Áurea Carolina de Freitas
Juventudes contra Violência foi o marco de um momento em que o Fórum das Juventudes se reinventou. A gente estava saindo de um ciclo de muita desmobilização, depois de um longo e desgastante processo de tentativa de construção de caminhos institucionalizados, de incidência nas instâncias formais de construção de políticas públicas. O Fórum acabou sendo muito pautado pelas ações da prefeitura e do governo estadual. Não havia espaço real de participação juvenil nas políticas municipais e estaduais e, ao final, andávamos em círculos: confrontos, embates, denúncias… e nada avançava.
Quando reunimos nossas forças para retomar a mobilização, já entramos numa outra chave, propositiva, baseada no que a gente podia movimentar a partir da nossa rede mesmo e no entendimento de qual era o tema mais gritante pra nós. E aí, depois de algumas reuniões, a gente chegou na ideia do enfrentamento às violências contra as juventudes, como um eixo. E eu não sei a sequência exata – se a campanha veio antes da plataforma ou o contrário. Eu acho que veio a campanha primeiro. A gente produziu a campanha, fez vários encontros, de forma colaborativa. Chamamos jovens da rede e pensamos uma metodologia pra que as pessoas pudessem representar o que é essa violência. E foi assim que criamos a identidade visual da campanha. A gente fez um exercício com as nossas próprias fotos e tentou marcar nas fotos os efeitos da violência. E depois trabalhamos as palavras…
Começamos com um exercício de fotografia. A gente fotografou o rosto de todo mundo e imprimiu as fotos, pra então fazer intervenções sobre as imagens. A história da identidade veio depois, em cima do material que geramos naquele processo.
Interferir nas imagens dos nossos rostos foi uma escolha que fizemos pra mostrar que a violência do não acesso a direitos viola nossa essência, nossa face: a parte do corpo que expressa tanto o que somos. Queríamos que a campanha partisse de como cada um e cada uma vivia essa violência e era impactado/a por ela… Porque era importante falar não só da violência física, mas do que ela provoca na nossa subjetividade, de como que ela vai maltratando pouco a pouco.
Mas o conceito era muito esse: como essa violência vai fazendo marcas nos nossos corpos, na nossa alma, e que isso nem sempre é visível… a violência que vai apagando a vida … E foi muito forte o modo como cada um/a se expressou. Foi doído, foi difícil. Cada uma falou da intervenção que fez na própria imagem e explicou suas escolhas. E nisso a gente compartilhou relatos muito sofridos.
Eu rasguei e costurei a minha foto de um jeito bem tosco. Ficou macabro. E acho que tinha que ficar mesmo, porque a violência despedaça. E também porque aquela era a melhor técnica possível pra mim… Os meninos estavam usando tinta, estavam usando altas coisas, mas eu não tinha muito domínio daqueles processos artísticos, então fiz com o que tinha à mão.
Considerando a minha limitação artística, eu pensei: vou rasgar e costurar. Tinha linha, tinha agulha… Foi uma escolha prática. Mas que teve um forte significado, também. Só sai essa técnica porque algo está intrínseco. Eu não sei, eu acho que a identidade é sempre provisória, é algo atribuído, e que a gente também vai formando pra se entender no mundo, pra construir vínculos, pra atuar politicamente. Mas a identidade não deixa de ser um aprisionamento… Porque qualquer enquadramento que a gente faz – sou negra, sou mulher, sou jovem – ajuda a gente a organizar o pensamento e a ação, mas também é uma maneira de a gente ir delimitando. Talvez tenha uma subversão da identidade ali, pois esses fragmentos precisam ser colados de algum jeito, tem uma busca por resolver essa integração das muitas formas de existir – isso sempre foi uma questão pra mim. Porque eu tô sempre atravessando os mundos – isso de estar entre a periferia e a classe média, entre a negritude e a branquitude, entre o privilégio de ter uma formação acadêmica e a rua.
A minha trajetória de trabalho e de atuação política é muito entre mundos, eu me vejo muito assim. Eu tenho até refletido há algum tempo sobre isso, sobre as fronteiras. Então, eu acho que tem um recorte naquela minha foto costurada que conecta mundos, identidades, como eu me apresento, a minha autoimagem e a imagem que eu acabo sustentando publicamente, que tem um monte de costura…
Mas também tem, é claro, a marca da violência. Todas as intervenções foram muito violentas. O Helinho, por exemplo, usou estilete, usou um papel vegetal por cima da foto dele e fez rasgos; uma pessoa usou água e foi esfolando a imagem do rosto, sabe? Foram intervenções muito brabas, mesmo.
Mas a gente estava, ao mesmo tempo, num clima muito bom, de pessoas que se curtiam e curtiam estar ali juntas fazendo aquilo. Tinha alegria, tinha leveza. Então, o clima não pesou. E também a gente criou outras imagens além daquelas. Foi no final que selecionamos as mais intensas.
Depois, veio a escolha das palavras. Fizemos uma chuva de ideias e as palavras foram surgindo. A gente foi agrupando, filtrando, até chegar naquela essência, naquele conjunto de palavras que sintetizavam uma luta por direitos e por existência, mesmo. Mais do que por direitos. A gente falava: juventude sem direitos é juventude violada. Mas eu tenho também pensado muito nisso. Direito é o mínimo pra gente poder alcançar algo muito maior, que é, sei lá: transcendência, ser livre, emancipada. Coisa que não cabe numa caixinha de direitos. Mas sem direito, nem isso…. Claro que a gente pode transcender de outras formas, apesar de todas as violências e privações que a gente sofre. Mas a vida fica tão difícil, né? Se você não tem moradia, trabalho uma renda… o mínimo. E eu acho que todas essas coisas estão entrelaçadas, também. Assim como as palavras dos cartazes da campanha, que juntas, entrelaçadas, produziam um significado muito maior.
A ideia de usar a cédula de identidade na criação dos cartazes foi uma escolha muito feliz que a gente fez, junto com o designer, provocados/as por aquelas imagens das faces, que expressam nossas identidades, violadas.
Pra mim, além da questão das identidades juvenis, das culturas juvenis, das formas de vida, do reconhecimento disso tudo como condição dos direitos, eu acho que tem uma coisa mais literal sendo dita ali acerca do acesso às políticas públicas. A essa mediação do Estado e ao controle estatal sobre os nossos corpos, também. Porque a cédula de identidade é também uma maneira de o Estado impor como cada um e cada uma deve se comportar. Todo mundo tem que se registrar, todo mundo tem que se submeter. Acho que tem essa dimensão dúbia e conflitante.
Por um lado, a gente precisa ser reconhecido como sujeito de direitos e, na linguagem estatal, isso passa por uma burocracia. Por outro, exatamente por conta dessa burocracia, desse controle cada vez mais exacerbado, a gente vai se destituindo, é uma entrega, é um contrato social pesado também. E agora a coisa tá ficando mais tensa, com essa vigilância generalizada que a gente tem com as redes, com a tecnologia, com a hipermilitarização da vida, as coisas estão se agravando… É muito acelerado esse processo de controle, e a gente chegou num ponto que é irreversível. A gente faz parte de um Estado em que a nossa vida é regulada, mas eu acho que essa regulação está atingindo níveis alucinantes.
E as políticas públicas, no enquadramento das identidades, também nos reduzem muito. É um debate que a gente já fazia lá naquele início dos anos 2010: política pública de juventude tem que ser transversal, intersetorial. Hoje a gente fala em interseccionalidade, que não era um conceito daquela época da campanha. Mas esse conceito está muito longe da realidade das políticas públicas, que chegaram ao seu limite e colapsaram: as políticas gerais não conseguiram resolver o problema especificidades dos grupos; já as políticas voltadas a essas especificidades não decolaram.
Enfim… o pouco que a gente conseguiu fazer foi arruinado no Brasil – e globalmente também. Porque não adianta a gente ter políticas de juventude se falta comida, moradia, saneamento… Além disso, as mínimas conquistas dos últimos anos geraram uma resposta extremamente violenta das elites conservadoras e das forças reacionárias. Assim, veio uma onda de retrocesso absoluto, de destruição das políticas sociais: elas foram deslegitimadas e aniquiladas a partir de argumentos moralistas e de uma lógica de absoluta intolerância. Isso junto com o aumento exponencial da pobreza, a ampla circulação dos discursos de ódio, a disseminação de desinformação e intolerância, tudo em efeito cascata. O genocídio se aprofundando, o encarceramento em massa só aumentando, e os discursos do tipo “bandido bom é bandido morto” sendo mais e mais legitimados publicamente. A eleição de Bolsonaro, o governo de políticas de morte que ele implantou, o gabinete do ódio… Tudo isso é resultado da resposta violenta às conquistas básicas que haviam sido construídas.
Mas não estamos completamente à mercê das ondas de retrocesso. Resistimos. Buscamos outros caminhos pra lutar, achamos brechas, nos reconstruímos. É assim em toda a história dos movimentos populares. Naquele começo da década de 2010, a gente estava fazendo exatamente isso: voltando pro jogo, renascendo. Foi um momento de virada, depois de muita frustração tentando incidir na política pública, com uma incidência mínima.
A gente compreendeu e aceitou os limites da ação política institucional e fez uma escolha por um caminho diferente. Avalio que foi inteligente voltar nossas energias pra uma construção mais nossa. Até então, seguíamos uma agenda nacional de discussão de políticas públicas de juventude. E isso foi importante, gerou aprendizados. A gente formou uma geração de jovens, de aliados da juventude, de organizações juvenis. Mas depois veio um entendimento de que não adiantava continuar a insistir com os mesmos caras que estavam lá só sacaneando, que não tinham compromisso nenhum, que nunca iriam priorizar essa agenda. Batemos no teto. Mas foi importante o repertório institucional que construímos, até pra voltarmos com uma agenda nossa. Conseguimos estruturar o nosso conhecimento e as nossas demandas de uma maneira, eu diria assim, mais incorporada. Até então, eu acho que isso não estava tão orgânico pra nós.
E a campanha parte justamente dos nossos corpos, né? Da nossa história. E de quais grupos a gente conseguia mobilizar naquela época, quem estava mais perto. E a gente fez na carne. Foi algo encarnado. Então, esse debate sobre a autonomia ele é – e foi [na campanha] – muito encarnado. Todas aquelas palavras ali foram muito refletidas. E a campanha não era um lema. Impregnamos ela com algo que sentíamos profundamente.
Conseguimos complexificar nossos processos de avaliação e planejamento, e também a nossa estratégia. Porque a campanha depois se desdobrou numa série de encontros, no site. Junto com isso, o Okupa, que até então era muito puxado pelo Observatório da Juventude, virou mais Fórum. E aí esse movimento de participação foi se expandindo. Hoje, o Okupa é descentralizado e construído numa lógica que é, de fato, a de uma rede na qual podem ser experimentadas inúmeras possibilidades de conexão entre os sujeitos.
Ainda sobre o processo de virada que o Fórum construiu naquela época, é bom lembrar que não foi um movimento totalmente harmônico, calcado numa percepção unânime. Quando a gente começou a dar a guinada “vamos sair fora da reatividade, vamos produzir um negócio nosso”, isso foi um incômodo também.
Afinal, tivemos que fazer uma virada, mas sem abandonar todo o nosso histórico. Então, havia pressões no Fórum. Tinha um entendimento na linha: “ah, é inútil a gente ficar insistindo nessa história de conselho, de política pública e tal”. Mas havia outros entendimentos. E chegamos em algo assim: “beleza, a gente entendeu que não dá pra continuar insistindo nessa via exclusivamente, mas não vamos também abrir mão dela”.
No fim, chegamos a um lugar mais híbrido, que eu acho que é o lugar do Fórum, mesmo. Eu acho que é importante termos sim a discussão política no horizonte, pra não nos equipararmos a um coletivo cultural que faz um sarau na quebrada mas que não consegue conectar aquela prática com uma discussão mais ampla de direitos, de integração das lutas também. Acho que o Fórum tem esse papel. Ele faz esse papel: “olha, isso aqui que você tá fazendo é incrível, e isso tem a ver com quem tá discutindo no Fórum do Socioeducativo, com várias outras redes que atravessam a gente”.
Os afetos daquele momento passavam por esse incômodo, mas também por um senso de responsabilidade do grupo e por um vínculo afetivo muito grande com aquela rede, que não podia seguir hibernando.
A retomada, por outro lado, exigia recursos, gente com tempo disponível, e a AIC deu um apoio nisso [cedendo parte da equipe pra coordenação do Fórum e o nosso espaço de trabalho], o OJ cedeu uma estagiária. Aí veio o recurso de um projeto com o Instituto C&A, logo na sequência. Isso fez toda a diferença: tínhamos uma equipe inteiramente dedicada ao processo de reestruturação. A campanha tinha iniciado antes, mas quando a gente aprovou o projeto vieram recursos para impressão, transporte, eventos. A gente já tinha a campanha, mas queria rodar as peças, fazer formação de grupos, lançar a campanha, fazer ações em escolas, produzir a plataforma…
E fizemos tudo isso. Lançamos a campanha e ela causou muito impacto, pois ela tinha imagens muito fortes e encarnadas, que tocavam as pessoas. E essas coisas todas aconteceram num momento que começávamos a tentar dar visibilidade à tragédia que é o genocídio da juventude negra – e precisava fazer isso de uma maneira muito contundente. Todas as campanhas tentavam chamar a atenção, criar alguma comoção, dizer “nossas vidas importam”. Mas a comoção já era algo muito raro, porque a violência contra o jovem é muito invisibilizada e naturalizada. Então, as pessoas precisam sentir o drama. Que é isso: a morte do cachorrinho do Carrefour comove – claro que a gente não vai hierarquizar vidas, mas as pessoas se voltam pra isso com uma comoção que é incomparável –; já essas mortes diárias não geram comoção.
A campanha do Bolsonaro mostrou isso. As pessoas revelaram abertamente que pensavam “essas pessoas têm que morrer, mesmo”. E pra enfrentar essa devastação, a gente tem que achar jeito de acessar o inconsciente coletivo, sabe? Tem algo básico do nosso senso de humanidade que se perdeu e que a gente tem que reconstruir. E essa reconstrução passa pelo afeto, pela possibilidade de ser tocado pela condição do outro, por estancar o ódio e fortalecer outras possibilidades em termos de experiência emocional.
Então, voltando na campanha: tem essa imagem em que parece que o jovem levou um tiro na testa. Ela é pesada demais. A nossa aposta é que pode ser que ela tenha uma força capaz de desestabilizar o discurso pronto do “bandido bom é bandido morto”. E ela expressa, de um jeito visceral, muitas formas de violência. Eu lembro que a gente fazia uma associação com essa imagem do cartaz “Respeito”: ela poderia ser de ser uma juventude LGBT, porque ele está com um colar rosa, que poderia indicar algo que escapa ao padrão heteronormativo… Aquele corpo poderia ser lido como um corpo travesti… Independentemente do gênero e da orientação sexual do jovem que criou a imagem, essa interpretação surgiu nas rodas de conversa e a imagem tão violenta mexeu com as pessoas, abrindo caminho a um debate muito necessário.
E é uma imagem que não diz só da execução a tiros: traz a memória, as histórias que não são contadas, os meninos que vão virando estatística e pronto, assim. E com a memória do menino vai a memória da família inteira junto, a memória da comunidade… Perde-se o rosto.
Tentamos levar todas essas questões pro slogan da campanha também. Ficamos muito tempo pensando no slogan, buscando criar algo que discutisse a violência como negação de direitos. É isso: estamos longe de ser cidadãos, bem longe… E não ter direitos é a violação que nos retira a dignidade, é uma agressão que causa danos irreversíveis, e que a gente só supera, talvez, no entendimento da luta. Pra mim, pelo menos, essa é a minha saída, a minha cura. Porque imagina você ficar resolvendo isso sozinho, na sua família, sem ter uma perspectiva política do que você sofreu. Sobra só trauma.
E a luta é algo imenso: é uma construção que nos transcende, que herdamos de quem veio antes e deixaremos pra quem virá depois de nós. E é uma busca – das mulheres negras, das juventudes periféricas; nosso povo – por “abalar as estruturas” que estão aí tão firmes. Mas eu vejo isso na perspectiva de um abalo sísmico, sabe? De milhares de pequenos abalos, sutis, que nem são percebidos, mas que estão movendo as placas tectônicas, e que por vezes desencadeiam grandes acontecimentos. Pra esse abalar das estruturas, é preciso ter essa noção do ínfimo: ela é necessária pra suportar o que parece inalcançável. Pra mim é um alento esse olhar: tem um horizonte histórico, tem um propósito. Eu tô aqui porque as que vieram antes de mim conseguiram criar as condições do meu agir, em situações ainda mais terríveis, mais adversas.
Eu fico pensando na Marielle. A pesquisa dela sobre as UPPs, que virou livro depois da morte dela. Ela foi vitimada num contexto que compreendia muito bem, mas no qual mesmo assim ela continuava agindo, sabendo que precisava seguir. E o horror diante da morte dela moveu uma placa tectônica gigante! Porque, em todo lugar, as pessoas se sentiram irmanadas com a Marielle, as pessoas se sentiram um pouco Marielle, se sentiram agredidas junto. Foi um tiro que pegou todo mundo. Então, eu acho que esse senso que irrompeu diante da morte dela mostra pra gente a força do coletivo também. Foi uma tragédia insuportável e o sacrifício de uma vida é algo inadmissível, mas fez eclodir o horror e a indignação coletiva frente à lógica do extermínio do corpo negro… É como se o fluxo das energias que ela mobilizava e que atravessavam a história dela quebrasse uma barreira. Ela conseguiu amarrar uma síntese, virou um símbolo pra sempre. As lutas nunca mais vão ser as mesmas no Brasil. Algo estava ali latente e irrompeu.