Juthay Nogueira
Eu nasci Jundaí, porque quem me registrou foi minha avó. Mas meu nome de verdade, o que a minha mãe sempre quis, foi Juthay. É um pássaro africano. Por isso todo mundo me chama de Juthay Nogueira. Eu tenho 49 anos e há 20 anos vivo no Morro das Pedras, mas nasci na Pedreira Prado Lopes.
Da década de 80 ao final dos anos 90, fiz parte do movimento dos sem teto, da luta por moradia. Naquela época, vivi no bairro Floramar. Sobre o meu envolvimento com as lutas sociais, eu digo o seguinte: aprendi a lutar desde que nasci. Eu me desconheço sem estar em uma luta.
Eu nasci na Pedreira Prado Lopes e, naquela época, não tinha o crack, mas já tinha a cocaína e eu perdi dois irmãos naquela guerra, sabe? Aí, minha avó saiu da Pedreira. Fomos para um outro lugar.
Naqueles tempos, eu pensava que favela não era um lugar legal, não. Pois a favela matava e lá aconteciam muitas atrocidades. E eu falava sempre comigo que eu não iria viver em uma favela. Saí de lá com a minha avó, mas não conseguimos ficar muito tempo num bairro estruturado, morando de aluguel. Na maior parte do tempo, vivemos em condições muito precárias.
Eu sempre tive algo dentro de mim que me impulsionava pra essa questão de posicionamento crítico, de ser inquieta, de ir atrás de algo melhor. Naquela época, eu saía cedo para buscar a doação de pão no IAPI, eu já sabia os lugares que davam sopão. Então, nas minhas andanças, conheci uma mulher que se chamava Elza Arruda. Uma mulher preta, cheia de habilidades, que ia para a comunidade ensinar artesanato. E essa mulher foi fundamental na minha vida, porque ela me colocou em um ponto de partida em que eu não me perdi. Ela sempre levava um lanchinho, sempre conversava comigo. E me ensinou a fazer um monte de coisas, me ensinou a cozinhar. Ela falava: “se algum dia você for trabalhar em casa de família, trabalhe como cozinheira, porque a cozinheira nunca passa fome”.
Eu tinha de nove para dez anos quando a conheci. Mas, aos dez anos, eu fiquei um tempo na FEBEM. Depois, por volta dos 13, fui pra um colégio interno que se chamava Bom Pastor e ficava no Jardim América. Era uma instituição de irmãs de caridade, e eu entrei lá meio cismada, pois eu já tinha um pé atrás com a questão religiosa. E isso aconteceu porque, quando era pequena, uma vez eu quis ser anjinho na Coroação. E algumas mulheres da Igreja (umas beatas) falaram pra mim que não existia anjo preto. Muita treta como essa acontece, muita gente intolerante se esconde sob a fachada de fiel fervoroso. De todo modo, apesar disso, no colégio interno das freiras eu também aprendi muitas coisas, e estudei lá até o sétimo ano. Então, parei e fiquei trabalhando um tempo em casa de família, dormindo no emprego.
Aí, quando eu estava para fazer dezesseis anos, reencontrei um amigo meu de infância, que se chama Wellington. Ele teve um papel muito grande na minha vida, foi um grande conselheiro pra mim, me deu diretrizes para um monte de coisas que me deram outros rumos na vida. A única coisa que eu não segui foi a diretriz de voltar aos estudos.
Naquele tempo, eu era tipo um vulcão, quase que entrando em erupção, e foi assim que entrei pro movimento social. E foi uma época boa, sabe? Lula iniciando, a gente cheia de força e esperança. Mas então começou um embate com o prefeito Sérgio Ferrara em relação ao direito à moradia. Ele passou uma parte do Conjunto Felicidade para as pessoas que reivindicavam esse direito. Só que eu não quis ficar lá. Eu e uma turma ficamos acampados na porta da Igreja São José, resistimos.
Foi uma luta ferrenha. Até tiro na perna eu levei. Eu estava me destacando como liderança política, aí fizeram isso comigo. Nós ocupamos o conjunto hoje chamado de Floramar. Eu tinha dezessete para dezoito anos e naquela época conheci o meu companheiro, com quem estou há trinta anos. O movimento ganhou força e a ocupação está lá até hoje, virou bairro. Quando o Patrus se tornou prefeito, ele deu o título de posse aos moradores de lá.
Então foi isso: entrei pra luta e nunca mais saí. Naqueles primeiros anos,. fui trabalhar no Miguilim Cultural, pois o Wellignton havia me indicado como educadora. Ele precisava de alguém que tivesse a experiência da rua, porque eles não estavam conseguindo alcançar os meninos da rua. No dia que eu cheguei lá para a entrevista, uma galera que já me conhecia. Porque o pessoal de lá já tinha trocado ideia comido, me dado doação para comer. Então, foi muito legal, porque a minha vivência na rua me possibilitou ingressar num trabalho em prol de outras crianças nesse tipo de situação.
Eu também trabalhei na primeira mostra do Arena da Cultura, que aconteceu em 2001. Coordenei a equipe de adereços, na qual criamos coisas muito legais, relacionadas a linguagens artísticas urbanas. legais. Também atuei numa oficina chamada “Livres para brincar” e rea voltada a crianças.
Essas coisas aconteceram no final dos anos 1990 início dos anos 2000, quando eu vim morar no Morro das Pedras. Naquela época, decidi fazer aqui algo em relação à questão do filho da dependente química, que sempre me incomodou. Tinha menino que nem era nascido e já estava para ser sequestrado, porque o Estado sempre sequestrava. E a mãe, que já tinha graves problemas de saúde mental, acabava de enlouquecer. E não havia política pública nenhuma relacionada a essas questões.
Me lembro de uma vizinha nossa daqueles tempos, que era usuária de crack e teve um bebê e, em seguida, o Estado recolheu a criança, falando que ela não poderia cuidar daquele bebê, que colocaria a vida dele em risco. E eu me recordo de ouvir os gritos dela de saudade do filho, que duravam a noite toda. E aquilo me incomodou demais. Eu pensava: “preciso fazer alguma coisa para essas mães”. E aí, comecei a acolher essa mulheres com seus filhos, para poder dar um suporte para elas. Num primeiro momento, eu as acolhia dentro da minha casa, para que elas não perdessem os filhos para o Estado. Porque há várias formas de perder o filho para o Estado, e esse tipo de coisa é uma das formas em que isso até hoje acontece.
Eu comecei dando jantinhas para as mulheres e as crianças. Apenas um prato de comida. Só que, um dia, uma juíza mandou o Conselho Tutelar lá na comunidade, e todo mundo achou que era para buscar as crianças. Não era – era para notificar a mãe e verificar a situação da família –, mas as crianças ficaram apavoradas e se esconderam na minha casa. Então, escrevi uma carta para a juíza. Eu falei pra ela que Conselho Tutelar na favela é igual bicho papão, todo mundo tem horror. E disse assim: “Olha, por que, ao invés de você ficar mandando o pessoal vir aqui sequestrar nossas crianças, você não vem aqui entender a nossa realidade, primeiro? Porque vocês têm que fazer algo para essas mães”. Eu perguntei pra ela “A senhora já foi em um orfanato? Se o governo não cuida nem das escolas, imagina do orfanato”. Escrevi uma carta desaforada.
Uns três dias se passaram e a juíza enviou uma pessoa pra convocar eu e meu marido para uma conversa com ela. Ficamos super nervosos, porque era uma época de guerra aqui no Morro das Pedras, tudo depunha contra a gente. Mas nós fomos. Eu me lembro que era uma terça-feira de manhã. Chegamos lá e ela me chamou pelo nome, me deixando chocada, e me disse: “me conta o que está acontecendo. Me conta que eu quero ajudar”. Ela e o braço direito dela, o Dr. Leonardo, se tornaram nossos parceiros de verdade. Ela depois foi trabalhar num outro estado. Mas até hoje, quando eu tenho algum pepino, alguma coisa pegando, eu bato na porta daquela Vara.
Eu fui me abrindo para um monte de coisa que estava pegando dentro da favela. Coisas das quais as pessoas que estão de fora só ouvem falar. E eu pensava assim: “Não é melhor num primeiro momento acolher essa mãe? Ver o que pega pra ela, primeiro? Tentar dar uma oportunidade?”. Ninguém pode sequestrar. Tem é que estar lá, juntinho, pra ver se essa mulher é ou não é uma boa mãe. É preciso dar uma oportunidade. Algumas de fato não conseguem. Mas a maioria das que foram realmente acolhidas consegue. Isso é o que nos impulsiona.
Tem gente que acha que o que nos impulsiona é coisa ruim, mas eu discordo muito disso, acho que é mentira. O que me impulsiona são as coisas boas que acontecem. Cada mãe que a gente consegue resgatar e que hoje está com seus filhos nos impulsionado a continuar.
O projeto Romper e a Casa Acolher, que são nossas frentes de ação desde 2015, nasceram assim: quando começamos a dar um pratinho de comida, a acolher essas pessoas. Daí o nome “Casa Acolher”: nossa casa e nosso trabalho existem para acolher mulheres e crianças do Morro das Pedras em situação de vulnerabilidade.
Mas tudo começou informalmente, com um esforço para apoiar uma mulher aqui, outra criança ali. Então, a “rádio favela”, que é muito eficiente, espalhou a notícia. Uma criança ia falando com a outra. Por isso, começamos com três, quatro… e hoje são oitenta e seis crianças atendidas, graças a Deus. E tem cento e quarenta na lista de espera. E só estão na lista de espera porque não sou eu que estou à frente dessa situação. Porque, se fosse eu, tinha entrado todo mundo. É aquela história: “onde come um, comem dez”… E não estou nem aí, vou acolhendo todo mundo. Mas, aí, eu fui aconselhada, a gente cresceu, foi preciso planejar melhor, dividir o trabalho.
Temos também o grupo de mulheres que apoiamos, com mais de oitenta atendidas. Muitas delas moram de aluguel, de favor, aqui no aglomerado e lutam por moradia. Temos um grupo de mulheres que estão em situação de violência. E temos também mulheres que perderam os filhos para o Estado, que foram mortos pela polícia. E eu fico indignada porque, acompanhando essas mulheres, percebo que toda a dor desse mundo é considerada legítima, menos a dor da mulher periférica. Porque se uma mulher favelada vai numa delegacia denunciar que apanhou do companheiro, a primeira coisa que fazem é rotular e condenar: “quem mandou você se envolver com bandido?”. Muitas vezes, o agressor nem é bandido. Porque a mulher de bandido não denuncia, pois sabe que fazendo isso coloca a vida em risco.
E quando a mulher perde o filho, morto pela polícia, ela é amordaçada. Porque geralmente ela tem outros filhos. E, para não perder os outros filhos, ela não fala nada. Ela morre aos poucos. Então, não tem o que romantizar nessa luta: ela não tem nada de bonita. É tudo muito feio. Todos os dias é um choro diferente. É uma lágrima diferente. É uma angústia diferente. É uma situação diferente. Eu tive que aprender a dizer para algumas meninas. Eu gosto de falar e de escrever como lidar com essas coisas tão pesadas, para dar algum apoio a elas.
E para trabalhar com mulheres que estão em situação de violência, tem que saber que a menina da favela não pode chamar a polícia para o companheiro. Se ela denunciar e a polícia intervir, ela tem que sumir na hora, senão está morta. Então, eu aprendi que não existe essa coisa de denúncia. E eu já tive que falar isso com promotora de justiça, juiz, delegada. Tive que explicar que é muito bonito indicar o 180, o disque-denúncia, mas como é que a mulher que mora dentro do aglomerado, dentro da favela, vai denunciar? Ela não tem suporte.
Não existe uma casa acolhedora para a mulher nesse tipo de situação, ainda. A gente tem buscado, estamos tentando construir, mas ainda não existe nada disso. Então, em qualquer lugar em que a mulher que denuncia for, não vai estar segura. E há muitas situações em que essas mulheres viram alvo e morrem, mesmo. Outro dia, de dentro da cadeia, um homem mandou matar uma menina linda, de 22 anos, só porque ela estava num baile funk aqui dentro da favela. Então, as meninas morrem, têm o cabelo cortado, têm as pernas retalhadas… É um horror, e eu criei o projeto Romper com a ideia de fazer alguma coisa para quebrar aquele ciclo de violência.
Temos que encontrar forças para fazermos coisas por nós mesmas, porque sabemos que o Estado sempre foi ausente conosco porque a favela nada mais é do que o esgoto da sociedade, infelizmente. Então, eu aprendi que precisávamos fortalecer aquelas meninas. E quando eu digo menina, é menina mesmo. Porque quanto mais jovem, mais fácil fica para o abusador se impor. Por outro lado, se você pega essa menina e fortalece ela, ela rompe o ciclo e vai longe. Porque a mulher favelada é forte – ela precisa ser. Então, nós temos que juntar forças com ela, porque há situações que não dá pra vencer sozinha.
É com esse propósito que a pela Casa Acolher oferece às mulheres do Morro das Pedras atendimentos ligados à saúde (como apoio psicológico e odontológico) e busca ser, sobretudo, um espaço de troca, de ajuda mútua, de capacitação e de construção de oportunidades de trabalho, bem como de fomento a empreendimentos femininos capazes de gerar renda. Conforme eu já destaquei, também atendemos crianças e adolescentes, oferecendo a alimentação diária, dando apoio e estimulando a continuidade da vida escolar, fomentando a leitura (contamos com uma biblioteca) e oferecendo oportunidades de lazer. Junto aos adolescentes, temos uma preocupação em fortalecer a autoestima e as habilidades para o mundo do trabalho, além de fomentar a ação empreendedora na comunidade. Tentamos mostrar caminhos possíveis de futuro sem o envolvimento com a criminalidade, que tem um apelo muito grande na favela, justamente pela falta de oportunidades com que esses adolescentes se deparam quando precisam gerar a sua renda.
Também atendemos um grupo de 25 meninas, de 12 a 24 anos, intituladas jovens empreendedoras, que participam de capacitações, rodas de conversa, atividades de convívio e lazer.
Essa preocupação em tentar criar condições para que a mulher e o jovem empreendam coisas que gerem renda tem como objetivo criar condições para que não caiam na situação de co-dependência… Não pode! Porque, quando se cai nela, é muito difícil sair. É o que acontece com o tráfico: de todos os meninos que eu conheço que foram por esse caminho, só três conseguiram sair. O resto todo ou morreu, ou está preso. E as meninas ficam presas a eles, porque começam a ter relações sexuais com doze, treze anos… Engravidam uma e outra vez. Aí, o cara é preso, e ela fica completamente desamparada, abandonada com as crianças. E essa menina saiu da escola. Inseri-la no mercado de trabalho é praticamente impossível. Eu desisti há anos atrás. Então, o que a gente tem que fazer? Criar por nós mesmas alternativas para empreender e gerar renda. É isso que tem dado certo.
E pra enfrentar a situação de violência, essas mulheres têm que repetir pra elas mesmas, todos os dias, que estão nessa situação e que não adianta fechar os olhos ou achar que vai melhorar. Elas têm que fazer mais ou menos o que os alcoólatras anônimos fazem – eles repetem diariamente aquela frase “eu sou alcoólatra”, e tal. Para essa mulher, o círculo da violência só é quebrado quando ela se fortalece e “vaza no mundão”. Porque, enquanto ela permanecer dentro da casa do companheiro, enquanto ela não quebrar esse vínculo, a dependência e a violência permanecem.
Elas sabem do meu trabalho e então, no primeiro momento, todas chegam aqui na casa procurando emprego, ou alguma outra coisa, como um dentista… Elas nunca falam: “Eu vim porque apanhei”. E aí, aí é que tá. A parte fundamental é essa. Ela tem que assumir isso e, assim, agir. Por isso, acreditamos que é importante fazer uma entrevista com cada uma que chega. Quem as entrevista, geralmente, é a Valéria, que é advogada, ou então a Amanda, que é psicóloga. E umas das perguntas da entrevista é: “Você é feliz?”. Com essa pergunta, você quebra tudo, porque elas começam a falar.
Outra coisa que acontece é que elas dificilmente chegam falando que estão em uma situação de violência. Falam do que estão vivendo como se fossem episódios pontuais: “Ele me bate quando ele bebe ou fica nervoso. Mas ele é um cara bom. Não me deixa faltar nada”. Sempre têm uma justificativa para os abusos. Aí, pra fazer um trabalho de conscientização, é fundamental realizar rodas de conversa. Fazemos parcerias com outros coletivos e trazemos outras mulheres para essas rodas. Mulheres que vão pontuando questões pra elas percebam que aquilo que estão vivenciando são situações de violência.
E a gente vai construindo saídas aos poucos, pois a maioria dos agressores são conhecidos, todos são da favela, e isso exige todo um cuidado. E sempre priorizamos a questão do trabalho e da renda. Temos uma parceria com um empreendimento na Raja Gabaglia que tem mais de 500 salas. Encaminhamos mulheres para lá para receberem treinamento e atuarem como auxiliares de limpeza, de serviços gerais, de restaurante… Mas as vagas de lá são para mulheres com determinado perfil, não para todas. E tem a mulher cujo sonho é ser cabeleireira, por exemplo… Então, o que a gente tem feito nos últimos anos é trabalhar a partir dos sonhos. Porque se eu abrir um curso de cabeleleira e oferecer às mulheres indiscriminadamente, sem procurar saber se elas querem ou têm vocação pra isso, vai ter no curso a mulher que nunca vai ser cabeleireira e que vai tomar o lugar da outra, que quer de fato ser uma cabeleireira, sabe?
Nossa atuação tem passado muito por esse investimento em sonhos. A gente sempre pergunta: “qaual que é seu sonho?”. E, a partir do que surge, vamos buscando as parcerias. Por conta disso, temo uma parceria com um salão de beleza, através da Vila Viva; o Senai nos acolheu também com alguns cursos profissionalizante na área de alimentos e gastronomia. Porque tem como você empreender nessa área. É aquela ideia: se você fizer um chup-chup, faça o melhor. faça o tal do “chup-chup gourmet”. E nisso vamos caminhando e considero que ganhamos muitas batalhas, graças a Deus.
Outra coisa que eu busco é oferecer às pessoas que atendemos o melhor. Eu gosto de oferecer para elas o que eu gosto que ofereçam para mim. Quando eu comemoro o mês das crianças, eu faço festa temática e caprichada, com bolo, com brigadeiro, com salgadinho… com tudo. Também chamo convidados e peço que levem presentes.
Tem outro conhecimento sobre a ação social que a gente aprendeu na prática, de forma muito natural: que qualquer ação educativa para diminuir as vulnerabilidades e empoderar as mulheres não pode ser feita de um jeito professoral, não. Aqui na comunidade, por exemplo, teve uma época em que o número de adolescentes grávidas estava absurdo, maior do usual, que já é uma quantidade bem grande. Aí, me procuraram pra dizer: “tem que ensinar essas meninas a usar camisinha”. Discordo totalmente. Camisinha é o de menos nessa situação. Essas meninas têm que se reconhecer e se amar. Porque, do contrário, é claro que elas vão se envolver em relacionamentos muito ruins, se deixar ser convencidas a transar sem camisinha e correr com isso vários riscos, ou até a engravidar mesmo. Pra tratar desse assunto, nós fizemos roda de conversa, ouvimos as meninas, e trouxemos uma outra que se tornou soropositiva em função desse tipo de experiência. É uma menina bem jovem, como as daqui. Fala a linguagem delas, vive questões semelhantes. Da experiência, nasceu o grupo de 25 adolescentes que atendemos, e só três delas engravidaram.
Temos que ter estratégia, que olhar o que está ao nosso redor e planejar nossas ações. Por exemplo: fico vendo as igrejas evangélicas. Muito da força delas vem do depoimento de quem foi convertido, curado, conseguiu prosperidade. Outro exemplo é o do próprio tráfico. Por que os meninos querem entrar, por que as meninas querem namorar traficante? Porque pensam: “se fulano ouu fulana se deu bem e está com grana e poder, eu vou me dar bem, também”. E na verdade não é assim, não é mesmo? É um caminho de violência e morte do qual dificilmente há como sair. Pras meninas então… Elas acabam em relacionamentos muito violentos e abusivos, além de cheios de riscos. Mas o que eu quero dizer é: a lógica do espelho funciona muito! Então, a gente aprendeu com isso, e pensamos: temos que incorporar a lógica do espelho aqui também, trazendo sempre pras conversas adolescentes e jovens que tenham experiências que possam inspirar as mulheres daqui.
A partir de todo o trabalho que realizávamos, em 2015, nós fomos indicados para o prêmio Acolher, da Natura. Nós vencemos e eram mais de 15 mil projetos, de todo o Brasil, concorrendo. Nosso projeto nem tinha nome e passou a ter nome a partir daquele momento.
Ao participar do prêmio, aprendi com outras mulheres a contar a nossa história e a falar do nosso trabalho. Porque a gente ia realizando, mas nem sabia direito o que era aquilo. Não tínhamos documentação, informações sistematizadas, não tínhamos nada.
Era necessário mudar isso, criar uma instituição que desse base ao trabalho, aprender a registrar a contar nossa história, para que outras pessoas também compreendessem e, assim, apoiassem a nossa luta.
Então, as coisas foram acontecendo. Eu tinha o sonho de criar uma biblioteca, a partir de uns livros que tínhamos na minha garagem. Aí, veio um pessoal aqui filmar o nosso trabalho, e eles fizeram uma campanha de doação de livros pra nós. Meu marido buscava as doações de bicicleta, porque não tínhamos carro. Depois veio a premiação, que podia ser de um a quinze mil reais. Eu achei que estava indo à cerimônia para ganhar mil reais e um fogão industrial para cozinhar mais. E quando eu vi que era finalista e subi no palco, eu realmente eu subi chorando, porque eu pensava: “não acredito que eu vou ser premiada e ainda vou ganhar dinheiro por uma ação que eu nem acho que é tão sensacional assim, que a gente faz miudinha, no nosso dia a dia”. Mas aí foi isso: em 2016, a gente ganhou aquele prêmio da Natura. E agora, em 2020, nós vencemos de novo. Nós vencemos em 2016 e vencemos de novo agora. A caminhonete que temos vem do dinheiro do primeiro prêmio. Em 2016, pela primeira vez na vida eu andei de avião e fiquei em hotel quando fui a São Paulo para a cerimônia do prêmio.
Então, eu entendi o valor do trabalho e, com isso, a desejar que ele crescesse ainda mais. Então, começamos a ampliar nossas ações voltadas a tirar as mulheres da situação de violência. Porque eu, que eu sou uma mulher negratenho toda a consciência de que existe um tipo de violência que é só por causa da nossa cor, da nossa raça. Mas no aglomerado há outras mulheres, de outras cores, sofrendo violência também. Acolhemos todas.
Eu entendi também que você tem que falar com todo mundo, difundir a sua luta em todoso os espaços. Como essa pesquisa de doutorado. Nela, já está escrito, porque eu trouxe essa questão: “Não adianta mandar uma menina da favela denunciar o companheiro porque isso não tem o menor cabimento, pode custar a vida dela. Precisa conhecer essa mulher e ajudá-la a buscar outros jeitos de sair dessa situação”.
Por outro lado, quando você constrói esse caminho com ela e empodera essa mulher, abre um caminho que pode ter resultados muito bacanas. Temos muitas histórias de mulheres que foram fortalecidas pra contar. Acontecem transformações reais, é surreal.
Pra falar dessas nossas coisas, eu já circulei muito, já fui em muito evento. Conheci muitos estados. Em 2018, eu fui para Washington, sem falar nada de inglês. Mesmo assim fui lá e dei o recado. É importante espalhar as coisas em que acreditamos e divulgar o nosso trabalho, para que ele possa se fortalecer cada vez mais.
Outra coisa que faço questão de questionar sempre são os preconceitos. Tem gente que diz: “morrem mais jovens negros porque tem mais jovens negros aprontando”. Essa pessoa não entendeu nada, não refletiu sobre o quanto o racismo é profundo, sobre o quanto a desigualdade e a falta de oportunidades estão por trás desses números. Aí, eu falo da dor da mãe que perdeu um filho, mas até essa dor é minimizada pela visão preconceituosa. Mas tem que falar dela e tentar sensibilizar as pessoas para quebrarem um pouco os preconceitos.
Eu acredito no que fazemos e penso assim: várias empresas, instituições e pessoas têm a maior identificação com a nossa história e, com isso, tudo pra se aproximar e virar parceiras – só que elas ainda não sabem disso. Então, a gente tem que ter a coragem de ir até elas, não pode ter como certo que não está ao nosso alcance. Quando eu identifico uma necessidade das crianças e das mulheres daqui, vou atrás de parceiro pra viabilizar. É claro que muitas vezes não dá certo. Mas em outras, dá. E quando a gente começa a circular e ficar conhecido, as pessoas começam a te indicar e a endossar o seu trabalho. Isso também abre muita porta. É aquela história: amigos sempre fizeram amigos. E, pensando assim, a gente corre atrás e já fizemos parceria com Natura, Senac, Uber e muitas outras empresas e entidades. É assim que a gente se vira pra seguir desenvolvendo o trabalho.
Assim as coisas vão fluindo e se tornando mais profundas. É como um rio que vai crescendo.
A Casa Acolher e o Projeto Romper se conectaram com a Rede Mães de Luta da seguinte forma: eu conheço a Cris Ribeiro há muito tempo. Ela e a família são daqui do Morro das Pedras. A Cris me chamou pra participar e eu entrei de peito aberto. Um dos cursos de formação de lideranças comunitárias que eu havia feito alguns anos antes abordou as questões do encarceramento e do assassinato em massa dos jovens negros e periféricos, além da situação terrível dos familiares das vítimas. Lá, aprendi muito sobre o tema. Mas ele está presente no meu dia a dia: na trajetória que vejo os jovens da minha comunidade trilhando, nos relatos das mulheres e das meninas…
As mulheres que perdem filhos muitas vezes chegam desesperadas e nem entendem aquilo como violência do Estado: vêm pra pedir ajuda, porque estão desoladas, desesperadas. Teve uma, há um tempo atrás, que me procurou convicta de que o filho tinha sido morto pelo Estado, e indignada, querendo fazer algo. O mesmo acontecia com mulheres que chegavam com relatos terríveis relacionados ao sistema prisional. Só que a gente não lidava diretamente com essas questões, não tinha muita ideia do que poderia ser feito. Muitas vezes, pedíamos ajuda pra Cris e ela corria atrás de movimentos e instituições que podiam ajudar.
A Cris é tão forte nisso… Conseguiu advogadas populares que ajudaram a mulher cujo filho tinha sido assassinado. Num outro caso, de uma menina precisava sumir pra não ser morta, foi atrás dos programas de proteção, da passagem pra ela ir embora rápido. Só que a mãe do rapaz segurava os documentos da menina e do neto pra segurá-los aqui. Mas aí a Cris lembrou que ficava documentação na UMEI, e lá a gente conseguiu resolver isso. la, sabe? Só que aí eles tinham documento na escolinha da criança. Que nem UMEI. Sempre fica, né? E isso serviu de base pra gente em outras tretas. Muito do que ela fez e faz serve de base e de espelho para a minha vida e para a Casa Acolher. Além de apoiar, ela nos dá muita referência.
E é importante contar: a menina que foi embora com o filho passou muito perrengue mas hoje ela está bem e linda, maravilhosa – com a vida reconstruída em São Paulo. A mulher que teve o filho morto denunciou os policiais. Além disso, entrou no programa de proteção, porque relatou outras questões, relacionadas a um ex-policial.
Então, quando a Cris nos disse que estava criando a Rede, fomos na mesma hora. Estávamos no encontro do dia 27/05, em que as mulheres se uniram. Desde aquele dia, sabíamos que participar daquela articulação seria muito importante, pois as questões das violências e assassinatos batem na nossa porta direto. Não dá pra contar só com a Cris, precisamos enfrentar essas coisas em rede, mesmo. Com a Rede Mães de Luta, a gente pôde se conectar com um trabalho de rede voltado especificamente pra essas questões. Então, isso nos fortalece muito. E a gente também fortalece a Rede, pois se torna articuladora dela nas nossas comunidades.
Então, a gente vai com tudo. Eu levei uma van de mulheres para o encontro em que a rede nasceu. E olha que foi preciso escolher no sorteio, porque não dava para levar todas as que queriam ir. E foi muito forte para todas elas. Porque é uma situação muito, muito dura. Então, é fundamental ter um espaço pra que ela possa ser trabalhada. Umas das mulheres que a gente atende perdeu o irmão e a cunhada para o Estado. Depois, ela perdeu a mãe também: a mãe morreu de desgosto porque o rapaz era um jovem trabalhador, e ela viveu em desespero depois que perdeu. É isso… Existe uma máquina de matar pessoas, e o nome dela é Estado. Não podemos ficar a mercê dela, temos que nos unir e nos fortalecer. E a Rede Mães de Luta tem essa proposta.
Na experiência de participar da Rede, vejo que a primeira coisa que faz muita diferença é o fortalecimento de cada mulher. É muito importante você olhar para o lado e ver que você não está sozinha. É por isso que eu participo de muitas redes de mulheres – até de um que tem mulher de toda a América Latina. Então, você está angustiada, está passando por uma situação difícil: aí, você solta lá no grupo de Whatsapp da Rede. Talvez a Cris, naquele momento, ela não esteja conectada na conversa. Mas há outras Cris, e isso acontece exatamente porque a Cris é multiplicadora. Aí, acontece assim: se é uma questão com o sistema prisional, por exemplo, com certeza a Dona Teresa, do Desencarcera, vai orientar aquela mulher, pois trabalha com isso. É assim que todas vamos aprendendo o caminho das pedras de muita coisa.
A outra coisa fundamental é a acolhida – e o acolher também. Você sabe por que? Porque a mulher é geradora, é capaz de gerar muita coisa, e de transformar. Mas ela só consegue encontrar a sua força e experimentar do que é capaz se, ao invés ser só violentada, ela é acolhida e amparada. Quando uma mulher é verdadeiramente acolhida, ela fica forte. E uma mulher fortalecida é capaz de muito, ela é muito forte. Por isso, a acolhida é essencial pra fortalecer cada uma e possibilitar que o grupo tenha forças pra lutar.
Mas, do outro lado, tem o acolher: o compromisso de estar ali umas pelas outras. E esse acolher, às vezes, é com coisa simples, como um abraço, arrumar o cabelo da colega, ir com ela num médico. Às vezes, é ligado a coisas mais complicadas, mas sempre há de existir alguém das nossas redes pra somar. E essa dinâmica da acolhida e do acolhe é importantíssima. Porque vou te dizer uma coisa: dificilmente uma mulher acolhida se perde. E a mulher que é acolhida que acolher também. Por isso, é muito emocionante quando a gente vê uma mulher que, num determinado ponto da vida, estava totalmente sem forças, e encontrou força no grupo. Aí, um dia, ela te fala assim: “se eu não tivesse sido acolhida por esse grupo há um tempo atrás, talvez eu nem estivesse aqui viva e com saúde pra contar essa história.
E uma batalha como essa da Reder Mães de Luta é muito profunda, viu? Porque eu afirmo sem temer: não é a droga que deixa o favelado vulnerável. O que deixa o nosso povo em situação de vulnerabilidade é a miséria. É a miséria que faz uma mãe ter que sair para trabalhar em jornada tripla e deixar o filho na mão de calango, pois não existe uma creche, uma escola em que ele possa passar o dia com dignidade. É a miséria de oportunidades que deixa os nossos jovens vulneráveis aos apelos do crime. Ainda estamos tão distantes de tantos direitos básicos… É por isso que temos que juntar as nossas lutas, como fazemos nessa rede.
Enfim… a nossa luta é, principalmente, por sobrevivência. Sobrevivência do povo negro. Sobrevivência das mulheres. Sobrevivência das nossas criança. É necessário quebrar o ciclo da miséria. Porque o que deixa o sujeito periférico em situação de vulnerabilidade é a miséria. A miséria precisa ser quebrada. E isso ficou mais distante de nós com os retrocessos dos últimos anos. Mas seguimos na luta por sobrevivência e por contar, por ser considerado como pessoas que têm direitos e como pessoas que têm o que dizer pra sociedade. É preciso nos ouvir, sabe?
A favela é cheia de problemas – e insisto que eles vêm de uma estrutura que nos joga na miséria –, mas é lugar de amor, de solidariedade. As mulheres vivem isso muito, todos os dias. Uma vez, uma mulher bateu aqui no meu portão aos prantos, muito desesperada. E eu já fui logo abraçando, pois eu tenho essa coisa de já ir logo dando abraço. E ela me abraçou de volta e falou baixinho: “Me ajuda”. E falou assim comigo: “Os caras mataram o meu filho e me proibiram de chorar”. Eu pensei: perder um filho já deve ser um sofrimento imenso, e também não pode chorar? Então, perguntei a ela: “Mas peraí, por que que te proibiram de chorar?”. “Porque disseram que ele mereceu, pois era vacilão e estava roubando na favela”. Imagine a situação dessa mulher, a angústia.
Mas não podem proibir uma mãe de chorar pelo filho assassinado! Ela tem o direito à dor e a reagir à dor. Então eu falei assim pra ela: “Olha, chora a sua dor. Chora porque não tem como não chorar. E eu vou chorar com você. Porque não tem como você guardar isso. E não tem como eu ouvir isso e não me emocionar também.” Aí, o que eu fiz? Fiquei ao lado dela e chorei com ela. E eu compartilhei a situação no nosso grupo de Whatsapp. Eu falei: “Meninas, ela acabou de perder o filho. Então, quem puder, por favor venha pra cá pra fortalecê-la e me fortalecer também, porque eu tô abalada com o que aconteceu”. E tem algumas meninas que é só chamar que elas vêm acudir, sabe? E olha, num instante, tinha mais de 30 mulheres aqui. Aí umas abraçaram, uma fez oração… Outra foi e fez café. Outra ficou por conta de ajudá-la com as questões de cartório. É isso: é preciso acolher para conseguir sobreviver.