Bárbara Pansardi
Meu nome é Bárbara Pansardi e eu atuei no Fórum das Juventudes, de forma mais direta e intensa, de 2016 a 2018. Eu sou comunicóloga e cheguei ao Fórum a partir de uma série de constatações e escolhas que eu vinha fazendo nos anos anteriores. Eu fui muito acadêmica ao longo da minha trajetória na graduação da UFMG e nos anos que se seguiram.
Fiz iniciação científica, e tinha muito certo pra mim que meu caminho seria a pesquisa. Até que fiz um intercâmbio e ele me abriu muitos horizontes. Foi uma vivência que me deixou inquieta e desejosa de experimentar outras coisas que a comunicação – mais especificamente, o jornalismo – poderia me propiciar, em termos de uma vivência mais prática e com interface com questões sociais. Nesse caminho, eu acabei na Oficina de Imagens, em 2013, que foi minha primeira experiência formal no terceiro setor. Embora eu tenha tido experiências pregressas com educomunicação, com projeto de rádios, dentro da própria graduação, no trabalho na Oficina eu experimentei algo novo. Atuando como repórter da Rolimã, que é uma revista que fala da luta dos direitos da infância e juventude, pela primeira vez, entrei em contato com a prática da comunicação entrelaçada à discussão da luta por direitos.
Eu acho muito interessante notar como a comunicação atravessa a luta por direitos. E é aí nesse lugar, nessa interseção, que eu me encontro com o Fórum. Na época em que eu estava na Oficina, o Fórum estava justamente no lançamento dos primeiros produtos da campanha Juventudes Contra Violência. A Oficina era muito mais dedicada aos direitos da infância e adolescência, e nem tanto em Juventude. Mas, até pelas interseções das pessoas, pela reverberação que a campanha Juventudes contra a Violência teve naquele momento, que era um momento da retomada da discussão sobre a redução da idade penal, eu comecei a ouvir um pouco mais sobre o que que era o Fórum, o que que era aquela movimentação.
Até o fato de a Oficina ser uma das organizações integrantes pesou, pois as reuniões do Fórum, eventualmente, aconteciam na Oficina. A gente tinha um momento coletivo na Oficina de formação interna de equipe. Eventualmente, as pessoas do Fórum eram convidadas a levar as suas pautas para aquela reunião. Assim eu ia, pouco a pouco, conhecendo mais o FJ.
A época a que me refiro foi no final de 2014, início de 2015. E 2016 foi quando eu, de fato, ingressei no Fórum das Juventudes. Por conhecer o Fórum, ter acompanhado tangencialmente um pouco as pautas, soube do processo seletivo, numa época em que estava procurando emprego. Havia uma vaga na secretaria executiva. O Fórum tinha acabado de passar por um momento de um grande conflito ligado a uma discussão sobre racismo institucional, que levou à realização do processo seletivo no qual eu ingressei para a coordenação de comunicação. As pessoas que integravam o próprio Fórum estavam até um pouco avessas à participação naquele processo seletivo, em função do conflito anterior.
Eu sabia que o momento que me precedia ali era de muito desgaste. Mas, como para mim era uma discussão muito tangencial, meu conhecimento do Fórum não era de uma participação ativa, mas de um respeito, de admiração pelo trabalho, mas sem exatamente fazer parte, e porque eu precisava também de trabalho, decidi participar do processo seletivo. Assim eu entrei para a secretaria executiva, e me aprofundei nas discussões de Juventude ao longo do trabalho no Fórum. Foi mais ou menos isso o que me levou para a secretaria executiva.
Durante a minha experiência na secretaria executiva, o Instituto C&A, que tinha financiado o FJ por alguns anos, fez uma pesquisa internacional para levantar experiências exitosas realizadas com o fomento do Instituto, e o Fórum das Juventudes foi a experiência escolhida como referência em articulação. Recebemos uma pesquisadora, que realizou uma série de entrevistas com pessoas do Fórum e do poder público. Aquilo foi muito legal.
Outra coisa muito legal de que me lembro foi a ação “Adversários da Juventude”. Anteriormente, já tinha sido feito um ranking dos candidatos à presidência em relação às pautas juvenis. Naquele período, fizemos o mesmo para as eleições municipais. Elaboramos uma análise dos planos de governo dos candidatos à prefeitura e divulgamos muito os resultados dela. Mas também usamos uma linguagem leve, com elementos do futebol (tipo “bola dentro” e “bola fora”). Essa combinação é bem a cara do Fórum.
Mas, de toda a minha experiência na secretaria executiva, sem dúvida, a mais significativa e relevante foi a da ocupação do CRJ (Centro de Referência da Juventude). Foi mesmo uma vivência de grande intensidade, e ela aconteceu pouquíssimo tempo depois que eu entrei no Fórum. Quando eu ingressei, já se ventilava essa ideia. O CRJ era uma grande pauta, com uma longa história de muitos conflitos com o poder público e poucos avanços em termos de efetivação. E estávamos num momento de grande efervescência das ocupações estudantis e urbanas. Em função desses dois fatores, nas discussões ganhava força a ideia de radicalizar a democracia e ocupar aquele espaço.
Mas a forma como tudo aconteceu foi meio circunstancial. Nos corredores, a gente conversava sobre a ocupação enquanto possível estratégia para fazer valer o direito de que aquele centro fosse realmente um Centro de Referência das Juventudes. Mas, na prática, não estávamos construindo uma articulação para que ela acontecesse. Contudo, quando ela ocorreu, puxada por alguns movimentos ligados à juventude, fomos junto.
A ocupação teve muito a ver com a conjuntura política daquele momento, o pessoal do CICALT / Valores de Minas se engajou, e tinha um protagonismo bastante forte… Mas, considerando o que a ocupação acabou se tornando, nós acabamos assumindo um papel bastante relevante, principalmente na mediação das discussões.
Destaco ainda, na mesma época, o movimento de ocupação das escolas públicas. O Fórum achou importante apoiar aquele movimento, registrando e divulgando tais ocupações. Eu, como coordenadora de comunicação da secretaria executiva, acompanhei tais mobilizações. Depois, criamos um produto: um vídeo chamado “A luta continua”, que era um retrato do que que aquela meninada das ocupações estudantis pensava, como encarava todas as difíceis pautas daquele momento, como a PEC do teto dos gastos, por exemplo. Foi uma experiência bem legal, e que reverberou no sétimo Okupa, que aconteceu nas regiões do Barreiro, Oeste e Leste de BH.
Os 28 dias da ocupação foram uma loucura, porque ela misturou movimentos juvenis muito diversos. Estavam ali na liderança o Fórum, a UJS (União da Juventude Socialista), e a UNE (União Nacional dos Estudantes) / UMES (União Municipal dos Estudantes Secundaristas de Belo Horizonte). Os outros participantes eram jovens ativistas autônomos e um público mais pulverizado, inclusive pessoas de idades variadas que eram da população de rua mesmo e entendiam aquilo ali como um teto. Então, era necessário um grande esforço de articulação de variados interesses, muitos deles conflituosos, inclusive. Era um esforço contínuo de consenso e unificação, para tentar apresentar uma fala coesa na negociação com o poder público. Mas, na verdade, foi uma ação com muitas contradições, muitos conflitos. Acho que foi muito mais um movimento de pulverização do que de unificação de lutas.
E estávamos vivendo um momento histórico que era muito tenso, com o golpe que alçou Michel Temer ao poder, e uma mobilização grande de protesto em relação a tudo aquilo. Era um momento muito efervescente para a conjuntura política. Com isso, havia ali várias pessoas meio aleatórias, mas mobilizadas pela conjuntura política, por se entenderem de esquerda. Era um grande mosaico: tinha gente da produção cultural, que não tinha necessariamente uma ligação com nenhum dos três movimentos que estavam na articulação, mas que viam ali uma oportunidade de reverberar a ocupação que estava acontecendo na FUNARTE, tinha a turma do CICALT, que protestava contra o governo federal e em função de cortes de verbas na escola, etc.
Uma das coisas que mais me inquietaram naquela época foi que, ainda que fosse muito legal toda aquela efervescência, as juventudes e os seus corpos foram colocados ali numa linha de frente para uma luta que, na verdade, estava relacionada a embates políticos que iam muito além daquela ação. E, como jovem é muito idealista e também muito inflamado, eu acho que há lideranças mais tradicionais que manobram um pouco essa inflamação que acontece nas lutas juvenis. Eu vi isso acontecer na ocupação do CRJ e aquilo me revoltou.
Eu vi, em muitos momentos, uma falta de sensibilidade de entender que o jovem tem um idealismo muito mais inflamável, e que por isso é preciso tomar cuidado com o fogo, com o que se coloca ali na fogueira. Porque é muito diferente o jeito como eles vão para o enfrentamento, para a discussão, para mobilização e para as lutas. Tem muita entrega, tem muito corpo, tem muito de dar a cara para bater. E eu acho que às vezes há pouco cuidado em relação aos riscos, à exposição desse jovem – em diversas dimensões, como a psicológica, e até a dimensão física mesmo, de vulnerabilidade à violência. E esse cuidado eu vi ali que muitos movimentos, muitas articulações não tinham.
Porque é preciso modular o tom do discurso, não é mesmo? Não é só jogar um monte de coisa, inflamar todo mundo e depois não estar ali com os jovens para segurar a onda, para dar conta dos beós. Mas não acho que é uma manipulação nem deliberada e nem cabal, não, porque existe também a autonomia e a consciência de cada jovem que está ali. Contudo, os ânimos ficam sim muito exasperados. E o papel das pessoas que estão na mobilização há mais tempo deveria ser o de dosar o que se fala, oferecer apoio, propor um olhar mais sereno em relação às questões. Mas aí o que algumas lideranças faziam? Chegavam e colocavam mais lenha na fogueira, de um jeito não muito construtivo.
E isso não era nada estratégico, porque a ocupação que tinha mais chance de êxito em BH era a nossa, pois ela era relacionada a uma questão local, enquanto as outras (da FUNARTE, da UFMG e das escolas públicas) tinham pautas mais amplas e muito mais complicadas, de protesto contra o golpe federal. Então, naquela conjuntura, seria muito importante a ocupação do CRJ dar certo. Mas, pra dar certo, a ocupação, que começou no seio daquela galera inflamada, muito por conta do momento político, tinha que ganhar um contorno, tinha que ser estratégica.
Nosso êxito dependia de que fôssemos estratégicos e tivéssemos uma pauta clara para dialogar na esfera municipal. E, apesar de ter havido uma postura pouco construtiva de algumas lideranças, que acabou prejudicando muito o processo, acredito que conseguimos delinear bem o que era a nossa causa, o que era aquela pauta. Definimos aquilo como uma luta municipal das juventudes… Acho que esse foi o grande pulo do gato, que fez com que aquela ocupação não se desmobilizasse com as pessoas vencidas pelo cansaço – que foi o que acabou acontecendo com as outras ocupações da época (a da FUNARTE, por exemplo).
Mas viver aquilo foi estar no meio de muita loucura, foi muito desgastante… Com isso, nós do Fórum acabamos conseguindo nos dedicar pouco ao trabalho estratégico de comunicação. Ao longo do processo, não tivemos como agir muito para dar visibilidade ao que acontecia. Só no final das discussões, quando a coisa já estava um pouco mais avançada, foi que nós, por exemplo, fizemos um trabalho de soltar release para a mídia, e um trabalho mais intenso e intencional nas redes sociais. Mas o que acontecia, de um modo geral, era que muito do cotidiano era gasto sobrevivendo ao que eram as disputas controversas do dia a dia ali.
Outra coisa que foi curiosa foi o fato de que nós do Fórum não ocupamos o CRJ de um modo ostensivo, marcando território. Mas os outros movimentos, mais tradicionais e inclusive com um viés político-partidário, fizeram muito isso. Eles tinham uma identidade visual muito mais marcada dentro daquele espaço: com bandeira, camisa, faixa. O Fórum não tinha. Só que, ao mesmo tempo, tinha uma coisa em jogo ali, que era a questão da presença e da experiência de mediação. E o Fórum tinha essas capacidades. Tinha juventudes muito mais maduras, até mais velhas, inclusive. Talvez mais calejadas e, ao mesmo tempo, mais sensíveis. Porque era um trabalho de resistência política e advocacy.
Então, ao construir estratégias de diálogo e de ação, e ao acessar caminhos de advocacy como o Ministério Público, o Fórum acabou se destacando ali como uma referência. Mas essa não era, necessariamente, uma comunicação estratégica intencional do Fórum. Até porque, na época, o Fórum não se via como protagonista ou liderança daquele processo. Diferentemente das outras organizações, que eu acredito que tinham sim um desejo de puxar, encabeçar, liderar aquilo, levar o nome daquilo, nós queríamos fazer justamente o contrário, que era afirmar que aquela ocupação era uma luta das juventudes na sua multiplicidade. Nesse sentido, não podia ser uma luta do Fórum das Juventudes. Tinha que ser necessariamente uma luta plural.
Durante os dias da ocupação, toda noite tinha uma assembleia. A presença do Fórum era muito forte nas assembleias, e isso tinha a ver com a nossa capacidade de mediação e de articulação. Também éramos articuladores com a PBH e com instâncias, como o Ministério Público, que poderiam fazer (e efetivamente fizeram) a diferença no alcance dos resultados que buscávamos. Então, penso que tínhamos uma força na construção de uma comunicação, digamos, mais intramuros, de uma comunicação interna.
Por outro lado, na comunicação extramuros, eu acho que não tínhamos tanta força… Teve um momento em que isso me gerou até uma certa culpa, porque, em tese, eu estava ali enquanto coordenação de comunicação e não conseguia fazer o trabalho técnico da comunicação externa. Ao mesmo tempo, aos poucos, deixei a culpa de lado, pois o que acontecia era que não tínhamos condições de abraçar o mundo todo. Estávamos ali só vivendo um dia depois do outro, tentando arrumar um pouco aquela confusão, tentando pensar em estratégias de articulação.
O Fórum foi, pra mim, uma grande escola em relação à luta por direitos. Como eu disse, eu tinha acabado de entrar e veio a ocupação do CRJ, que foi uma experiência muito intensa. E eu, embora estivesse já no terceiro setor, era muito jovem ainda. Ali eu aprendi no susto, no exercício cotidiano de pensar estratégias, nas trocas com as pessoas que tinham mais experiência. Mas, naquele contexto, eu também assumi um certo papel de negociação com o poder público, e fico pensando que isso aconteceu, em grande medida, porque eu já tinha um perfil, como outras pessoas do Fórum têm: estava mais dentro do que é a gramática do poder público, do que se considera, dentro de uma lógica preconceituosa e elitista que subjaz a muitos processos e espaços, uma oratória e uma retórica aceitáveis. Isso sem falar na própria questão da discriminação racial mesmo.
Sabemos que o modo de operar do poder público nos processos de negociação com a sociedade civil é marcado por uma lógica racista e que o domínio da “gramática padrão” das negociações está ligado a acessos educacionais que são privilégios das pessoas brancas. Mas, naquele contexto, para avançarmos naquela pauta, era necessária uma mediação que tivesse traquejo para lidar com tal modo de operação.
Outro ponto era o fato de que na secretaria executiva, naquele momento, eu era a única pessoa efetivamente jovem, ainda dentro da faixa dos 29 anos. Isso bateu para mim de um jeito muito forte. Eu sentia que tinha que puxar essa discussão, porque a pauta principal era Juventudes. Por outro lado, eu destoava muito do perfil dos jovens mobilizados, pois era uma pessoa branca e não era uma jovem de quebrada, como era a maioria ali. Mas, quando a ocupação terminou, foi criado um comitê provisório de gestão para o qual eu e a Amandinha, que era estagiária do Fórum, fomos eleitas, além de dois jovens que, assim como a Amanda, eram de quebrada.
Todo um período de negociação, de embates com o poder público, que veio na sequência, foi muito pesado para mim. A Amanda e os dois rapazes não dominavam aquela gramática que é tão forte no diálogo com o poder público, e nem tinham interesse nela, os ativistas e coletivos foram se afastando, pois têm uma resistência, rechaçam mesmo a dimensão institucional mais formal. Então, fiquei muito sobrecarregada.
E tudo foi muito desgastante também porque os debates tinham muita violência verbal por parte dos movimentos mais tradicionais. Houve muita tensão e fui muito insultada, muito desrespeitada no dia da eleição do comitê gestor definitivo. Aquele dia foi de tanta tensão que teve gente que saiu na porrada mesmo (se bem me recordo, o motivo foi que um chutou e rasgou a bandeira do outro). O final do processo foi tão traumático, tão desrespeitoso, que o Fórum decidiu não participar do conselho definitivo que se instalou. Mas, de todo modo, o CRJ acabou ganhando uma cara que tem alguma abertura para as juventudes, e eu acredito que isso foi uma conquista do processo de ocupação.
A partir de tudo o que aconteceu naquele episódio da ocupação do CRJ e das negociações e encaminhamentos até que um comitê gestor definitivo fosse eleito, eu pude perceber uma particularidade do Fórum e do contexto de nossa incidência. Pude notar que, naquele momento, o perfil do Fórum, mesmo com sua relativa diversidade, estava dado por um certo grupo de pessoas que dominava uma certa gramática ou que conseguia, na hora do discurso, na construção da oratória, na elaboração das ideias, dialogar de um lugar que o poder público julgava aceitável. Na experiência, eu fui vendo que tem um lugar no Fórum que é um lugar do privilégio – que não é só o lugar privilégio dado pela branquitude, porque o Fórum tem pessoas negras também nos papéis de liderança, mas um certo privilégio epistêmico, mesmo.
Mas, no caso do CRJ, também houve uma questão que, na verdade, é um grande problema dos processos de mobilização. A gente convocava as pessoas pra pensarem conosco as estratégias, dividirem as tarefas, e não era muito expressivo o número de pessoas que comparecia. Mas, na hora de apontar o dedo e reclamar, elas estavam lá. O que não acontecia na hora de construir, em que elas não estavam.
Uma coisa bacana do Fórum das Juventudes é que cada geração e cada configuração de secretaria executiva dá uma tônica muito particular para os processos de gestão. A gestão em que eu estive presente foi uma gestão intermediária entre o que era a secretaria anterior, que era composta por pessoas como a Áurea e a Sâmia, que já atuavam muito nesse lugar da incidência política e advocacy. Naquele período, foram construídas estratégias muito fortes de comunicação para a mobilização social e a incidência institucional. Na secretaria que integrei, que veio uma geração depois, o tom já era de mais leveza. O enfrentamento institucional já não era tão representativo para as pessoas que integravam o Fórum. Eram pessoas que participavam e davam contribuições de um outro lugar, que era muito mais um lugar da formação dos jovens, da ocupação cultural, da participação no slam; e muito menos daquele tom “vamos ocupar a audiência pública”. Mas a minha geração tinha o peso de ter sido precedida por pessoas muito fortes e destacadas, então a gente tinha uma certa insegurança.
Eu acho que a ocupação, e o posterior processo de efetivação do conselho do CRJ, reaqueceram um pouco o movimento. A AIC se aproximou, o Sebastian, o Juarez, a Gabinetona (equipe do mandato da Áurea, então vereadora). De todo modo, já era uma fase intermediária, em que a tônica da incidência política institucional, que já vinha perdendo força desde 2011, acabou se tornando periférica.
Outro aspecto já ia se anunciando: a prevalência dos ativistas autônomos. As organizações, à exceção da AIC (porque ocupávamos a mesma casa e isso estreitava o diálogo, então a AIC apoiou demais ações como a da ocupação, colocando a equipe para apoiar), não estavam presentes na construção do cotidiano.
Essa mudança de perfil, a meu ver, teve vários motivos. Mais ou menos em 2014 / 2015, havia acontecido a discussão, muito pesada e traumática, sobre racismo institucional. Ela gerou uma certa pulverização depois do trauma. Mas temos que considerar também a questão da conjuntura: o Fórum é de 2004, mas o Estatuto da Juventude é de 2013. Então, nos anos entre as décadas de 2000/2010, tinha uma efervescência na discussão e na luta por políticas públicas de juventude, que seria um marco político-institucional muito forte, pois não havia uma referência legislativa consolidada para os direitos juvenis. E o Fórum ocupou um lugar relevante naquela discussão, mesmo no cenário nacional. Dos anos 2010 em diante, outras pautas, outros modos de construir e outros sujeitos – os coletivos e os ativistas autônomos – foram ganhando centralidade.
É engraçado pensar que aquele foi um momento super traumático na minha vida, mas eu saí com várias lições da ocupação. Aprendi algumas coisas que levo como lições máximas de vida. Uma delas é: ficou muito evidente para mim, na época da ocupação, naquele caos absoluto, o papel do afeto para conseguir mediar as discussões. E isso é uma percepção que eu devo muito à Vivi Coelho. Eu sempre me portava com racionalidade, ia para o embate argumentativo. E com a Vivi era assim: podia estar o caos absoluto, podia estar tudo horrível e ter um monte de gente xingando, mas ela estava sempre com um sorrisão na cara. Ela abria os braços e falava “vem cá, me dá um abraço”. E, só depois que a pessoa abraçasse, ela tentava baixar o tom da discussão e seguia.
Ver o jeito da Vivi conduzir aquilo foi me ensinando que não era no debate argumentativo ou na racionalidade que eu ia consegui levar, mas era tentando levar para esse lugar da mediação do afeto. E, uma vez que o afeto tivesse aberto os caminhos, aí sim fosse o caso de, talvez, entrar na discussão argumentativa. No fim das contas, a discussão argumentativa era secundária no que a gente precisava construir ali, não era o amálgama de que a gente precisava para aquela situação como um todo. Então, esse foi o maior aprendizado de mediação de conflitos e gestão de crises que a ocupação me ensinou.
Outro aprendizado que tive foi entender que não existe essa coisa fechada de “nós versus eles”, porque naquele momento, o Nilson e o Ricardo, que eram representantes da Fundação Municipal de Cultura nas negociações e construções, em diversos momentos foram parceiros meus dentro daquele caos. Eu vi ali que quem, em tese, era para estar no “outro lado da trincheira” estava sendo muito mais sensível e respeitoso comigo do que muitos dos que pretensamente estavam do “meu lado da trincheira” – afinal, como eu disse, havia uma postura bélica e atitudes muito agressivas de lideranças de alguns dos movimentos mais tradicionais que integraram a ocupação.
Se repararmos em processos como o da ocupação, a gente vê que não existe essa polaridade de que tanto se fala. Encontramos aliados em todos os campos, assim como encontramos dificuldades e ensinamentos em todos os campos. Essa lógica totalmente polarizada do “nós contra eles” é meio virtual. Então, isso também foi uma coisa que o CRJ me ensinou – aprendi inclusive a importância de conseguir construir aliados que estão na outra ponta, em tese, da disputa. Aprendi isso ao ver o quanto essa construção foi essencial naquele processo.
Fazendo uma análise mais macro do Fórum naquele período, acho que era uma fase em que a gente tinha uma capacidade operacional mais limitada, até em função da diminuição do comitê gestor, com as entidades participando menos. Apesar disso, eu acho que a gente trazia uma vontade de abraçar muitas coisas simultâneas. E uma delas foi a decisão de apoiar as ocupações estudantis de algum modo. Foi muito um trabalho centrado na frente de comunicação, estritamente. Eu conduzi o processo de acompanhar algumas ocupações, com o apoio da Natalie e do Dani, da AIC. Visitamos as escolas, realizamos uma micro oficina com os estudantes, que tinham alguns exercícios disparadores – foram eles que deram coesão para a narrativa. Trabalhamos muito com paródias e fizemos vários vídeos com aqueles estudantes, que constituíram um mosaico do que foi aquele momento.
Teve ainda um vídeo bem didático para explicar o que que era a PEC e como é que o jovem seria afetado por ela. Para criá-lo, contamos com o coletivo Passe Sem Temer, formado por pessoas da economia, que sabiam explicar os meandros da discussão econômica da PEC e faziam atividades nas ocupações. Eles iam conosco, então havia um momento de trocar ideia com aquela juventude e às vezes explicar mesmo do que se tratava. Porque havia jovens mobilizados contra a PEC que não sabiam exatamente por que aquela medida era ruim. É que tem muito aquela questão de que já falei: os ânimos se inflamam e os jovens se atiram, às vezes sem nem entender muito bem o porquê daquela ação. Então, era ao mesmo tempo um trabalho pedagógico de construção dos argumentos do porquê da ocupação, e um pouco um registro do que que era aquele momento, o que aquilo simbolizava.
Dos vários vídeos que fizemos, me lembro de um que era uma animação que explicava a PEC do teto de gastos. Eram vários personagens jovens que explicavam como a vida deles seria afetada, com exemplos de situações bem concretas. O outro foi mais um registro. Queríamos muito registrar a história que foi construída ali, os aprendizados – porque sabíamos que, naquela conjuntura tão adversa, as questões políticas macro não iam mudar, e nem as escolas daquelas pessoas.
Sabíamos que, naquelas ocupações, ao contrário do caso do CRJ, as pessoas terminariam frustradas. Ali não houve a sensação de vitória do processo do CRJ. Acabou porque tinha que acabar, porque estava todo mundo exausto. Então, queríamos muito, por meio daquele registro, deixar a mensagem do legado daquelas ocupações. Até o título do vídeo era “A Luta Continua”. A paródia que eles construíram fala um pouco sobre isso, sobre o legado e a esperança que todo aquele movimento representou. Eu lembro de ouvir depoimentos como: “é a primeira vez que eu tenho sentimento de comunhão e de pertencimento à minha comunidade escolar, como eu nunca tive antes. Hoje eu sinto que a escola é minha, que a escola é nossa”. Eles contavam o cotidiano de lavar a louça junto, de ter que fazer o corre do almoço, falaram do que aprenderam com aquilo em termos da sua formação cidadã. O objetivo era, portanto, fazer um registro daquilo, pra não deixar a sensação de luta perdida, mas sim de legado.
Talvez um dos papéis primordiais do Fórum seja, por um caminho formativo, articular pessoas e coletivos em torno de uma narrativa criada com intencionalidade. O discurso que criamos nos nossos processos, e a forma como os endereçamos, tudo isso tem peso de luta política, inclusive. Talvez esse seja um grande diferencial no Fórum. Porque a mobilização no sentido mais usual, com os corpos presentes nos espaços de reivindicação, com uma grande agenda de ações de rua, nem é o forte do Fórum. Acho que há outras iniciativas, como a UJS, que são muito mais exitosas nesse tipo de prática.
Mas a gente faz muita diferença em contextos como o que eu falei, em que há uma ocupação com um milhão de cartazes dizendo “Fora PEC do teto de gastos”, e você perguntar “mas o que que é a PEC do teto de gastos?”, e ninguém saber te responder, para além de frases feitas. Eu acho que o Fórum, nesses contextos, tem uma tônica que ao mesmo tempo forma as pessoas e possibilita que emerja uma substância, argumentos, levando a discussão para um outro lugar. E talvez por isso a gente – por exemplo, em uma ocupação – tenha uma legitimidade de discussão muito grande.
O Fórum é, em alguma medida, espaço de construção coletiva da forma narrativa do que são as lutas juvenis, explicar por que juventude, por que ela é importante, o que tem de particular nessa fase da vida, quais são os direitos específicos, porque que eles se dão… Tudo isso é muito o fazer do FJ. Eu acho que é o papel que ele tem na cidade. Inclusive, isso apareceu na pesquisa que o Instituo C&A fez: a importância do Fórum para essa construção em rede que moldou e molda a narrativa sobre juventudes no contexto da cidade de Belo Horizonte, e quiçá no contexto da discussão de política de juventudes de Minas Gerais, e mesmo do país.
Também passei pela experiência do 7º Okupa, que tinha uma proposta muito forte de descentralização: de não estar mais no centro, mas nas quebradas. De início, tínhamos um diagnóstico participativo das demandas das juventudes dos territórios participantes, e nossa expectativa era de coletar informações que fossem representativas do ponto de vista amostral – o que não se concretizou. Mas foi muito interessante enquanto estudo de caso. Conseguimos mobilizar coletivos que deram contribuições muito valiosas. Eu lembro de ficarmos felizes com o que os grupos traziam, mas meio frustrados por não termos atingido a ambição original. Como a gente tem esse lugar epistêmico, de produção do conhecimento e de narrativas, queríamos com o diagnóstico, de alguma forma, representar as juventudes que dele participavam. E aí a gente vê de novo a questão que mencionei, do lugar do Fórum: ele não é, necessariamente, o da mobilização usual. Ele tem processos intensos, profundos, e constrói muito conhecimento a partir de tais processos. É um jeito de mobilizar diferente do usual, que associa mobilização a massas tomando o espaço público, com participação expressiva em termos numéricos.
No meu trabalho no Fórum, muitas vezes, eu me via numa situação muito curiosa, por ser uma figura que tem, além da questão da branquitude, um jeito de me portar e de falar meio estranho, com um sotaque e um vocabulário meio paulistano… eu não sou uma pessoa que tenha elementos vindos das quebradas. Mas, nos processos, contava com uma interlocução e um apoio muito grande do Bim, da Natalie, do Dani… Isso me remete à questão da estética. Uma coisa muito legal sobre a estética do Fórum é justamente o fato de ele ser um lugar poroso entre os repertórios de quem é da quebrada e de pessoas com variadas outras referências estéticas. Eu, por exemplo, tinha as minhas, e elas eram consideradas. E o pot-pourri daquela variedade de perspectivas estéticas dava, no fim das contas, o que a gente produzia, e que era muito interessante. Então, eu lembro de as trocas serem muito gostosas, de me divertir muito fazendo as produções do Fórum, justamente pela fricção que elas geravam ali entre o estrangeiro e o familiar para cada um de nós, sabe?
E eu achava sempre muito interessante o exercício estético que resultava de cada processo. Às vezes, saía uma poesia; às vezes, uma produção audiovisual; às vezes, as diversas manifestações artísticas em público, que a juventude tem tanta potência para construir.
O cotidiano do FJ é marcado por uma real possibilidade de misturas, de uma porosidade, de construção dialogada mesmo. E isso é bonito porque muito se fala mas pouco se faz, de fato, em termos de construção colaborativa. Os processos têm muitos tensionamentos e dificuldades, mas têm mesmo essa porosidade. Existe uma afecção mútua muito forte e um respeito muito grande pela forma com que cada um se expressa. E essas formas de se expressar se afetam mutuamente. Então, um vai pegando o jeito do outro e a gente, no final, é um pouco mosaico de todo mundo junto ali.
Por isso é que, de todas as experiências profissionais e pessoais pelas quais eu já passei na vida, o Fórum foi, sem dúvida, a escola mais intensa em relação à perspectiva da construção colaborativa. E isso acontece de uma forma muito genuína. Existe esse desejo, genuinamente. A gente erra, a gente acerta, às vezes está mais coeso, às vezes está mais aberto, às vezes mais poroso, às vezes menos. Mas a vontade de ser uma experiência de fazer coletivo, de ser um coletivo de verdade, é tão grande que faz com que emerjam novas formas de colaborar e de construir.
E as pessoas do Fórum têm perfis muito diferentes, mas existe a autenticidade de estar muito a fim de fazer aquilo, de ter muito carinho mesmo pelas pessoas que estão integrando aquilo, de já ter uma simpatia ou uma empatia prévia por estar ali integrando aquele grupo. Então, é realmente um ambiente muito poroso.
E, claro, quando a gente fala de afeto, ele vai para os dois extremos – tanto para o positivo quanto para o negativo. Então, há as pessoas que não se bicam, existem as desavenças. É a lei da Física: onde há contato, há atrito. E ali é um espaço, por essa porosidade, de muito contato e que, portanto, tem também muito atrito. E o afeto ajuda muito também na mediação desses casos, pois é natural a busca por que as pessoas se desarmem e entendam, respeitem a forma de ser e de se expressar do outro. Existe um respeito muito grande pela forma particular com que cada um traz as suas contribuições para o debate, por exemplo. Então, às vezes, tem aquelas pessoas mega verborrágicas, e você está ali ouvindo e não aguentando mais, mas num absoluto respeito pelo momento da fala dela. Tanto é que, definitivamente, não é uma coisa natural entrar e permanecer numa roda de conversa do Fórum. Ali não é uma conversa de bar. Tem uma série de códigos tácitos ligados ao pertencer àquele espaço e ocupar aquele espaço, sobretudo, nas reuniões, que indicam que é com absoluto respeito pelo que as pessoas estão falando, pelo tempo que elas vão tomar expressando o que elas querem expressar. Eu achava isso algo muito legal de ver no Fórum. Ali, há um jeito muito particular de viver, debater e existir. Um jeito muito diferente dos movimentos mais tradicionais, que são mais hierarquizados e duros.
Por exemplo: em muitos movimentos, há um tempo cronometrado de fala, e é assim que se dá o respeito ao momento de fala do outro. No, Fórum não é assim. Ele é mais orgânico, mas ao mesmo tempo muito permeado por códigos tácitos do respeito. E eu acho que isso é muito dado pela genuinidade com que as pessoas se afetam e se deixam afetar por aquele lugar, e pelo propósito que elas acreditam que aquela experiência tem. E pelo carinho mesmo, pelo respeito e pela admiração, que elas vão tendo ali umas pelas outras.
Vivi também muitos conflitos na secretaria executiva, mas até neles era muito forte a dimensão do “isso aqui está péssimo, mas estamos juntos pra enfrentar”. O afeto é uma coisa muito importante para dar um amálgama àquilo, para dar o sentido de existir junto. Quando eu não me sentia nessa vibração, inclusive, me culpava, achava que alguma coisa estava errada comigo. É quase uma polícia do afeto ali! [risos]
Então, penso que participar do Fórum tem a ver com uma conjunção de acreditar muito naquelas coisas e estar num momento de vida em que aquela experiência faz muito sentido. É uma experiência muito mobilizada por paixões, é um lugar muito visceral, ele é algo em que você acredita profundamente. Então nós, da SE, vivíamos numa zona muito borrada entre o que era militância e o que que era o nosso trabalho, o nosso compromisso profissional. As coisas eram muito, muito misturadas, e tudo vinha de um lugar muito visceral. E isso leva a tretas, justamente pela exacerbação dos afetos. Mas ao mesmo tempo tem uma coisa, que não é natural, que você aprende no Fórum: viver um grande conflito num dia e, no dia seguinte, levantar da sua cama, escovar o seu dente, botar sua roupa, olhar para a pessoa, colocar um sorrisão na cara, abrir os braços e dizer: “me dá a porra de um abraço”, e depois a gente discutir. Esse é um pouco o jeito que a gente se relacionava no Fórum.
Acolhida é uma ótima palavra para definir tudo isso; é bem isso que o Fórum tem. Ele é muito poroso às diversas manifestações da sociedade, seja na sexualidade, seja na dimensão étnico-racial, ou seja na lida com a pessoa que fala engomadinho… Seja do jeito que for, a gente vai tentar respeitar e acolher.
Em relação ao papel formativo do Fórum para as juventudes, como eu disse, acredito que ele exerce o papel de articulador da construção de narrativas sobre as questões juvenis, e envolve a juventude na construção colaborativa de tais narrativas. É aí que as pessoas vão sendo formadas e, como essa narrativa é levada para a cidade, o que se constrói é formativo para a sociedade também. É o que se percebe na campanha de Juventudes contra a Violência, ou na negociação do CRJ, na discussão do orçamento público, ou em qualquer que seja pauta da vez. Há toda a colaboração na construção, mas também há uma incidência intencional na esfera da política institucional. Com isso, o Fórum ocupa um espaço fundamental na cidade – é uma instância muito legitimada, que incide muito.
E, além de formar nesse sentido do saber cognitivo, o Fórum forma as pessoas pela e para a própria experiência da participação: seja no Okupa, seja no CRJ, seja nas ocupações estudantis. Viver essas experiências te ensina, te forma e te molda. E isso é fundamental porque o Fórum é um espaço de luta emancipatória, de luta por direitos. E, sendo um espaço de luta emancipatória e de luta por direitos, ele se associa, essencialmente, a uma perspectiva muito freiriana de formação, que é a formação encarnada na experiência.
Por todas essas coisas, o peso institucional do que o Fórum representa para as discussões das questões juvenis é gigantesco. A pesquisadora do estudo internacional que nos escolheu como case ressaltou o quanto isso é impressionante. Ela conversou com os mais diversos sujeitos relacionados aos debates juvenis da cidade, e me falou o seguinte: “É muito impressionante. Vocês podem estar num embate direto com as pessoas o poder público, mas é admirável o respeito e a legitimidade que vocês têm, que vocês construíram junto às mais diversas instâncias. Independentemente das diferenças de posicionamento, todos falam de vocês com muito respeito, com muita admiração, inclusive pelo que vocês construíram”.
Eu acho que o peso que o Fórum tem, de tudo o que ele representa, é muito maior do que ele é concretamente, inclusive. Ele carrega uma força institucional que excede a capacidade operacional que tem. As pessoas sempre têm uma ideia do Fórum que é maior do que ele efetivamente é. É isso: ele transcende as condições concretas em que existe e pauta as juventudes na construção da cidade. E isso é incrível. É bonito demais.