Nina Caetano – Elvina Maria Caetano Pereira

Eu sou Nina Caetano. Sou performer e professora. Trabalho na Universidade Federal de Ouro Preto, no departamento de Artes Cênicas e no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Lá eu coordeno o NINFEIAS, que é o Núcleo de INvestigações FEminIstAS,  que é, ao mesmo tempo, um grupo de pesquisa, um coletivo feminista e um projeto de extensão e de educação.. Isso porque eu venho de uma prática de movimento social, principalmente dentro do movimento feminista: pelo menos desde 2008, quando eu tomei contato com a Marcha Mundial das Mulheres. A Marcha foi o meu primeiro contato com o movimento feminista organizado. Nela, fui participar mesmo de manifestações, da marcha em si, de caminhar durante dez dias. Enfim, muitas coisas vão se juntando.

Em 2011, eu retorno à UFOP depois de concluir o doutorado e, naquela época, quis levar para Ouro Preto as experiências estava tendo com o movimento feminista em Belo Horizonte, pra que eu pudesse também, em Ouro Preto, atuar naquele ativismo. Isso aconteceu por necessidade, também teve a ver com o ambiente absolutamente conservador e patriarcal de Ouro Preto – inclusive da Universidade Federal de Ouro Preto, que tem tradições muito complicadas. Sabemos, por exemplo, de casos de estupros nas repúblicas e, ainda, de várias outras violências sofridas pelas mulheres.

O NINFEIAS foi criado em 2013 a partir dessa busca, cujo sentido inicial foi, inclusive, de denúncias de casos e de acolhimento das estudantes. Depois, ampliamos as ações para a cidade e passamos a trabalhar com o CRAS. No processo de criação e consolidação do NINFEIAS, vivi essa passagem: eu, que já vinha do movimento social de Belo Horizonte, conectava ali a minha atuação como professora, como artista, como ativista, dentro das atividades que o grupo desenvolvia.

Eu também tenho um trabalho ligado ao obsCENA, que é um coletivo de investigação artística nascido em 2007. Nele, eu comecei a investigar procedimentos de ocupação e intervenção em espaços públicos e urbanos. Como desdobramento, em 2008, passei a realizar performances de rua com o obsCENA, especialmente com as mulheres integrantes do coletivo. Passei, então, a atuar como performer de rua. Foi a partir do obsCENA que tive contato com a Marcha Mundial das Mulheres. Então , todo esse movimento culminou em algumas ações artísticas que eu passei a realizar, tanto em grupo quanto individualmente. Assim, em 2013, quando comecei a fazer algumas ações sozinha, me entendi como performer – até então, eu me entendia mais com um papel de escritora dramaturga.

Foi a partir da ação Espaço do Silêncio, que existe em torno do feminicídio, que eu comecei a trabalhar sozinha, atuando como performer. Em 2018, eu recebi o convite do Festival Internacional de Teatro (FIT) pra fazer, em Belo Horizonte, uma performance dentro do tema do festival, que era “Corpos Dialetos”. Recebi o convite em junho de 2018 e, alguns dias antes, eu tinha visto uma imagem da Bruna Silva, da Comunidade da Maré, caminhando com a blusa ensanguentada do filho dela – com o uniforme de escola do filho dela, o Marcos Vinícius, que tinha sido baleado e assassinado numa operação policial. E aquilo me emocionou e me emociona muito, aquela imagem foi e é muito forte. É uma imagem que, até hoje, atua sobre mim com muita força. Eu fico muito impressionada com a Bruna Silva, tanto pelo acontecimento em si, que é de uma violência inominável, como pela força dela, de sozinha e contra tudo, absolutamente solitária, se colocar daquela forma clamando por justiça. Aquela imagem é muito forte mesmo pra mim e, de alguma forma, eu a relaciono à Antígona: me vem o rosto de uma mulher solitária, lutando contra tudo. Enfim… eu senti que precisava fazer uma ação a partir daquilo que tanto me afetou. Assim, decidi que minha performance para o FIT seria construída a partir daquela imagem da Bruna Silva.

Então, comecei a coletar várias imagens de mulheres, de mães, e me veio também à memória o movimento argentino Mães da Praça de Maio e o movimento Mães de Maio, de São Paulo. Fui em busca das mulheres que haviam perdido os filhos em situações de violência policial. Tentei fazer contato com o Mães de Maio e consegui o contato da Deise Carvalho, que teve um filho morto dentro do sistema prisional, e a Deise me colocou em contato com várias mães do Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo, na minha cabeça, eu já configurava o que queria fazer: uma grande mortalha em forma de vestido, ou um vestido-mortalha construído de retalhos de depoimentos de mães que tinham perdido seus filhos vítimas de violência policial, assim como Bruna Silva. Aí, num determinado momento, eu comecei a conversar com as mulheres do Rio num grupo de WhatsApp. Disse a elas o que eu gostaria de fazer e contei o que havia me inspirado. Eu falava pra elas que tudo começou a partir da imagem da Bruna Silva, e uma delas, de repente, me fala: “sou eu; sou eu, eu sou a Bruna Silva”. Eu levei um choque. Aí, ela começa a conversar comigo, me manda várias imagens da Maré, peço a ela um depoimento e, a partir do dela, outros vão chegando. Para as mulheres que se interessaram em fazer parte, eu então expliquei como a ação seria e falei da possibilidade da visibilidade dela, uma vez que estaria num festival internacional, que seria televisionado.

Assim, em setembro de 2018 nascia a ação artística, que nomeei Chorar os Filhos, em torno daquele vestido-mortalha. Comecei a criar o vestido com os depoimentos das mães do Rio de Janeiro. Construí então com eles a mortalha e fiz a performance no FIT. E a performance teve mesmo visibilidade, gerou matéria de um jornal daqui de Minas, que abordou a questão da Bruna Silva, pois eu fiz questão de falar de onde vinha tudo aquilo. Então, eu passei a circular com aquela mortalha e, no meio daquele processo todo, fiquei sabendo do evento Mães de Luto e Luta, no Plug Minas.

Naquele momento (maio de 2019), eu já tinha levado o vestido a Salvador, numa ação junto às mães de lá. E eu fiquei sabendo do evento no dia mesmo em que ele aconteceu (27/05): eu estava no computador trabalhando, pesquisando algo na internet. De repente, eu li: “mães de luto, mães de luta”. Eu já tinha nomeado a minha ação anterior de “Espaço do Silêncio” – em referência à morte e ao luto… Eu já estava chamando as minhas ações justamente de “poéticas do luto, poéticas de luta”. Então, quando eu vi o tema, senti como se fosse assim uma ligação muito direta entre o que eu fazia e aquilo.

Estava ali na tela a frase “mães de luto, mães de luta” e eu pensei: é a mesma afirmação do meu trabalho. Aí, quando me dei conta, aquilo era um chamado pra uma reunião que ia começar dali a duas horas. Lembro que era um sábado e a única coisa que eu fiz foi parar tudo o que estava fazendo, tomar um banho e falar: “tô indo”. E fui, sem nem saber como é que era o evento, sem saber se ia ser bem recebida, se eu poderia estar lá ou não. Eu tinha entendido que era um chamado público, aí eu fui.

Aí, eu cheguei lá e vi e ouvi tudo o que eu tinha pra ouvir, todas aquelas mães. Foi muito forte. Ali estavam reunidas muitas coisas: o documentário “Nossos Mortos Têm Voz”, os depoimentos das mulheres. Estavam lá, realizando aquele encontro, várias mulheres muito importantes, a Vivi Coelho, a Etiene, a Edinéia. Várias mulheres muito fortes estavam ali. 

E aí teve um momento em que foi aberto um espaço pra quem quisesse propor ações pra uma agenda da rede que começava a se formar naquele encontro. E eu levantei a mão e falei: “ não sei se tenho alguma sugestão, mas eu queria oferecer o meu trabalho, que é sobre isso e comecei a realizar há pouco tempo. Quero oferecer o meu trabalho para o que vocês quiserem. Estou aqui disponível”. Logo em seguida aconteceu uma reunião em que a gente mudou o nome de luto pra luta.

Era forte a questão do luto, mas percebemos que havia mães com variadas lutas ali: as Mães pela Diversidade, as que enfrentavam a questão do encarceramento em massa. Eram várias questões que iam além do luto, mas todas eram de luta. Lembro então que, naquela reunião, alteramos o nome para Rede Mães de Luta. Logo depois, começaram a acontecer algumas ações, como a primeira que aconteceu na Assembleia Legislativa de MG e teve o lançamento do livro das Mães de Maio. Foi lá que eu conheci a Débora Silva, foi onde eu conheci a Ana Paula Nunes e me aproximei da Kaká. Naquele evento da Assembleia e pra ele levei o vestido. Desde aquele dia, ele passou a fazer parte dos atos das Mães de Luta.

Se depender de mim, o vestido vai estar em todos os eventos da Rede, e isso me deixa muito contente, porque, desde o início, eu sempre imaginei essa ação como uma ação coletiva, eu nunca imaginei que ele fosse uma ação que devesse ser feita por mim sozinha como performer. Sempre achei que a ação deveria ser feita com as mães, junto com elas, que o processo não poderia se reduzir a só pegar os depoimentos. Que seria fundamental elas fazerem junto, elas estarem comigo na ação, e é isso que a rede tem propiciado.

A rede tem possibilitado esse meu encontro com as mães. O vestido, de algum modo, se tornou um símbolo pra essas mulheres: um fortalecimento, uma forma de visibilidade da questão delas. Para mim, ele significa a possibilidade de conseguir efetivar uma ação da forma que eu acho que ela tem que ser: uma criação coletiva, sobretudo. Com isso, não estou deixando de lado a dimensão artística, mas enfatizando o contexto de luta coletiva e o propósito de incidir nesse contexto. Porque a arte tem muita potência, tem muito a contribuir com a luta, em vários sentidos. Eu confio muito na arte, nas potências dela. Muitas vezes, há coisas que o discurso direto não alcança e é preciso provocar afetos. E a arte é um modo potente de provocar afetos. Justamente por isso, penso que é fundamental que a arte esteja inserida no contexto da ação coletiva e possa ser apropriada nesse contexto. Eu acho que isso acontece com o vestido: ele foi apropriado por essas mulheres, pra elas fazerem da arte um modo de lutar.

Quando eu comecei com a ideia do vestido, eu escrevi os depoimento das mães de tinta vermelha. O branco foi pra mim uma escolha óbvia, porque seriam pedaços de pano e a ideia era escrever neles, e é muito difícil escrever em tecidos escuros. Mas o luto já estava ali, pois o vermelho lembra o sangue e lembra também a luta. É uma cor ligada à guerra, à luta. No início, então, havia vários depoimentos, que me foram dados de vários modos. Eu selecionava os trechos mais fortes e escrevia em vermelho, em panos de 20 cm X 30 cm, e de 30 cm X 30 cm. A proposta era ir para o espaço público e costurar um pano no outro, formando uma mortalha, que se estenderia como um grande manto, constituído como que por retalhos, um costurado no outro, sendo cada retalho um depoimento de uma mãe – podendo haver ainda mais de um depoimento da mesma mãe dentro desse grande pano. Essa era a ideia inicial, e a linha entrava ali pra alinhavar esses panos uns nos outros. Mas aí, num ato no dia de Finados (02/11/2019), as mulheres do coletivo Pontos de Luta também estavam. Uma das integrantes, a Lúcia, me pediu alguns pedaços de pano nos quais eu já havia escrito, mas que ainda não estavam costurados. E ela levou aqueles panos e bordou neles.

No mesmo dia, eu, Cris e Kaká fomos com o vestido para a Praça Rui Barbosa – lembro disso direitinho! A Kaká costurou um tempo o vestido e depois me perguntou: “você não quer bordar esse material, não?”. E eu disse a ela que adoraria bordar, mas que bordar levaria muito tempo, levaria mil anos, e não daria pra fazer na rua. Mas a Kaká acabou me convencendo de que bordar era também uma possibilidade de ação. Abrimos ali tal possibilidade, mas no ano seguinte veio a pandemia e só muito depois, em 2021, voltaríamos a nos encontrar presencialmente. Desde então, o vestido segue com a ação de coletar, escrever nos pedaços de pano e costurar os depoimentos, e com bordados que são criados em alguns dos retalhos. A Ana Paula e a Kaká é que têm bordado o vestido, até então. Mas essa possibilidade está aberta, também.

No início do segundo semestre de 2021, já vacinadas, nos encontramos – eu, Kaká e Ana – presencialmente para começar com os bordados. Àquela altura do campeonato, eu tinha recebido também um convite pra participar de um festival, do qual eu não queria participar presencialmente, pelos riscos, mas para o qual eu propus uma vídeo-palestra-performance.

Eu gosto muito de trabalhar com convite de festival porque, além de ser uma oportunidade, você assina um contrato, tem um tempo delimitado para desenvolver, e isso objetiva o processo de criação. Então, convidei a Kaká e a Ana para que participassem. Já iríamos nos encontrar mesmo para bordar o vestido; assim, eu propus de fazermos registros em vídeo dos encontros, e elas toparam. 

Fizemos algumas imagens, eu produzi algumas outras e contei ainda com gravações feitas pelo meu cunhado, o Roquinho, e uma orientanda minha, a Karol Monteiro. Depois eu fiz a edição, juntando alguns textos que tinham relação direta com a ação, textos meus, textos de pessoas que viram o trabalho e fizeram críticas sobre ele, textos delas duas, além dos depoimentos delas. E assim foi criada a vídeo-palestra-performance, com 15 minutos de duração e cujo nome foi “Queremos que o Estado pare de matar menino”. 

Eu achei a vídeo-palestra-performance muito importante, porque foi a primeira vez em que eu consegui ter mães de forma mais evidente no material. Ali, não era só o vestido trazendo a fala delas. Eram elas dizendo o que pretendem com o vestido, qual é a relação que elas têm e a nossa rede tem com ele. A possibilidade de ser uma ação protagonizada, de forma explícita, por elas junto comigo, foi muito valiosa, pois evidenciou a dimensão coletiva daquela criação – que é central na proposta, desde o início.

Ela também foi importante para ampliar a visibilidade da questão da luta de enfrentamento às mortes por violência policial. Afinal, ela pode ser vista de qualquer lugar, e efetivamente já esteve em quatro festivais fora de Belo Horizonte. A gente pode chegar com ela a qualquer lugar deste país, inclusive com a possibilidade de irmos as três juntas para falar da experiência. Por isso, tenho a intenção de criar com elas outros materiais desse tipo.

A outra coisa que eu acho que é importante é que isso pode gerar verba: o dinheiro dos cachês eu divido entre nós três; ou mesmo entre as duas, quando a verba é curta, porque no meu caso eu sou professora universitária, tenho um salário. Então, pra mim faz mais sentido que elas recebam do que eu. É, e é isso…

Tudo isso acabou sendo o tema da minha pesquisa de pós-doutorado, que está centrada na ação artística ligada à luta dessas mulheres, a partir da “Chorar os Filhos”, e envolvendo as mulheres que perderam os seus filhos e integram o movimento Mães de Maio de Minas Gerais e a Rede Mães de Luta.

Depois, veio uma série de encontros, realizados de outubro a dezembro no Núcleo das Juventudes, no âmbito de um projeto de retomada dos encontros presenciais da Rede Mães de Luto após a fase mais aguda da pandemia. Foi um momento muito importante para mim, pois pude participar integralmente de todo o projeto, uma vez que estava de licença de trabalho na universidade, em função do pós-doutorado.

Foram encontros muito intensos, nos quais nós retomamos as propostas e a história da Rede, e fizemos várias atividades para que as mulheres falassem sobre suas histórias e a ligação com o coletivo de luta. E elas falaram coisas muito, muito fortes. Houve ali uma convergência que me possibilitava participar mais e, então, a relação com as mulheres se fortaleceu – e eu pretendo atuar para fortalecê-la ainda mais.

Mas a gente sabe que há muitas dificuldades, sendo uma delas a questão financeira mesmo: o dinheiro do deslocamento e da alimentação a gente teve naquele projeto, mas não existe sempre uma fonte de recursos. E os encontros presenciais são de grande importância, sobretudo para as mulheres que perderam os filhos. Por isso, não podemos perder eles de vista. Mas há momentos, como agora, em que a Rede não consegue se articular para assegurar isso, e a descontinuidade é muito ruim.

Esse trabalho artístico tem que considerar todo o contexto das mulheres, pois eu não associo o feminismo exclusivamente a uma pauta que é a do direito individual, e que pode inclusive ser associada às pautas individualistas do neoliberalismo. Tenho visto muito no feminismo a ideia de que tudo se resume ao “meu corpo, minhas regras”. Assim, se eu consigo reivindicar e agir para assegurar isso na minha esfera individual, está tudo bem.

É claro que o feminismo passa por essa questão também, que é muito importante que as mulheres tenham mesmo o controle do próprio corpo e não sejam assediadas, abusadas, violentadas. Mas eu entendo o feminismo na perspectiva de uma prática radical de luta por justiça social. Pra mim é impossível pensar o feminismo sem pensar em discussões antirracistas, por exemplo. Ainda mais num país como o nosso. Pode ser que feminismo em outros lugares – na Europa, por exemplo – possa ser uma outra coisa, mas num país colonizado como o nosso, de raízes coloniais tão fortes, tão ligadas à experiência racista da escravidão, não dá pra pensar o feminismo, nem qualquer outra luta social, sem pensar nas relações de raça, gênero e classe. Então, o genocídio da população negra, e da juventude negra em particular, é uma pauta feminista.

Pra mim não dá pra separar as lutas de modo nenhum, porque temos que ter no horizonte a idéia de justiça social. Por isso, as mulheres negras defendem que não dá pra discutir antirracismo sem discutir feminismo, ignorando as violências de gênero que elas sofrem, inclusive dos companheiros delas, que são em sua maioria negros.

A importância da conexão entre as lutas fica muito evidente, por exemplo, quando a Dona Tereza, no ato que a Rede Mães de Luta realizou em 06/08/2019, na Assembleia, pega o microfone para contestar o absurdo que é a ideia de privatização das prisões. E ela faz uma fala incrível, que localiza muito bem as violências entrelaçadas às quais a juventude negra é submetida, dando uma verdadeira aula e mostrando que prisão não pode ser objeto de lucro pra ninguém.

E a Dona Teresa nos desafia muito, nos convida a reconfigurar completamente as nossas ideias, quando explica toda a conexão entre a escravidão, o racismo e a política de encarceramento e assassinato em massa do povo negro, em curso no nosso país. Por tudo isso, ela defende o abolicionismo penal. Eu tenho olhado para essa questão a partir de uma ótica completamente diferente a partir de todas essas coisas que venho aprendendo com ela. Mas é uma discussão muito difícil, porque não consigo, por exemplo, pensar em um estuprador fora da cadeia.

Enfim… tudo isso com certeza bagunça conceitos e pontos de vista, e tem ampliado muito o meu olhar. Essas mulheres me trazem as questões sob outras perspectivas, ligadas a sofrimentos que dizem respeito à nossa herança escravista e à violência do Estado. As questões que elas trazem fazem com que minha bandeira, que sempre foi o feminismo, se conecte de forma mais profunda ao anticapitalismo e ao antirracismo, bem como à ideia de justiça social.

Quanto ao alcance das nossas ações da Rede Mães de Luta, eu tenho uma grande dúvida. Ainda que consigamos, em alguns momentos, dar visibilidade a questões cruciais, estamos lutando contra estruturas muito fortes. Frente a elas, o que fazemos é bem pequeno, e as coisas seguem mudando muito pouco. Afinal, a sociedade brasileira tem um racismo profundamente arraigado e é extremamente reacionária, violenta, moralista e hipócrita (as pautas moralistas sempre são propagadas às custas de silenciamentos, de muitas coisas escondidas debaixo do tapete). A eleição de Bolsonaro é fruto disso. Mas, ignorando toda essa estrutura (e para escamoteá-la), foi criado um verniz sobre ela: a falsa ideia de que somos uma democracia racial, um povo bom e pacífico. A gente não é bom, a gente não é pacífico, a gente é um povo absurdamente violento. E o genocídio da juventude preta é uma imensa chaga criada por essa sociedade.

algo tão, uma chaga tão grande,

. É o Bolsonaro é filho da milícia, né?

Então, há momentos em que eu fico muito desesperada, em que não vejo nenhum motivo para ter esperança, e fico mesmo me perguntando: será que o que a gente faz, faz alguma diferença? Tem hora que eu duvido muito disso, mesmo.

As mulheres dessa rede nos trazem questões concretas, tais como: como é que eu tiro meu filho da cadeia? Como é que eu consigo justiça para o meu filho que foi morto? E Justiça, vai ter? E eu penso: que resposta eu posso dar pra isso? Que resposta as entidades e coletivos dessa rede podem dar para esses apelos? E eu sei que são respostas limitadas, pois não temos condições de conseguir justiça para essas mulheres. Mas temos uma responsabilidade como aliadas delas, temos que apoiá-las nessa busca.

Somos nós que vamos conseguir a justiça, nós temos condições de conseguir justiça para essas mulheres?

Então, eu tenho mais angústia do que qualquer coisa. Mas de vez em quando eu acredito, quando vejo frutos de uma ação ou de um festival, quando fico sabendo que uma pessoa que vive longe de nós viu o trabalho e ficou tocada, quando vejo pessoas chamando a gente pra ir falar sobre o tema e realmente dispostas a falar sobre eles, que se preocupam. Nesses momentos, eu vislumbro possibilidades de alteração, ainda que mínimas, no pensamento das pessoas.

Mas, sinceramente, eu vejo mais possibilidade de mudança na atuação do NINFEIAS, que vai à escola pública de ensino fundamental conversar com os meninos e com as meninas, e faz atividades com eles e elas. Fico pensando que, se é possível alterar alguma coisa, é na ação formativa de base, trabalhar com crianças, adolescentes e jovens. Porque as pessoas a partir da idade adulta já não têm abertura, não estão dispostas a mudar sua mentalidade e sua visão de mundo.

Mas, enfim, saber de tudo isso não nos exime da responsabilidade de buscar alguma atenção e sensibilidade da sociedade em relação a uma pauta como a do genocídio da juventude negra. E propor essa pauta dando visibilidade aos dados, que são horrorosos, não tem efeito – as pessoas ou não ligam ou acreditam em coisas como “bandido bom é bandido morto”. Por isso, eu acredito que a arte tem um grande papel nessa luta, porque ela é capaz de produzir afeto.

Vivemos um tempo em que a informação está aí para todo mundo acessar, o tempo inteiro. Toneladas de informações são jogadas sobre as pessoas. Os dados, como sabemos, não comovem. Penso que o que pode fazer diferença é a pessoa ser afetada. Se há algo a ser feito para mudar isso, eu acredito que passa pelo afeto – o afeto que a arte é capaz de produzir e que pode alterar o modo como as pessoas enxergam determinada questão. Quando eu escolhi trabalhar com os depoimentos das mães, eu buscava exatamente esse caminho do afeto. Porque uma mãe falando de uma dor tão dilacerante não é uma informação, é um afeto.

Então, é difícil não ser atravessada por uma mãe que diz algo como o que está nos textos daquele vestido. Muita gente para pra olhar, pra sentir. Eu já tive respostas sobre o trabalho que têm a ver com isso: as pessoas impactadas com o modo como as mães tratam da própria dor, ali. Essa é a minha aposta e eu não escolhi os depoimentos à toa: eu os escolhi justamente sabendo que os dados do genocídio podem não ter nenhum efeito em certos contextos. Acredito que eles ganham atenção e deslocam o olhar quando são articulados com outros elementos, numa poética que produza afeto. Nas ocasiões em que a gente consegue isso, eu até apresento os dados do genocídio, pois eles ganham força quanso são combinados a essa ação poética. 

Enfim, eu penso da seguinte forma: a gente não está precisando de informação; a gente está precisando ser atravessado pelos nossos afetos, porque nos tornamos insensíveis. Vivemos num contexto de excesso de estímulo, inclusive do estímulo à violência. É preciso, então, produzir um outro afeto, baseado em outra lógica: uma lógica do pequeno e do lento, justamente para atravessar o excesso e o ritmo acelerado em que vivemos. Eu ainda acredito nisso.

Nosso processo de constante criação do vestido acontece nessa lógica. E, talvez por isso, há uma ligação muito forte das mulheres com ele. Atualmente, por exemplo, elas passaram a vesti-lo. Aconteceu assim: eu o vesti para fazer a vídeo performance, e pensei: a próxima pessoa a vestir esse vestido não vai ser eu. Pensei isso mas não falei com ninguém. Aí, no dia do ato do dia 10/12/2021, a Ana Paula pediu pra vestir. E eu pensei: isso, amiga. São vocês que vão vesti-lo agora.

Outra ação que realizamos juntas foi uma série de podcasts, que foi criada durante a pandemia. Eu havia tido, no NINFEIAS, uma experiência interessante de criação de podcasts para, na pandemia, seguir tratando de pautas feministas. Aí, eu sugeri isso para a Rede Mães de Luta. E já fazia um tempo que eu e a Cris Ribeiro – que era quem coordenava a Rede na época – pensávamos que seria importante criar um modo de dar visibilidade para as organizações e grupos da rede. As mulheres toparam e, então, criamos um calendário de produção de podcasts, gravados justamente com tais organizações e grupos.

Para produzir os podcasts, o que eu fiz foi basicamente levantar e conversar com cada uma dessas entidades e coletivos. A Cris construiu comigo um roteiro básico de perguntas-chave, relacionadas ao trabalho que cada organização desenvolvia, qual relação ela tinha com a Rede Mães de Luta. Aí, dependendo das questões surgidas em cada entrevista, mergulhávamos em algumas questões específicas. Foi uma experiência ótima. Inclusive, no processo, pude conhecer algumas mulheres de maneira mais próxima. Foi o caso da Ednéia. Ao conhecê-la melhor, eu pensei: que mulher incrível é essa?!! Ela é uma das pessoas mais articuladas que eu já conheci na vida. Tem uma fala muito precisa, articulada e profunda. Depois, fui falar dela com a minha irmã, que é socióloga e trabalha na Prefeitura de BH, e minha irmã disse que a conhecia.

A Ednéia é uma mulher que não tem a educação tradicional, mas se formou na lida do movimento popular e é extremamente sábia, tem conhecimentos muito profundos e uma articulação impressionante, rara. Eu poucas vezes vi uma fala articulada como a da Edinéia – e estou falando como uma pessoa que circula por muitos lugares no mundo e por muitas universidades.

Enfim, eu aprendi muito com essas mulheres, em cada um dos encontros de que participei, de cada ato, de cada podcast. É muito aprendizado, e eu acho que é por isso que eu me coloco muito a serviço da rede, para qualquer ação que for necessária. Tem meu trabalho artístico e de pesquisa, claro, e eu quero desenvolver o meu trabalho também. Mas o meu trabalho, em si, está muito relacionado com tudo isso. Então, meu interesse na rede é sobretudo articular as coisas com essas mulheres. Esse é o meu compromisso.

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da juventude
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