Sheila Castro Queiroz
Eu sou moradora de comunidade periférica. Tenho um filho e ele um dia foi preso: foi inserido no sistema prisional. Quando aquilo aconteceu, eu me senti perdida, sem referência, sem saber o que fazer. E eu trabalhava numa escola, e foi lá que conheci a Elizete,que tem um grupo chamado Mães que Choram. O Mães que Choram acolhe as mulheres que perderam os filhos assassinados, ou que estão com os filhos encarcerados. Principalmente as mães. Eu comecei a conversar com a Elizete e ali eu descobri que eu não era só. Que havia outras mulheres em situação igual à minha ou até pior que a minha. Então, às vezes, ela me orientava. Me dava dicas como: “olha, você tem direito a isso na visita, você pode levar aquilo”. Porque a Elizete, além de ter perdido o filho assassinado, ela também algumas ações dentro de presídios, então ela sabia algumas. Foi assim que eu me aproximei do Mães que Choram.
Eu trabalho com comunicação comunitária desde os anos 1990, quando participei das TVs comunitárias TV Sala de Espera e TV Sala de Aula, que eram realizados na minha região como projetos de extensão da UFMG. Foram os projetos que deram origem à AIC (Agência de Iniciativas Cidadãs), então tenho uma relação de muitos anos com a AIC e com a Rafa. Para mim, como sei que a AIC atua fortalecendo ações nas comunidades, apoiando a comunicação e o desenvolvimento delas, era natural levar as mulheres do grupo Mães que Choram lá. E foi o que fiz. No começo de 2019, comentei com a Rafa sobre o grupo, e ela ficou muito tocada, a AIC passou a apoiar. Mas nós ficamos pensando que seria importante encontrar e envolver outros grupos que lidassem com aquela pauta.
Aí, um pouco depois (acho que em abril), a Cris Ribeiro também procurou a AIC em nome de um grupo de psicólogas que estava buscando parceria pra realizar, em BH, um evento de lançamento do documentário Nossos Mortos Têm Voz, com as mulheres vítimas de violência do estado do Rio de Janeiro. E parece que havia grupos do Taquaril e da Prefeitura atuando com essa discussão, além da própria AIC, que sempre foi trabalhou muito com as questões da juventude. Então, foi uma convergência grande de coisas que gerou o encontro de maio de 2019, no qual a Rede Mães de Luta nasceu. Tenho muito orgulho de ser uma das pessoas que participaram das articulações que geraram essa convergência, que acabou dando origem a essa rede tão importante.
Aquele primeiro evento das Mães de Luta foi tão surreal, porque ali a gente viu vários grupos que lutavam por questões muito parecidas, mas não tinham espaço nem pra falar disso, nem pra conhecer e se articular com grupos com ação semelhante. Não se viam como parte de uma mobilização que envolvia, no fundo, a mesma bandeira.
O encontro foi um momento tão intenso, todo mundo ficou emocionado demais ali, então a rede nasceu. O nome dele era “Mães de Luto e Luta”, mas depois eu lembro que fizemos uma conversa pra pensar a identidade e a ação dessa rede, e aí falávamos que era importante dar uma ideia de que a rede ia além do luto, em direção a luta. Aí, sugeri esse nome “Mães de Luta”, e acabou que o nome final que definimos foi Rede Mães de Luta.
Todas essas experiências foram tão impactantes pra todo mundo que a Rafa, por exemplo, até mudou o tema da pesquisa de doutorado dela, que seria sobre a atuação do Fórum das Juventudes contra o genocídio da juventude negra, e passou a ser sobre a atuação do Fórum e da Rede Mães de Luta (que naquele momento nem tinha nome).
Então, aquele momento de encontro foi algo muito potente na vida de várias mulheres – eu, inclusive – e dos coletivos de mulheres. E a junção dos grupos que participaram do nascimento do Rede Mães de Luta foi um processo muito importante, no qual pudemos conhecer e entender a dor umas das outras e e ir conectando uma luta com a outra. Isso teve um significado muito grande tanto para minha vida pessoal e pro meu ativismo.
Cada encontro era uma descoberta. Neles, fui descobrindo a Teresa… E naquele momento, como eu estava passando pelo processo do meu filho no sistema carcerário, foi maravilhoso encontrá-la, pois ela é do Desencarcera e entende tudo o que a gente passa. Eu também entendi a dor dela, porque ela me contou a história dela, me falou como foi que chegou no Desencarcera. Aí, eu troquei figurinha com a Teresa.
Nos encontros eu fui entender, também, a força da Juthay, do Morro das Pedras, e da Ednéia, do Taquaril. Fui saber como elas faziam para lidar com a questão da violência contra as mulheres das comunidades delas, que era a partir de ações para enfrentar a pobreza. Conheci também uma ação que eu acho linda, que eu passei a amar de paixão, que é a das mulheres do Pontos de Luta, que bordam a nossa dor. E isso que elas fazem é muito legal: bordando juntas e junto conosco, elas criam imagens muito sensíveis pra falar do que vivemos.
São experiências muito fortes. Conhecer todas elas foi muito interessante. Eu acho que eu levei um pouco de cada uma para o Mães que Choram, do qual sou apoiadora, e para o processo de criação de um documentário, que eu fazia à época justamente para tratar das lutas das mulheres que perderam filhos assassinados. A Rede Mães de Luta proporcionou isso: agregar conhecimento sobre várias coisas relacionadas ao trabalho com coletivos e comunidades, a partir de experiências de várias mulheres.
Então, de forma muito natural também, eu fui conectando as outras coisas que eu fazia à época – como um trabalho de mobilizadora social no bairro Nova Cintra – com aquelas experiências todas. Se eu fazia contato com um grupo que queria tirar mulheres da violência, falava: “olha, a Juthay faz isso no Morro das Pedras; a Ednéia faz isso no Taquaril. Vou te passar o contato, conversa com ela”. Eu acho que é assim, linkando as coisas, que a gente fortalece os coletivos e as entidades.
E como mãe eu me fortaleci demais. Fez toda a diferença poder contar com a sabedoria das mulheres que estavam ao meu lado. Uma sabedoria de entender que você tem duas escolhas: sofrer sozinha com tudo aquilo ou ir atrás de outras mulheres, buscando força e também tentando entender a dor delas.
Eu fico muito impressionada com a sabedoria que tem no relato da Elizete: quando o filho dela foi assassinado, ela soube que era o vizinho, que também era jovem. Ela fez a denúncia e o rapaz foi preso no dia seguinte. Aí, ela viu a mãe do menino chorando no portão de casa na hora em que levaram o filho dela. Naquele momento, ela teve a sabedoria enorme de não culpar aquela mãe, de entender que ali havia outra mãe que estava sofrendo, também. E a partir da morte do filho, ela escolheu fazer uma ação social por aqueles jovens e pelas mães. Esse relato dela me marcou muito.
Foi a partir daquela fala da Elizete que eu decidi fazer daquele momento tão difícil da minha vida um aprendizado. Busquei reverter a dor que eu sentia num aprendizado mesmo, e fazer isso apoiando e sendo apoiada por outras mulheres. Porque minha segunda opção era entrar em depressão, como acontece com a maioria de nós, me isolar, chorar e ficar com aquela dor na minha casa, sozinha. Ou talvez encher a cara de medicamento, “dormir para esquecer”. É claro que é outra luta pra gente não sucumbir, porque o sofrimento é imenso, mesmo. Mas me faz sentir melhor pensar que não estou sofrendo em vão, que estou fazendo algo com ela, algo que pode talvez diminuir, nem que seja um pouquinho, o sofrimento de outras mulheres e de outros jovens.
Está aí a importância de redes como a das Mães de Luta e de iniciativas como as Mães que Choram: nelas, as mulheres se encontram em suas dores, e se unem para não enfrentá-las sozinhas. Quando uma mãe que foi amparada vai em uma comunidade e encontra uma outra mãe sofrendo uma injustiça e entrando em desespero, ela pode falar o seguinte para aquela mulher: “Olha, eu sei o que você está passando. É doído demais, mas fica um pouco menos difícil se você for por esse caminho aqui, se juntando a outras em situação semelhante, denunciando e lutando pela sua dor e pela dor de todas”. Com isso, tem mulheres que foram acolhidas na rede e hoje em dia estão nas comunidades delas, trabalhando para ajudar outras mães.
Então, eu acredito muito nisso: você pode fazer do momento de dor um momento de dor e luta. Me vejo fazendo isso quando me junto aos atos da rede, para ali marcar o sofrimento que é meu e de tantas outras mães; quando ajudo as companheiras de caminhada no que for possível no meu dia a dia; e também simplesmente quando ouço uma outra mãe. E quando a gente faz isso, o sofrimento faz algum sentido, ele se junta com a sabedoria das outras mulheres. Aí, você sente que a vida não virou só sofrimento, percebe que tem um aprendizado também.
Na rede, a gente acha também um espaço pra ser ouvida. Porque, quando algo grave como ter um filho preso te acontece, você pode ir na psicóloga do posto de saúde, e ela vai te ouvir, mas como uma profissional – com um olhar mais técnico, mesmo, porque ela não vivenciou aquilo. Mas quando você descobre outras mulheres que passaram ou estão passando pela mesma coisa, fica mais fácil falar daquilo que você passou. E, você se sentindo confortável pra falar e refletir sobre toda aquela situação, também fica mais fácil de entender que outras pessoas precisam saber que do está acontecendo na comunidade: que jovens estão morrendo, que jovens estão sendo presos – não um ou outro jovem, mas um número absurdo de jovens, e dentro de um sistema baseado na pobreza e no preconceito.
Quando você entende isso, quando vê que não é por acaso que tem esse tanto de jovem sendo preso e morrendo, você chega à conclusão que aquilo tudo tem que ser mudado de alguma forma. E que o caminho para mudar é a união das mulheres. Aí, entram na sua vida os coletivos, cada um de um lugar diferente e com uma questão de luta. Você conhece coletivos da Baixada Fluminense, de São Paulo, de várias comunidades da sua cidade. E nisso você vê que as dores e denúncias são específicas de cada grupo, mas eles se unem num só propósito, que é o de contar para as outras mães que elas não estão sozinhas, seja em qual for a situação: seja no encarceramento, seja na perda do filho assassinado, seja em qualquer outra vivência de atrocidades ligadas à pobreza e à atuação violenta do Estado com os pobres.
É isso: nenhuma de nós está só. Temos ao nosso lado as outras que fazem parte desse movimento. E algo pode ser feito a partir da nossa união: algo para que mude alguma coisa, nem que seja pra acontecer uma homenagem a esses jovens, para que a morte deles não fique invisível, para que eles sejam lembrados… Algo tem que ser feito, algo tem que ser dito. E você só entende isso no momento em que se conecta com outras mães que têm a mesma dor. Porque a psicóloga pode te encaminhar, por exemplo, para um grupo terapêutico. Mas elas não passaram pela mesma dor nem estão em busca das mesmas respostas que você está. Elas vão ali fazer artesanato, vão falar das questões de um dia a dia que já não é mais o seu, porque a sua vida saiu totalmente do eixo, porque a sua vida foi destroçada. Elas não passam pela mesma dor e não vão entender, por exemplo, por qual motivo você, quando visita o filho no presídio, volta arrasada. Quem não passa pela mesma dor, nos olha de um jeito muito duro e, muitas vezes, inclusive nos culpa.
Meu filho ficou quase um ano preso. Nas visitas que eu fiz a ele, fui descobrindo muitas coisas que acontecem no sistema carcerário: Por exemplo: percebi que 90% das pessoas que vão são mulheres. Raramente vai um homem visitar um detento. É sempre a mãe, a namorada, a irmã. São sempre mulheres. E isso não é por acaso, não é? Porque quem está lá preso teve ou tem um pai, tem homens na família, tem amigos. Tem algo nisso que, a meu ver, está ligado ao machismo. Um machismo que se reflete no modo em que somos tratadas na porta da cadeia, também. Ficamos todas lá fora por horas a fio, em condições muito ruins.
E ali na porta do presídio você entende o quanto a luta de uma mãe é imensa. Ela acordou às quatro horas da manhã, ela fez um almoço especial, ela comprou algo legal, ela pensou num doce do qual o filho gosta e levou pra ele. Muitas vezes, o que ela fez com carinho para o menino dela é retido, não pode entrar. E ela fica desolada, porque sabe que aquilo faria a diferença no dia dele. Mas ela persiste: faça chuva ou faça sol, está ali na hora da visita, passando por aquele sofrimento todo. Tem dia em que, depois de ter ficado por horas ali esperando, te avisam que a visita não vai acontecer, está suspensa, e nem explicam o motivo. Olha, o lugar da espera nesse sistema não é humano, não.
Poder conversar sobre essas coisas abertamente com outra mãe em situação parecida é muito bom. Abre caminhos para a gente pensar. Ao menos para mim, foi assim. No ato que fizemos na Assembleia, nos outros na Praça da Estação, nas reuniões… Todas as vezes, eu aprendi alguma coisa. Você ouve a história da outra, você entende como um grupo conduz uma luta dele. Por exemplo: você como é que as mulheres da Rede da Baixada Fluminense estão falando da dor delas, aprende o jeito delas de chegar cantando, com as palavras de ordem, as fotos, os relatos.
A gente vê e vai aprendendo. Muita coisa a gente vai incorporando ao nosso jeito de atuar. Cada uma é uma fonte para a outra, e também uma fonte da qual a outra pode beber. Quando você conecta todas aquelas lutas, isso é muito potente. A Teresa do Desencarcera conversa com a Débora do Mães de Maio, que conversa com as mulheres da Baixada, que trocam com as da Bahia. Todas trocamos experiências. Todas aprendemos. Eu acho que a força da Rede Mães de Luta está aí.
Essa rede é da Juthay e da Ednéia, que buscam tirar mulheres da pobreza e da violência nas comunidades delas. É das mulheres que participam das lutas bordando a indignação e a dor. É das Mães pela Diversidade, que combatem o preconceito que violenta seus filhos LGBTQIA+. É das mulheres da Baixada, que enfrentam de maneira muito forte a questão das milícias. É das Mães de Maio, que buscam justiça pelo massacre dos filhos delas e querem contar – e contam – isso para o mundo todo, pois de 2006 até hoje ainda não tiveram uma resposta digna do Estado para a perda e a dor delas.
E, pensando na luta contra o Estado, a gente logo lembra da Teresa, que fala do jovem negro encarcerado massivamente e da seletividade penal, tudo a partir da própria história dela com o filho. Então, se você for pensar, a grande causa que une todas essas mulheres é o fato de serem mães e, como mães, enfrentarem coisas horríveis e lutarem contra essas coisas. E é preciso lembrar, também, que nenhuma de nós é rica e empoderada. Somos todas pobres. É preciso olhar pra cor da pele da maior parte das mulheres dessa luta. Isso não é por acaso.
Por isso, não aceito que nos culpem pelo que acontece com os nossos filhos. Porque você trabalha feito louca para dar as melhores condições possíveis pro seu filho, chega tarde e exausta todo dia em casa e ainda tem mil coisas pra fazer ali. Mas ele quer coisas que você não pode dar, como o tênis de marca, o visual que as meninas curtem. Aí, ele começa a praticar pequenos delitos, vai ser aviãozinho… quando vê, já se envolveu até o pescoço. O menino não começa no tráfico ou em delitos grandes. Acho que, muitas vezes, ele pensa que vai fazer só uma coisinha ou outra, pra conseguir algo que deseja, ou se espelha no status do traficante e também quer ter aquilo.
Do outro lado, tem uma menina, que tem uma vida dura de ajudar em casa, não tem nenhuma educação sexual, muitas vezes sofre abuso, e engravida às vezes aos onze anos de idade; Resumo da história: ambos têm 11 anos de idade, é uma criança grávida de outra criança. E eu, que trabalho há muitos anos como educadora, não vi não foi uma ou outra história como essa: São milhões. A gente ver acontecer na escola todo dia. E essa mãe adolescente, que já nasceu pobre, sofreu muita violência e não tem nenhuma estrutura, se torna mãe. Esse é um círculo vicioso sem fim.
Sabe o que que eu acho que move as mães da comunidade em direção ao Mães que Choram, à Rede Mães de Luta, ao grupo de mães da Igreja ou a qualquer coisa parecida, ou mesmo a sair gritando feito loucas em alguns momentos? A dor. O desespero de pensar assim: “eu tenho que falar para as pessoas que ele morreu e isso foi injusto; que ele está preso e isso foi injusto”. Tem um momento em que ela pensa “não, isso não pode acontecer, isso está errado”. E eu acho que é um momento em que ela se guia por um instinto que é da dor mesmo: é de sentir que aquela dor não tem como calar, que ela vai ter que gritar a dor dela, e que esse grito de dor precisa ser ouvido. Porque você não consegue só guardar aquilo dentro de você, a dor explode em você. Se a mulher tenta guardar aquilo só dentro dela, ela vai para aquele caminho que falei, da depressão e da perda do sentido de viver.
Somos tratadas como cidadãs de segunda classe porque somos periféricas. Meu bairro, mesmo, é super estigmatizado, porque no início dos anos 2000 teve muito destaque na mídia uma pesquisa que indicava que éramos a região com mais homicídios em BH. Sempre lutei contra esse olhar, que é raso, faz com que as pessoas que vivem aqui sejam, de antemão, vistas com o pé atrás. Então, justamente pra mostrar o Ribeiro de Abreu de um jeito diferente, eu sempre fiz trabalhos com mídia comunitária e educomunicação, seja na escola, seja de forma autônima. Há cinco anos, criei um jornal online, o “Diz Aí Comunidade”, para mostrar que tem muito mais coisa aqui no Ribeiro de Abreu além do crime. Em todas as edições, eu mostro iniciativas de assistência social, de cultura e de esporte que são realizadas aqui no bairro, muitas vezes pelas pessoas daqui mesmo. É pra dizermos: “olha, nós não somos um bando de gente violenta, não; deixa eu te mostrar quantas pessoas de bem vivem aqui”.
Eu comecei a trabalhar com comunicação comunitária nos anos 1990. Hoje, essa comunicação ganhou outra cara, com os equipamentos digitais, a internet, as redes sociais… todo mundo pode criar e veicular alguma mensagem. Isso nos dá a possibilidade de mostrar algumas coisas, de que elas não fiquem debaixo do tapete. A mulher que precisa denunciar o Estado, por exemplo, tem como criar, ela mesma, um vídeo para fazer a denúncia. É um avanço importante.
Por outro lado, tem a banalização. Situações de violência e de crime são o que mais tem na TV e na internet, e sempre o jovem de periferia, quando é preso ou morto, de cara é apontado como o vilão. E, como a todo o momento morrem tantos, eles viram número mesmo. Quem vê aquilo toda hora, e ainda a partir de um ângulo em que o jovem da periferia é sempre o criminoso, deixa de ligar.
O documentário que estou produzindo tenta sensibilizar as pessoas. E ele tem histórias de mulheres que cortam o coração. Elas me falaram coisas como: “quem assassinou meu filho, eu sei quem é, morava do meu lado”; eu tive vontade de morrer, mas eu pensei assim: quem é que vai cuidar dos meus outros dois filhos?”; “o meu filho morreu de madrugada e eu ouvi ele gritando ‘ô, mãe socorro, mãe!’” São todas mulheres muito simples e humildes. Eu acho que quem assistir vai pensar na dor dessa mãe. E a dor dessa mãe pode não estar lá na comunicação de massa. Mas ela tem uma coisa que é muito forte: ela gritou, ela contou. Naquele momento, pode não ter repercutido na mídia mesmo, mas ela usou a única arma que ela tinha, que era gritar na comunidade: “Mataram meu filho. Alguém tem que fazer justiça. Alguém tem que fazer alguma coisa”.
E tem as mulheres mais plugadas, que usam o celular e as redes para fazer as denúncias. E, qualquer que seja o alcance disso, ela contou a história dela. Mesmo que só algumas pessoas tenham ficado sabendo. Mas vai que uma das que assistiu é uma pessoa que resolve apoiá-la (uma advogada de direitos humanos, o padre da comunidade, uma liderança comunitária, alguém que conheça alguém capaz de fazer algo)… Vai que é outra mãe que decide ficar do lado dela… Eu acredito que nisso: mesmo que o alcance da voz daquela mãe seja pequenininho, se ela gritou, ela abriu a possibilidade de alguém ouvir. De ser orientada e apoiada, de receber amparo.
Ah, E a dor pelo filho a gente expressa é gritando, mesmo. Sabe quando seu menino machuca ou cai? Você na mesma hora não grita “Ah, meu Deus!”? Você grita sem nem sentir. O grito é esse momento, da dor que aquela mãe coloca pra fora de um jeito visceral, porque doeu de um jeito que não dá nem pra falar. E esse grito pode ser uma comunicação potente, porque ele não só conta uma história, ele traz junto o desespero de uma mãe que perdeu o filho.
E na Rede Mães de Luta, o grito também tem outra forma. É um grito de vozes juntas, que dizem: “A gente está aqui. Nossos filhos morreram, mas nós estamos aqui para contar as histórias deles. Não vamos nos calar”.
Acho que expressar essa dor e se conectar a outras mulheres e às lutas é tão importante que o Estado deveria levantar informações dessas redes e deixar, sei lá, um catálogo nos postos de saúde, pra realmente ajudar a mãe que chegar lá super deprimida porque perdeu o filho. Por que onde é que essa mulher vai buscar ajuda? Não é só com a psicóloga, porque o problema não é só de saúde mental. Tem a ver com a condição daquela mulher como um todo, com a vida cheia de violências que ela vive.
Então tinha que ter uma cartilha desse tipo. Porque a mãe perde o filho assassinado na comunidade e ela não sabe que outras que perderam os filhos da mesma forma podem ser aliadas. Porque a mãe que está com o filho encarcerado não sabe que tem grupo de mães que estão com os filhos na mesma situação e que podem ajudar ela a entender o que é aquele momento.
E a situação dos jovens e das mulheres das periferias, que já era precária, piorou demais com a pandemia e depois dela. As poucas opções de atividades educativas e de lazer que havia nas comunidades foram suspensas e muita coisa, depois, não foi retomada. Os jovens perderam quase todos os espaços de apoio social que tinham dentro da comunidade. E isso já determina parte do caminho desse jovem, não é? Isso sem falar das outras pessoas das famílias deles, que amargam na pobreza e na fome, porque muitas delas perderam todas as suas fontes de renda. Muitas e muitas não conseguiram se reerguer ainda, não, Rafa.
Com isso, a família está na pobreza e na fome, e os jovens perderam o acesso às escolhas. Se a gente olha por aí, a gente entende o enredo das histórias de vida das mulheres e dos filhos das mulheres que estão na Rede Mães de Luta.
Eu tive uma experiência horrível nesse sentido. Uma vez, eu estava dando aula para um grupo de crianças numa comunidade, e havia um momento livre e eu levei os meninos e meninas para brincarem no campinho. Eram crianças de seis a oito anos de idade. Elas resolveram brincar de polícia e ladrão e, como a brincadeira era livre eu, de início, não intervi.
Então, sentei embaixo de uma árvore enquanto eles brincavam. De repente, começou uma correria e eles começaram a catar pedrinhas e folhinhas e se dividiram. Então, percebi que eles montaram a boca do tráfico. Reproduziram tudo à risca. Todas as crianças sabiam como funcionava. Eles se dividiram entre traficantes e polícia e repetiram tudo: alguns negociavam a droga, tinha o fogueteiro que ficava em cima da árvore e avisava quando a polícia chegava, teve um momento em que uns policiais chegaram ficaram com parte do dinheiro, teve troca de tiros. Um dos meninos que era bandido fingiu que morreu. E teve também um momento em que os policiais davam batida nos outros, e a batida era igual acontece mesmo: “Abre a perna aí, malandro. Você está com alguma coisa aí.” Os meninos reproduziam até essa violência da revista policial. Os meninos reproduziam tudo isso naquela brincadeira.
Aí, Rafa, eu comecei a chorar, falei “acabou a brincadeira”, e tentei conversar com eles um pouco sobre aquilo com eles. Mas eram crianças tão pequenas… E reproduziram ali, fielmente, algo que está na rotina deles. Tudo aquilo ali é natural pra eles. Então, que escolha eles têm?
Pense na mãe solo. Ela tem que deixar a criança dela em algum lugar, pois precisa trabalhar para sobreviver e criar os filhos. Houve um tempo em que havia escolas de tempo integral aqui no bairro. Hoje, não tem mais. Ela não tem mais o sossego de saber que ele vai passar o dia na escola, vai poder fazer um esporte, uma arte, esse tipo de coisa. Ela não pode dar isso pros filhos, não tem como pagar. Essa precariedade toda tem muitas consequências. Muitas. Olha, o que ainda existe e realmente muda um pouco essa realidade são projetos sociais independentes, como o da Juthay.
Então, pra mim, o pouco de esperança que temos é a partir da união das mulheres como nós, que estão fazendo algum tipo de ação nas comunidades. No grupo que faz um trabalhinho de formiguinha aqui, que se une a outro que faz um trabalhinho de formiguinha ali… Não tem outra forma. É na união das vozes de todas nós que fortalece a voz de todas e de cada uma. Por isso, temos que fazer da voz de nós todas uma única voz. E ir em busca das outras, para apoiá-las e para que participem também. Porque isso nos dá mais força para gritar o que for.
E veja, por fim, a história que eu vivi com a Rafa: há quase 30 anos, ela era estudante e atuou numa oficina de TV Comunitária lá no meu bairro. Eu era estudante de uma escola local e participar daquela oficina me despertou para um tipo de trabalho e de possibilidades que eu não imaginava, e cuja descoberta mudou a minha vida: fui ser comunicadora, escolhi depois uma faculdade de Jornalismo. Ela, por sua vez, já me contou que estava cursando Comunicação, mas desiludida do jornalismo como profissão. E que participar daquela experiência ali no meu bairro, com a minha comunidade, fez ela ver que havia outro caminho para a profissão, que foi o que ela seguiu. Então, uma transformou a vida da outra. Eu acredito nesse tipo de coisa.
O que nos une e o que une todas essas mulheres de todos esses coletivos é o mulher e mãe. Quem vai falar que não é? São as dores comuns dessas mulheres e mães que as conectam. E essa conexão é muito poderosa. É uma conexão de afeto mesmo, e a partir dela eu me abro de verdade para a situação que a outra mulher está vivenciando, e me torno parceira dela num sentido bem profundo. Quando eu penso nisso, me lembro do vestido da Nina. Porque ele faz exatamente isso: ele costura as histórias, cria a conexão entre as dores das mulheres. Por isso, considero o vestido muito representativo. A linha dele vai costurando um quadrado de pano, que tem uma história, em outro, que tem outra história, e vai tecendo uma história maior… que é uma rede de conexões de dores e de lutas de mulheres, que estão ali conectadas por uma linha. Aquela linha é o elemento que faz a conexão. Ela faz com que aquele mundo pequenininho que está num quadradinho seja parte de um mundo maior que é a cauda do vestido.
Quando você une os quadradinhos, você une as histórias. Você conecta, pela linha, as histórias. E aquilo se torna um grande tecido, que é uma luta maior. Ele conecta e costura essas dores em uma longa história, em uma luta comum.
Pra mim, ali é que está a comunicação. Aquelas palavras marcadas de vermelho naqueles quadrados de pano, e os panos, costurados uns nos outros, formando um grande vestido. A linha abriu uma possibilidade de comunicação e de conexão entre aquelas histórias. Acho isso muito poderoso.
E uma mulher de periferia, que perdeu o filho assassinado, chega numa praça e se depara com aquele vestido. Ela não entende nada de arte contemporânea. Ela não sabe o que é uma performance. Mas ela não precisa saber ou tentar entender, porque ela vê aquilo, lê aquelas mensagens, vê aquelas mulheres, e sabe que tem um pouco dela ali também.
Quando fui fazer uma matéria sobre aquele vestido no jornal comunitário que produzo, não saiu texto jornalístico. Tive que criar uma história, um texto mais poético, sobre a experiência de uma mulher da periferia que se depara com aquele vestido. Porque aquele vestido é pura poesia.