletivos que não são só de Belo Horizonte ou de Minas. A gente se articula com Salvador, com o Rio, com São Paulo. E isso potencializa demais a atuação. 

Isso é muito bom, porque a Rede pretende exatamente ser potencializadora do trabalho de coletivos que já realizam ações, já têm suas histórias e atividades. É uma Rede que conecta coletividades, então muita coisa acontece de forma bastante independente. A Rede, ao fazer conexões e possibilitar espaços de troca, potencializa aquilo que já existe.

A gente acaba fomentando algumas coisas também, como é o caso das Mães de Maio Minas, que se empoderam no espaço da rede, a partir do contato com outras mulheres. Mas, de modo geral, somos uma articulação de mulheres muito independentes nas suas lutas, que toparam fundar um espaço de conexões, de encontro entre as lutas.

O primeiro encontro entre as lutas, o ato inaugural, foi o evento de maio de 2019, que teve roda de conversa, o lançamento do documentário “Nossos mortos têm voz”, e uma feira de venda de produtos artesanais produzidos pelas próprias mulheres. Em agosto daquele ano, a gente fez um evento que juntou o lançamento do livro “Memorial dos nossos filhos vivos – as vítimas invisíveis da democracia”, do movimento nacional Mães de Maio, junto com roda de conversa. Ele foi realizado na Assembléia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e foi extremamente importante. Ali, a articulação ganhava mais corpo em termos de incidência política, via uma aproximação com a deputada estadual Andréia de Jesus (à época do PSOL, hoje integrante do PT). 

A partir de tal articulação nós construímos, em várias mãos, um primeiro Projeto de Lei (PL), que foi o Projeto de Lei 1160, de 2019, que propunha a criação da Semana das Vítimas de Violência do Estado de Minas Gerais. Esse PL foi protocolado em 02 de outubro, num novo ato na ALMG. Naquele evento, instituímos uma ação que buscamos repetir em todos os eventos: a Feira Rainha Thereza de Benguela, que é um espaço de geração de trabalho e renda: elementos fundamentais para que a mulher consiga enfrentar a violência. Tivemos, ainda, uma conversa sobre esse tão falado empreendedorismo social. 

Um dos modos que essa rede encontrou para denunciar o genocídio da juventude negra foi uma obra de arte coletiva criada a partir de uma proposição de Nina Caetano: “Chorar os Filhos”, que é um grande vestido constituído por pedaços de tecidos nos quais as mães que perderam seus filhos escrevem. Elas registram fragmentos de suas histórias em retalhos e costuram esses retalhos no vestido.

Também nos aliamos à artista Lucimélia Romão, de São João Del-Rey, para a realização da performance “Mil Litros de Preto”, idealizada por ela, num evento que aconteceu no CRJ no dia 10/12/2019 (Dia Internacional dos Direitos Humanos e, ainda, data em que acontecia, naquele espaço, a inauguração do Memorial da Juventude Negra). Na performance, baldes com líquido vermelho são derramados numa piscina, em alusão ao sangue derramado pelos jovens assassinados.

Também naquele dia 10 de dezembro, Dia Nacional dos Direitos Humanos, nós protocolamos o nosso segundo Projeto de Lei, que foi o 1360 de 2019, voltado à instituição de uma política de reparação às pessoas vítimas de violências do estado de Minas.

Essas foram as ações só do primeiro ano! Então, acredito que, apesar de ser uma rede muito jovem, a Mães de Luta tem produzido muitos efeitos para a cidade. Para dar uma visibilidade efetiva tanto à pauta, quanto às atrizes dessa pauta, que são essas mães, que são essas mulheres muitas vezes devastadas pela violência do Estado.

Mas a luta por essa pauta não passa apenas pelas mulheres diretamente afetadas por ela. Temos na Rede as Mães pela Liberdade, que desde o primeiro encontro somaram forças. E a Myriam Salum, que é uma das coordenadoras, não é uma mulher negra, não é uma mulher pobre. Ela é uma mulher branca, de classe média, mãe de LGBT, mas que tem uma série de privilégios. No entanto, ela tembém tem uma experiência de maternidade com direitos violados e, assim, se sente afetada pela nossa pauta e fortalece sobremaneira a rede. Ela luta junto, ela de fato engrossa o coro de vozes. E tem também o Pontos de Luta, de mulheres que estão em todas essas ocasiões, atividades, eventos, atos, fazendo bordados pra compor a luta. E isso do lugar específico delas, que têm um ativismo relacionado a um ideal que têm de democracia. 

Acho que cada coletivo está nessa luta para defender a causa comum, que muitas vezes pode não ser a causa que lhe é própria, que atravesse o próprio corpo, mas que se engajam porque têm um ideal de sociedade no qual é inadmissível violentar, encarcerar e matar massivamente os jovens negros.

Então, a Rede Mães de Luta acaba por abrigar uma diversidade de pautas que se conectam pelo reconhecimento do caráter absolutamente necessário e urgente do enfrentamento ao genocídio da juventude negra.

Nessa dinâmica, os temas que esses coletivos abarcam acabam gerando muitas trocas e aprendizados. Com isso, a rede vira um espaço de formação também: muitas coisas as mulheres vão aprendendo no contato umas com as outras e na convivência e valorização dessa diversidade. Outra coisa muito importante é o jeito que decidimos as coisas. Tentamos encaminhar tudo da maneira mais coletiva possível, sempre. Decidimos tudo em reunião, tentamos montar as estratégias todas juntas.

A Rede Mães de Luta é, também, espaço de acolhimento e cuidado, especialmente com as mães que tiveram os filhos assassinados. Para elas, a conexão com as outras mulheres é algo literalmente vital. Por isso, nos anos de 2020 e 2021, com a necessidade de isolamento social em função da pandemia, mantivemos encontros online e o contato via whatsapp. Também realizamos atos ocasionais no dia 10 de dezembro, com muitos cuidados e distanciamento.

As mulheres relataram muita angústia pela perda da interação presencial e falaram, diversas vezes, que precisavam voltar às ruas. A Kaká dizia: “gente, eu preciso fazer um ato na porta do Fórum, na porta do TJ, eu preciso ir lá gritar pra eles, né, falar do tanto que eles me causam sofrimento, do tanto que eu morro a cada vez que o processo do meu filho é negligenciado”. Ela consegue dizer isso assim. Outras mulheres, ainda que não digam isso de uma forma tão direta, encontram sua função e seu ponto de vinculação na construção dos atos.

A minha hipótese é que há uma dimensão do tornar público que envolve necessariamente a presença física e a ocupação de espaços concretos. O virtual não dá conta. Entre outros motivos, por uma questão geracional: a experiência da virtualidade, pra elas, é de baixa intensidade. Então, pra elas, a vitalidade da rede se associa à dimensão de tornar público o luto e a luta, em duas frentes. A primeira diz respeito a estar nos espaços da cidade, a gritar, a empunhar a bandeira, a dizer pras pessoas, de alguma forma, o que está acontecendo com elas e o que pode acontecer… A luta se materializa no corpo físico presente na praça. A segunda é a de ocupação de espaços da mídia mais tradicional. Elas entendem que, quando aparecem na TV ou numa página de jornal, abrem a possibilidade de disseminar as mensagens da luta junto a um público amplo … 

A luta é mesmo esse lugar de visibilidade. Ela não tem nada de anônima. Essas mulheres a sustentam com seus nomes, seus rostos, sua voz, cotidianamente. Ela não é anônima, de forma nenhuma. Acredito que a rede social, a virtualidade, talvez tenha um pouco essa dimensão de um certo anonimato pra elas: de algo que vai se perder no meio daquela coisa viralizada, toda, com milhares de informações ao mesmo tempo.

Eu acho que a centralidade está nos discursos das próprias mulheres: elas contando suas histórias, as histórias dos seus coletivos e convidando outras pessoas pra compor a luta. Isso é algo que elas fazem na rua e na interação uma a uma também. Por isso, ao longo do ano de 2020, na pandemia, apostamos na produção de uma série de podcasts com essas histórias. A série foi lançada na semana de 12 a 19 de maio, para lembrar que essa é a Semana das Vítimas da Violência do Estado – mesmo que a gente ainda não tenha conseguido formalizar isso numa lei, mas estamos buscando. 

Criar a série de podcasts só foi possível porque nossas redes estão interligadas, então todo mundo tenta ajudar. A Nina contribui muito com a montagem, eu fiz uns flyers de divulgação usando umas gambiarras arrasadas no design psicológico e psicodélico… Enfim, cada uma vai contribuindo de alguma maneira. E a receptividade das mulheres foi muito bacana: elas escutaram os podcasts umas das outras, comentaram, então acho que ele cumpriu o papel de fortalecer os vínculos naquele período tão difícil. E os podcasts deram outro resultado interessantes: o aumento na quantidade de seguidores, de pessoas que começaram a acompanhar o trabalho, foi significativo. 

Uma grande força, um elemento decisivo para a própria existência da rede, é ela representar a possibilidade de interlocução e apoio mútuo. O Desencarcera-MG, por exemplo, pode ser um importante apoio para mulheres que perderam seus companheiros no sistema prisional, ou para LGBTs que estão em situação de encarceramento. Então, a partir da ideia de um fortalecer a luta do outro, esses coletivos interagem entre si, se conectam. Inclusive for a dos espaços usuais da própria Rede. É uma interação espontânea, autômoma e desejável.

Na pandemia, por exemplo, quando a insegurança alimentar se tornou gravíssima, houve muito um movimento das mulheres dizendo: “gente, tô apertada aqui, precisando ajudar a comunidade. tem alguém que possa somar?” E aí um outro coletivo que tá com uma cesta ia lá socorrer.

Enfim, o reconhecimento mútuo, o aprendizado a partir das lutas conectadas, são dinâmicas já do cotidiano. O desafio é mesmo o da visibilidade pra fora. Porque estamos falando do que ninguém mais quer saber socialmente. As pessoas tentam se afastar o máximo possível de uma discussão sobre a morte do filho, porque quem é que quer trazer isso pra perto de si? 

Então, temos aprendido, ensaiado formas de chegar mais perto com um pouco mais de beleza, talvez, um pouco mais de delicadeza, para que seja mais suportável para o outro escutar, entender, quem sabe acolher e se colocar ao lado também. O que tem dado certo, também. Os coletivos que não lidam diretamente com a questão da letalidade juvenil e se dispõem a somar, se aproximam a partir de uma percepção de que é preciso acolher e se colocar ao lado de quem passa por sofrimentos tão devastadores. É uma conexão pela empatia.

Eu vejo a exposição da dor, do sofrimento, da morte, ao mesmo tempo como uma necessidade e um desafio. No começo, nos primeiros eventos, as mulheres escancaravam a dor de uma maneira visceral demais, e é muito difícil de escutar, é quase insuportável escutar uma mãe descrevendo em minúcias o jeito que seu filho foi assassinado no sistema prisional, e contar que depois disseram pra ela que foi um suicídio. Ouvir falar disso é muito difícil.

É preciso discernir os limites dessa exposição, e dar um contorno político pra isso, pra esse sofrimento. Talvez esse contorno possibilite que o outro suporte ouvir. Só que quem pode fazer esse contorno é só o próprio sujeito que sofre. E daí o desafio é como acolher, como separar o que o coletivo e a rua dão conta e o que é uma demanda de tratamento do próprio sujeito. Porque sabemos que a luta pode ser adoecedora…

Então eu fico pensando que a minha participação, a participação da Nina e de pessoas que estejam um pouco “fora” desse sofrimento tão visceral é essencial no sentido de dar conta de acolher essas dores. Mas não é fácil: às vezes, a gente termina uma reunião e eu sei que pelo menos umas três mulheres vão me ligar e eu vou falar por 40 minutos, uma hora com cada uma delas. Porque a necessidade de falar é muito grande, não cabe no espaço da reunião e não se esgota ali. Mas é bom que seja assim, que esse transbordamento fique pra depois da reunião, porque já houve vezes em que a reunião implodiu, foi só espaço de falar dos sofrimentos de cada uma.

Nos primeiros atos e reuniões, essa expressão do mal estar dominava todos os espaços e às vezes atrapalhava muito, a gente não conseguia falar das pautas práticas. As mulheres pegavam o microfone para contar as dores e ficavam um tempo enorme em relatos de puro horror. Quando isso acontece, o mal estar é tão grande que não há muito o que fazer: é uma dor sem fim, ninguém pode dar conta dela e que ninguém pode reparar o que aquela mãe experimenta em relação a ela. Isso afasta e desmobiliza.

É preciso dar um contorno: o espaço tem que ser de acolhimento, mas também de endereçamento. É muito necessário separar o que o coletivo dá conta, e o que é caso para tratamento, para acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico, com medicação, quando necessário. Assim, tem mulheres que se afastam mesmo em algum momento que a coisa fica mais pesada, quando chega a ficar insuportável. Houve mulheres de coletivo que se afastaram da Rede por um período porque estavam com um quadro depressivo mais grave e não davam conta de ficar ali naquele clima tão pesado. E isso é ok, faz parte. 

Outro aspecto fundamental: cada mulher dá um amparo enorme à outra. Aconteceu recentemente. Infelizmente, uma das mulheres, que estava ligada à luta contra o encarceramento em massa do povo negro, perdeu o filho. E aí a Kaká – que no começo da Rede ocupou muito esse lugar de voltar sempre à narrativa da dor dela – ofereceu a essa mulher muita acolhida e apoio. A gente tem notado que a Kaká mudou de posição na Rede quando passou a assumir um papel de apoiar outras mulheres. Ocupar esse lugar tem sido algo que a empodera.

Por outro lado, é muito legal a gente ver que a Rede se fortalece a cada vez que acontece essa conexão de cuidado, que tem o protagonismo da mulher que viveu a dor que agora está aguda para a outra. Infelizmente, sabemos que as pautas da letalidade e do encarceramento, assim como das violências de modo geral, são muito conectadas. O risco de morte é grande no contexto do encarceramento. E a Kaká, que tinha passado por uma situação exatamente de ter o filho assassinado numa prisão, acolheu a mãe que lutava pelos direitos do filho encarcerado mas, infelizmente, perdeu o filho também.

A gente tem que destacar que é muito significativo a Kaká, hoje, ocupar o lugar de articuladora e mediadora da Rede. Porque ela é uma mulher branca que passou por um processo formativo longo, construído ao longo das nossas conversas nos encontros da Rede, para entender como foi que o filho dela, descendente de japonês, acabou de incluído no genocídio da juventude negra. Porque ela não se sentia contemplada por essa a bandeira. A formação dela para ampliar o entendimento foi feita ali, no dia-a-dia…

E há uma fluidez quanto a quem assume o papel de mediadora quando é necessário colocar limite nos momentos de exposição, acudir a mulher que manda uma mensagem no grupo de whatsapp num momento de desespero, recuperar o diálogo nos momentos de confronto, de embate, de mal-entendidos – porque é grupo, então esse tipo de coisa acontece mesmo. Quando essas coisas acontecem, as mulheres, do jeito delas, vão cada uma fazendo alguma coisa ali e acabam atuando no processo de mediação. Elas entendem a importância disso e o papel delas nisso. E isso acontece com muita frequência.

A Juthay, por exemplo, é uma mulher extremamente mediadora, que tem uma entrada com todas as outras. E há uma disposição de todas em apoiar as demais, sempre. Inclusive aconteceu uma coisa interessante uma vez: a Myrian dizendo do processo dela, como mulher branca e de classe média, entender como podia apoiar as demais. Ela contou que às vezes via umas expressões de sofrimento nas companheiras do grupo, mas ficava meio sem jeito… Aí ela perguntou: “como faço pra acolher? Se eu nem de longe sei o que ela está sentindo…” E aí a resposta das próprias mulheres foi: “um abraço é sempre bem-vindo; sempre que você achar que tem condição de chegar perto, pode chegar, porque a gente precisa”.

Nos grandes atos que realizamos, sempre contamos com a presença de mulheres de redes de São Paulo e do Rio. Elas têm sido fundamentais para a estruturação da Rede. Ajudam na reflexão sobre os caminhos a tomar, têm experiência na construção das manifestações, são uma referência e dão auxílio mesmo aos coletivos daqui. Mas temos também entre nós, por exemplo, o Desencarcera Minas, grupo de amigos e familiares de pessoas privadas de liberdade, que é muito organizado, tem uma estrutura muito bacana, e muitas vezes faze esse papel de apoiar a organização dos outros. Mas a Débora, do Movimento Mães de Maio, fala uma coisa que também é importante: “eu apoio a Kaká na criação das Mães de Maio Minas, mas agora que a rede de vocês se formou, são vocês que têm que estar à frente. Acho muito importante os coletivos, e a rede como um todo, terem no horizonte essa perspectiva da construção da autonomia. 

Os coletivos dos outros estados também nos ajudaram na construção da identidade dos nossos atos públicos: chegaram com suas músicas, com palavras de ordem da luta, nos encorajando a soltar a voz com essas músicas e palavras; e também com bandeiras, faixas, roupas, fotos, livros com as histórias dos filhos. Há uma série de elementos que são muito característicos desses coletivos. E, quando esses elementos chegaram aqui na Rede, compuseram o conjunto de símbolos que deu uma cara pra gente. Isso, lógico, mesclado com elementos específicos de cada coletivo, que foi chegando com suas próprias bandeiras, bordados, banners, produções artísticas (como o vestido criado pela Nina, em parceria com as mães). Cada um ajuda a compor o todo incluindo os seus elementos muito específicos. A Kaká, por exemplo, assim que decidiu que tinha condições de finalmente criar as Mães de Maio Minas, logo produziu a sua bandeira.

É isso: pra elas, é fundamental ter uma imagem que represente os coletivos que integram. Então, cada um dos coletivos tem visibilidade para a sua logo, e há uma preocupação em sempre nomear e agradecer cada um. Já tivemos momentos em que os nomes das lideranças dos coletivos também foram mencionados, em forma de homenagem. É nessas horas que a gente percebe que a articulação acontece de verdade entre elas.

Outra ação importante para a Rede Mães de Luta se manter articulada é o Calendário de Resistência. Foi assim que nós nomeamos os planejamentos de ações de 2019 e 2020 (sendo que esse último praticamente não se concretizou, pelo isolamento social exigido pela pandemia). Estabelecemos algumas datas chave – datas ligadas aos direitos humanos e ao movimento negro – apara realizar ações de visibilidade e/ou para ir para as ruas. Isso nos organiza e faz uma manutenção dos vínculos da rede.

Nossos atos públicos têm sido muito marcantes. Os dois momentos em que os PLs foram protocolados, por exemplo, me marcaram muito. O primeiro protocolo na ALMG teve uma roda gigante de mulheres. E o Projeto de Lei recebeu o nome da Helenira Resende, uma mulher extremamente importante na história do Brasil, no enfrentamento à ditadura militar. Conseguimos trazer uma familiar dela para o lançamento do PL. Veio também a Débora, do Movimento Mães de Maio, e várias outras mulheres do Rio e de São Paulo. E nós ocupamos aquela Assembleia.

Elas ocuparam o espaço de fala junto com as mães mineiras, falando da dor delas, mas com uma voz propositiva, com debate, reivindicação. Então, ao final, foi lindo demais entrar naqueles corredores da Assembleia, com aquela mulherada, com aquelas bandeiras na mão… O vigia tentou nos barrar, porque não tínhamos feito um cadastro prévio, e aí uma delas disse: “nós vamos, entrar porque somos mães e estamos aqui pelos nossos filhos mortos”. E nosso grupo seguiu, pacificamente, mas sem deixar de avançar. O vigia simplesmente se afastou, sem graça. Percorremos aqueles corredores cantando “quem tem medo de formiga não pisa no formigueiro”. Foi um negócio de arrepiar. Eu posso ver o vídeo com o registro daquele dia 257 vezes que eu vou ficar muito emocionada em todas elas. 

E depois teve a ação do dia 10 de dezembro de 2019, lá no CRJ (Centro de Referência da Juventude). Trouxemos a Lucimélia Romão, que realizou a “Mil mil litros de preto” junto com as mães. Aquela performance é de uma intensidade que não tem como alguém passar por aquela experiência e sair ileso. Ver aquelas mulheres juntas, com aqueles baldes pretos cheios de líquido vermelho, representando os filhos mortos – um a um, iam enchendo aquela piscina e gritando os nomes dos filhos, dos conhecidos, dessa juventude preta que aquele sangue estava representando naquele momento… Olha, aquilo foi uma experiência, pra mim, que nem cabe no meu coração, na minha razão… de tão bonito.

Todas as coisas que realizamos têm um eixo. O nosso objetivo, desde a fundação da Rede, é fazer incidência política nas suas diversas nuances: a gente quer lei, então faz projeto de lei; a gente quer garantia de direito, então denuncia e cobra; a gente quer voz e reconhecimento público, da população, de parlamentares, de políticas públicas – por isso trabalhamos tanto pela sensibilização.

E a sensibilização para essa causa é comunitária: é de mulheres que sabidamente são atravessadas por essa violência, mas que por vários motivos não conseguem chegar aos espaços de luta. E também, e principalmente, é social. Precisamos sensibilizar e mobilizar também quem não é atravessado diretamente pelas questões. Porque chegar nessas pessoas e torná-las sensíveis ao nosso tema é extremamente importante pra a luta ter resultados efetivos.

Buscamos uma ação numa perspectiva ampla de política, que vai muito além da política partidária. Estamos em busca de uma política de construção de uma nova forma de humano mesmo, de um novo pacto social, porque o que está aí deu certo, não é verdade? Ele naturaliza o assassinato de dezenas de milhares de jovens negros, todos os anos. Por isso o lema das mulheres, emprestado pela Débora, é “parir um novo Brasil”. A luta delas tem esse sentido, mesmo.

Mas é bom dizer que os dois PLs que a gente criou e que até hoje estão em tramitação são importantes, mas essas mulheres querem muito mais do que isso. Elas querem que eles virem lei e que as leis não fiquem só no papel; querem que leis semelhantes se espalhem pelo país, querem uma lei nacional. Querem, também, descortinar a falsa imagem de que Minas Gerais seria um estado harmonioso, com uma polícia menos violenta, menos mortes etc etc, na comparação com o Rio e com São Paulo.

Por conta disso, queremos trazer pra cá os encontros nacionais dos movimentos das vítimas de violência do estado e da luta pelo desencarceramento. Queremos que Minas Gerais, nessa perspectiva do enfrentamento às violências do estado, passe a compor o mapa do país. Infelizmente, essa não é a realidade ainda. Mas estamos construindo isso.

Temos pela frente o imenso desafio de chegar a mais públicos, ampliando o alcance e fortalecendo a nossa luta. Eu acho que, ainda que não tenha sido de forma muito planejada, nós conseguimos criar um jeito nosso de fazer isso. A gente convida, dialoga, acolhe outros coletivos, de outras lutas. Essa conexão nos leva a outros espaços da sociedade civil. E, nas atividades do Calendário de Luta nas comunidades, temos tido a preocupação de nos articular com pessoas e grupos diversos: movimentos culturais e artistas, o próprio Fórum das Juventudes, a deputada… Já tivemos uma delegada da polícia civil e uma juíza nos nossos eventos. Por meio da aproximação estratégica dessas pessoas, vamos abrindo caminho pra chegar em novos públicos. 

Temos feito também um trabalho de assessoria de imprensa, que nos rendeu alguns resultados, como a participação da Rede no programa Rolê das Gerais, da Globo. É assim: a gente consegue um espaçozinho aqui, um ali, e vai tentando ampliar as conexões um pouco mais a cada atividade.

Rafaela, antes de finalizarmos, eu queria dizer só uma coisa. Se eu não transmiti isso na minha fala, que pena, mas aí eu falo agora, mais escancaradamente: pra essas mulheres, é extremamente importante que elas sejam nomeadas na sua pesquisa. Falo isso por mim também. Eu acho que a academia é esse lugar que tem buscado aos poucos criar novos modelos de possibilidades, de formulação de teorias. Mas não dá pra fazer isso excluindo o nome do sujeito que contribui para que a sua teoria seja construída. Então, dizendo particularmente da minha entrevista, ou do que que vai ser extraído dela, eu gostaria que o meu nome fosse citado sempre que algo que eu disser for utilizado, porque isso reconhece a autoria que eu já tenho. Então, me colocar de forma anônima nesse trabalho significa tirar de mim o direito de ser autora, da minha história, dos meus atos. Pensar em mim como militante, como ativista de movimento social, sem poder usar o meu nome pra sustentar o meu discurso, pra mim, é um trabalho que não me contempla, mesmo. Não me representa e acho que é fundamental poder pensar nisso, sabe? Escrevivência está aí pra ensinar a gente isso, a gente não é objeto de pesquisa, a gente é autor das histórias e a gente compartilha essas histórias com pesquisadores. Então, o mínimo que o pesquisador pode me dar é o direito de poder usar meu nome no que eu disser.

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