Juarez Dayrell
A criação do OJ faz parte de uma trajetória de vida, quer dizer, não veio a partir só da vivência universitária, é uma história antiga. Para mim, o marco foi o momento em que optei por viver em São Félix do Araguaia, aos meus 19 anos, em 1975. Fui para lá numa perspectiva de luta pela mudança social. Eu era ligado à Igreja Católica e tinha o Pedro Casaldáliga como uma referência de articulação da fé e política, uma fé engajada. Naquela época, tranquei a universidade e fui para passar uma experiência de seis meses, mas lá permaneci por quatro anos, de 1975 a 1979.
Foi essa experiência que me deu a régua e o compasso, foi a minha grande universidade. Primeiro, pela convivência com o diferente: saí do meio urbano, sem nenhuma experiência rural, e caí num povoado de 3 mil habitantes, no meio do Mato Grosso. Na época, lá mal tinha estrada,, era extremamente isolado. Era uma região bastante explosiva, de conflito agrário, armado, de jagunços e fazendeiros contra peões e posseiros. oi lá que eu me descobri educador. Quando cheguei, a escola municipal local funcionava até o 3º ano, não havia ninguém com formação acima do 4º ano para poder ensinar as séries subsequentes. Diante disso, a própria população pediu para que eu passasse a assumir a escola e ali fomos trabalhando.
Acredito que essa foi a minha grande experiência de vida e de política, mas principalmente foi uma experiência com a população local, com um compromisso e uma compreensão próxima desse outro que é o povo, o povo brasileiro, esse outro em quem queremos chegar. Porque ali nós conseguíamos chegar, incentivando lideranças com o discurso do protagonismo popular. Por mais que hoje eu avalie que ainda havia uma hierarquia, um certo domínio nosso, uma relação de poder por sermos de fora e da Igreja, foi uma construção pessoal de compromisso com a mudança social, a partir dos indivíduos, das pessoas, o que me deu um rumo na vida.
Na época, eu não estava ainda na Educação, fazia Sociologia. Até então, nunca tinha passado pela minha cabeça dar aula. Foi lá que eu descobri e me apaixonei por esse fazer. A experiência na escola, a relação escola-comunidade foi muito forte. Lá que, para mim, toda a proposta de Paulo Freire se concretizou na prática, na ação concreta. Era uma Igreja comprometida com os pobres, uma igreja encarnada, conectada a uma luta popular, a uma luta sindical. Foi um acúmulo, uma experiência que me marcou profundamente.
A questão da juventude, naquele momento, não era explícita. Havia uma demanda da própria Igreja para que eu, como jovem, tivesse uma relação mais próxima com os outros jovens. Mas não havia a ideia da juventude enquanto uma categoria, era mais um entendimento de que deveria ser desenvolvida uma ação. Quer dizer, eu tinha vindo de uma experiencia com grupo de jovens, então a ideia era criar um grupo de jovens ali, mais nesse sentido e não na especificidade mesmo. Havia mais uma conexão com as lutas.
Depois que casei, minha companheira foi morar lá também, e isso me animou. Precisava de extensão de série, já que só tinha até a 4ª série, e queríamos também formar professores do próprio local. Com essa perspectiva de formação de professores, nós abrimos uma turma de 5ª série. Éramos quatro professores, só moçada. Construímos um ginásio e selecionamos a primeira turma de 5ª série, formada em sua maioria pelos professores que davam aula durante o dia. Essas eram as pessoas que tinham mais jeito e maior disponibilidade. Eram homens e mulheres, todos jovens. Houve uma ligação muito forte com aquela turma, pois era um grupo de jovens professores e jovens alunos. Foi muito rico, porque descobríamos juntos. Imagina, dávamos aula de tudo: História, Português, Geografia… e, ao longo do processo, descobríamos como fazer, como desenvolver. Isso fez com que a educação se tornasse central.
Quando voltei para Belo Horizonte, já passei a sobreviver lecionando. O fato de eu ter vivenciado uma iniciativa da Igreja me abriu portas na Igreja daqui, também. Então, quando cheguei, comecei a dar aula em um colégio católico no Barreiro, cujo padre responsável era amigo do Pedro. Eu também dei aula no Loyola, e o que me abriu um pouco as portas lá foi também a vivência do Araguaia.
Um parêntesis: a Pastoral da Juventude, sobretudo nos anos 1960 a 1980, teve um peso muito importante nas lutas por emancipação no Brasil e em toda a América Latina. Discuto isso muito com as pessoas, há um grupo preocupado em recuperar as propostas e as memórias das iniciativas ligadas a ela naqueles tempos. Mas, infelizmente, o papa João Paulo II conseguiu desmantelar, desconstruir toda uma igreja que se construiu sobretudo naquelas décadas, que era profundamente conectada com as lutas populares.
Voltando às minhas primeiras experiências, é interessante olhar para trás e ver que, mesmo sem ter uma consciência explicita, meu trabalho sempre teve uma relação muito próxima com a temática da juventude. Quando fui para o Loyola, éramos uma equipe de professores de um curso noturno voltado para jovens trabalhadores e trabalhadoras. A maioria das meninas era doméstica e os meninos, em grande parte, eram do comércio, trabalhadores da região do centro, que iam para o Loyola. Nós desenvolvíamos um trabalho cultural com esses jovens, envolvendo teatro e várias outras formas de expressão artística. Quero dizer, essa temática – juventudes – estava na borda de tudo, mas não se explicitava teoricamente. Quando fui escrever meu livro mais recente, “Pedagogia da Juventude”, recuperei um pouco essa trajetória e fui percebendo como o meu próprio percurso acadêmico foi aos poucos se aproximando do tema. Na minha dissertação de mestrado, eu falava do estudante trabalhador, mas não era o jovem, o sujeito jovem. Mas eu já me aproximava mais. No doutorado é que a temática da juventude apareceu explicitamente.
Na época do doutorado, eu já estava na UFMG. Lá, a questão da juventude também foi se evidenciando, acredito que muito a partir da própria dimensão da pesquisa relacionada com a extensão, que tem um peso muito grande. Trabalhávamos muito com a formação de professores e eu fui percebendo isso mesmo antes do doutorado. Fiz uma pesquisa que resultou em um texto chamado “A escola como espaço sócio-cultural”, e o que mais me despertava a atenção era como a escola não reconhecia o estudante como um interlocutor válido. Ela não era levado em conta nas decisões escolares. Mas, mesmo assim, eu ainda não tinha clareza da categoria jovem, juventude.
Eu produzi esse texto em 95 e 96, quando desenvolvi esta pesquisa em Contagem com escolas de periferia do município. Ela representou um salto de qualidade na minha percepção, quando eu constatei como o sujeito não aparecia. O sujeito aluno era considerado de forma indiscriminada. Era para isso que eu chamava a atenção no texto: era como se ele não tivesse uma vida fora da escola. Eu destacava como que, ao entrar pelo portão da escola, o aluno deixava toda a sua vida para trás, se tornava só um aluno e um aluno genérico, igual a todos os demais. Apesar de eu não usar a categoria “jovem”, eu já atentava para a diversidade cultural, ou seja, como existiam olhares diferentes, como havia uma cultura propria e como a escola precisava dialogar com ela. O passo seguinte aconteceu a partir de Marília Sposito, que me deu esse clique: a percepção de que há uma dimensão específica desse sujeito, que é jovem.
A pesquisa do doutorado me fez primeiro conhecer Belo Horizonte; ou melhor, a periferia de Belo Horizonte. Eu sabia muito pouco da efervescência cultural que rolava. Percebia que existia um hiato entre o que acontecia lá e o quanto desconhecíamos sobre isso cá, então vi que precisava fazer pontes. Nesse sentido, inferi que a universidade poderia desempenhar esse papel de ponte e, nessa perspectiva, criamos o projeto em que estávamos juntos no Centro Cultural: o Formação de Agentes Culturais Juvenis, de 2002. Não existia o OJ ainda, foi a partir do Formação de Agentes que surgiu a ideia de construir o núcleo de extensão específico próprio que abarcasse as ações que já desenvolvíamos.
No Formação de Agentes Culturais éramos eu e a Nilma como professores. Foi uma experiência humana e vivencial muito importante. Me deu uma direção e me fez perceber a riqueza da extensão universitária. Isso porque fomos construindo essa história. Contávamos com 12 bolsistas totalmente voluntários, então havia uma relação muito próxima na formação daqueles jovens . Vários deles nunca tinham subido numa favela. Então, estreitando as relações com os agentes, eles foram ampliando horizontes. Foi uma riqueza muito, muito grande.
Dessa forma, posso dizer que o OJ, institucionalizado em 2003, surge a partir de uma ação de extensão. Meu doutorado também foi uma pesquisa articulada com uma ação concreta de extensão. Tudo estava muito ligado. O Formação de Agentes, que começou em 2002 e seguiu até 2003, foi o resultado de mais de um ano de ação junto com o pessoal do Hip Hop, que eu já tinha pesquisado entre 1999 e 2000, no Doutorado. A partir da pesquisa do Doutorado, eu fui detectando lideranças do hip hop, com os quais começamos a atuar em um processo educativo que gerou o Formação de Agentes.
Naquele período, houve uma valorização da cultura da periferia, da cultura enquanto um espaço de ocupação inclusive profissional, de formação profissional. Fui conhecer depois várias experiências contemporâneas à nossa, ocorridas sem que tivéssemos conhecimento umas das outras. E foi tudo muito próximo.
Pouco tempo antes, começou-se a falar de juventude no Brasil, e isso havia acontecido a partir de um estímulo externo: 1996 foi o Ano Internacional da Juventude da Unesco. Isso ocorreu no governo Fernando Henrique e, consequentemente, o tema começou a pipocar no país. Na academia, existiam pouquíssimos estudos, pouquíssimas pesquisas. Era praticamente a Marialice Foracchi, na década de 1970, e depois houve um hiato muito grande. Havia algumas pesquisas na área da cultura, com o pessoal de funk, skinheads e punks. Então, foi um pouco por aí que os estudos começaram e se expandiram.
Nos anos 1990, a Marília Sposito formou um grupo de pesquisa em torno da juventude no qual participei – um grupo que hoje é uma referência, pois o tema pegou. Mas eu quero dar crédito também a uma pessoa que esteve muito junto nas ações e pesquisas daquele tempo: a Fernanda Macruz, que era muito ligada à questão da arte-cultura e já realizava um trabalho na Serra com jovens, ligado ao hip hop. Começamos juntos no trabalho com juventude e hip hop. Havia ainda uma professora da rede municipal de ensino, que hoje é professora da Faculdade de Arquitetura da UFMG, a Luíza Moreira. Ela também estava conosco. Quem também se aproximou naquele período foi a Macaé Evaristo. A Macaé também fez parte do primeiro momento do Formação de Agentes. Depois, a vida profissional dela apertou muito e ela não conseguiu mais continuar. Mas ela esteve presente naquelas primeiras construções.
Outro ponto interessante é que a questão negra estava posta, até pelo aspecto cultural (hip hop, samba, funk), mas ainda não era tratada enquanto uma categoria. Foi a Nilma que deu esse tom. Ela que articulou essa dupla dimensão entre juventude e negritude, que eu mesmo não tinha tão nítida. Foi a partir dela que isso surgiu como uma questão importante, uma questão identitária importante.
O Fórum nasceu da própria Formação de Agentes, quando começamos a ter uma perspectiva de atuação pública. Promovemos em BH seminários sobre políticas públicas de juventude e começamos a articular uma mobilização em torno do tema, a partir do próprio processo de formação dos jovens. Eles fizeram o exercício de organizar juntos o 1º Seminário de `Políticas Pùblicas de Juventude de MG, que aconteceu na Escola de Direito, em 2004.
O próprio processo de Formação de Agentes nos fez deparar com a importância de ter um diálogo com o espaço público. Não existia nada. Assim, garantiríamos direitos pensando o mundo a partir do viés da cultura, num primeiro momento, e depois da juventude como um todo. Isso também foi estimulado pela discussão nacional, que já tinha força no Rio e em São Paulo, a partir de organizações como a Ação Educativa, em São Paulo, e o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), no Rio, que estavam desenvolvendo essa discussão e dialogando conosco.
Essa era uma discussão prévia ao governo Lula, mas no primeiro ano de mandato dele já houve uma demanda do Instituto Cidadania de uma pesquisa nacional sobre juventude e participação. Isso gerou um salto de qualidade na política e na discussão de políticas públicas no país. Além disso, naquele período, aconteceu um seminário em São Paulo, com convidados da América Latina – de locais em que já existia uma institucionalização da política de juventude um pouco anterior à nossa, além de conselhos de juventude, secretarias de juventude, coisas que não tínhamos ainda no Brasil. Tudo isso foi criando um caldo de, cultura.
Aqui, concretamente, o Fórum não surgiu com a ideia do que ele se tornou ao final. De início, articulávamos ONGs, organizações da Igreja e quem mais mobilizasse a juventude para formar uma rede que tivesse força institucional diante do poder público. Foi a partir disso que surgiu a ideia do Fórum, em 2004.
O Fórum foi muito ativo no começo. Contudo, por volta de 2007, ele desacelerou. O que articulou o grupo inicialmente era a luta pelo Conselho Municipal de Juventude, que já estava criado, mas inoperante. Houve toda uma mobilização para integrá-lo e articular campanhas de mobilização em torno dele. Contudo, quando o Conselho foi reativado, as ações dele foram pouco eficazes, sem recursos, atuando com muitas dificuldades. Foi um banho de água fria. Era esperada uma atuação muito mais efetiva, que não aconteceu de fato. Realmente, foi algo em que não conseguimos avançar. A eleição do Conselho era sempre uma disputa que não implicava em compromisso com o Conselho e com as lutas da juventude, era muito mais um compromisso com a ocupação do espaço político e a visibilidade que se poderia alcançar.
Houve muita disputa, e o processo foi se perdendo nisso. A Pastoral da Juventude, que tinha uma participação muito efetiva, se distanciou, o que foi uma perda de um parceiro importante. Acho também que há uma relação com o contexto nacional, de absorção de lideranças pelo Estado, tanto no âmbito federal, quanto no âmbito municipal, o que gerou um esvaziamento nos movimentos sociais. Depois, houve o estouro do Mensalão, em 2006. Tudo isso provocou um esvaziamento geral, uma desmobilização das lutas sociais.
Não foi apenas no Fórum a desmobilização. O Formação de Agentes, que havia se tornado o coletivo D-ver.Cidade Cultural, também se diluiu naquele período. Acredito que isso faz parte do processo natural dos movimentos, ainda mais da juventude.. As pessoas vão se encontrando e vão descobrindo seus caminhos; com isso, cada qual tende a correr atrás dos seus próprios caminhos. . Realmente acontece. Lembro de um período em que a Danúbia era a nossa representante do OJ no Fórum e muitas das nossas conversas eram nesse sentido, se o Fórum acabaria ou não.
Após este periodo de desmobilização, o Fórum retorna em 2011, com uma certa profissionalização e com recursos. Não falo de forma crítica. Foi uma configuração decidida coletivamente para que nunca mais houvesse uma desmobilização total, entre idas e vindas.
Tínhamos à frente a Áurea e outras pessoas que eram fortes lideranças, e também investimos num refinamento temático, ou seja, buscamos eleger alguns temas como eixos principais. Até aquele momento, a discussão era mais ampla, mais genérica de política pública, com muito foco na Prefeitura – o que desmobilizava, porque não acontecia pouca coisa. . Mas, em 2011, ao eleger uma pauta concreta, a do debate e da mobilização para o enfrentamento às violências contra as juventudes, deixávamos para trás os tempos de estagnação.
Uma das construções importantes que vieram na sequência foi o Okupa, que surgiu como uma ação do OJ buscando socializar o debate sobre temas ligados à juventude para além da universidade. A proposta nasceu de uma discussão interna, quando constatamos o quanto era importante colocar na roda e envolver mais a própria cidade no debate, com temas que estivessem mais ligados às lutas da cidade. Percebemos que atuar dentro da universidade limitava o envolvimento e a participação, devido ao seu caráter muito acadêmico. Assim, pensamos no primeiro Okupa, que aconteceu no Centro Cultural UFMG, em 2011.
Essa ideia de Juventude Okupa a Cidade foi muito nesse sentido de trazer o debate da juventude na sua relação com a cidade. Nós realizamos três edições dele no OJ.. A quarta já foi o próprio Fórum que assumiu, quer dizer, ele ganhou vida própria e saiu de debaixo das asas do OJ, ampliou a sua atuação, que está aí até hoje. Acho que isso tem um peso grande. O interessante é que o OKUPA foi mudando de eixo: partiu de um debate com viés acadêmico para um debate em torno dos movimentos juvenis, encarnado nesses movimentos. Eu acho que hoje a forma como ele caminha é muito mais orgânica. A decisão de fazê-lo itinerante também trouxe avanços significativos, ao sair do centro e ir para as periferias. Esses momentos de transformação e aprofundamento foram muito fortes.
O Okupa é uma experiência muito exitosa, com certeza. Na minha percepção, o que marca esse sucesso foi aquela quarta edição, que foi assumida pelo Fórum e aconteceu no Espaço Cultural Centoequatro. Ele foi uma explosão, em que se articularam diferentes linguagens. Eu tenho uma lembrança dessa articulação de linguagens como um elemento forte, no sentido de participação e de criatividade. Outro que foi contundente pra mim foi o que ocorreu na ocupação Rosa Leão, cujo caráter de força foi em outro sentido, de inserção no movimento comunitário. Acho que foi muito significativo.
Outro momento que considero marcante da trajetória do Fórum foi ocupação do CRJ. Foi onde o Fórum teve uma maior visibilidade pública, porque assumiu uma liderança muito significativa num processo que chamou a atenção da cidade, e que foi exitoso: deu visibilidade às lutas das juventudes e gerou compromissos do poder público em relação à democratização daquele equipamento.
O Fórum ocupa, efetivamente, um lugar de referência na cidade, e eu acredito que isso é fruto de uma construção. A definição do eixo da violência como uma prioridade possibilitou um foco maior de atuação. Houve ainda uma maior organização da própria infraestrutura: disponibilização de material, produção de imagens, comunicação forte. A forma como passamos a divulgar as ações deu uma feição profissional ao OJ e ao Fórum.
Acho que foi um salto de qualidade muito significativo, que está relacionado com a profissionalização, com a existência da secretaria executiva, com recursos próprios. Ou seja, como existia um foco, a secretaria executiva foi capaz de elaborar um projeto de captação de recursos em torno dele. E o tema escolhido, a questão da violencia contra as juventudes, era presente e pungente, estava em pauta nos debates – tinha, portanto, potencial para a busca de recursos. Ele também pautou e deu visibilidade a um tema subjacente à violência, que é o racismo. Não é à toa que exatamente naquele período houve uma expansão do próprio movimento negro. Quer dizer, a questão da identidade negra foi ganhando força em paralelo ao nosso processo. A ampliação da noção de juventude acontecia concomitante à de negritude, de identidade negra. Cresceu a visibilidade sobre algo que já acontecia, mas, com certeza, a violência contra a juventude negra aumentava de fato. Esta visibilidade cresceu ainda mais com a publicação do Atlas da Violência, um grande passo na visibilidade do genocídio.
Nas minhas experiências no Fórum, um elemento simbólico muito forte foi a peça da campanha Juventudes Contra Violência: as carteiras de identidade gigantes. Elas são um impacto porque dão concretude a esta realidade, ou seja, quem morre é um sujeito que tem um nome, RG e uma história. Então, quando você traz aquilo visível – e foi uma escolha muito feliz trazer diferentes rostos, de meninas, de meninos, gente conhecida nossa – isso gera uma comoção. Lembro que afixávamos em todo lugar: na porta do OJ, da minha sala. Em termos de comunicação, é o que vem primeiro na memória. E o material que o Fórum produziu para a campanha foi muito didático. Ele desempenhou um papel que é muito maior do que podemos imaginar, porque ele disseminou o debate. Nós não tínhamos o controle de quem estávamos atingindo. Ele extrapolou todos os nossos objetivos. Acho que teve um efeito muito significativo.
Penso que, antes ainda, falando da comunicação, o que o Fórum tem gerado tem muito a ver com a relação do aumento da violência e da visibilidade dela, e ainda com a ampliação do empoderamento juvenil negro. Ou seja, aquele menino que não abaixa a cabeça para polícia no baculejo se percebe como um sujeito de direitos. É um pouco contraditório, mas tem muito a ver com o nosso próprio trabalho. Faz com que a relação com a polícia e a relação com a marginalidade se tornem, qualitativamente, diferentes.
Acho que o Fórum possui um eixo muito forte, que está relacionado com a forma como surgiu, que é a pegada da educação popular. Ou seja, antes de tudo, há uma dimensão formativa presente nos encontros. É impressionante como a moçada se identifica e dialoga com esses princípios da educação popular, reelaborando e repensando dimensões que já estavam dadas. Isso marca muito.
Hoje, vejo que o Fórum veio caminhando a par e a passo com o próprio avanço dos movimentos juvenis. Se, de início, havia um caráter e uma ação homogênea em torno de uma juventude mais genérica, hoje foram se construindo identidades próprias e ganhou força a ideia de coletivo, que surgiu nos anos 2010. Os coletivos com essa marca identitária mais forte têm na cultura um eixo estruturante e uma dimensão considerável de ação formativa. Eles fazem com que o movimento juvenil se pareça com movimentos, no plural: diferentes formas de organização que se articulam. No início do Fórum, nos articulávamos com ONGs e instituições. A realidade veio avançando e hoje a articulação é de diferentes coletivos, que possuem diversas formas de inserção nas ações públicas.
Acredito que isso é uma expressão do próprio avanço do movimento juvenil. A forma como ele ganha visibilidade e se articula é de maneira reticular, está muito mais na base, pois os coletivos possuem, inclusive, uma identidade territorial. Há uma ação pulverizada, espalhada e enraizada em diferentes territórios, como os coletivos da Serra, em BH, de Ibirité, e de tantos outros lugares. Outra coisa muito forte que também surgiu nos últimos anos são os coletivos ligados à produção poética: os slams de poesia, que criam agrupamentos muito significativos.
Então, acho que essa expressão do movimento das juventudes se espelha no Fórum, que teve a plasticidade para acompanhar. Acho que essa leitura é muito interessante. Isso mostra que o Fórum não se enrijeceu enquanto instituição, ele não se institucionalizou e atua de forma fluida, vai seguindo a fluidez do próprio movimento. Se de um lado isso fragiliza, pois a dimensão institucional por vezes se dilui, de outro, permite acompanhar e articular muito mais com a própria realidade daqueles que se propõe defender, que são os próprios jovens.
Um resultado interessante disso é que, na época de criação do Fórum, em 2004, existia o Fórum em São Paulo e no Rio, dentre outros, havia uma articulação nacional e uma rede propria no Nordeste. Boa parte dessas articulações se perderam, ficaram para trás no tempo. O Fórum, que eu saiba, é um dos poucos que se manteve ativo – com suas diferenças, mas atuante. . Acredito que isso corresponde a essa trajetória e a essa fluidez, que possibilitou mudanças de feições, de atuação e de formatos. Houve uma fase de partidarização, também. Quando entra na dimensão da disputa do poder político internamente, gerou muita tensão. . Mas o Fórum passou por esta fase e sobreviveu, porque esse aspecto não foi central nos processos cotidianos.
Depois, tivemos o fenômeno eleitoral da Áurea, mas ele não introduziu uma disputa interna – ao contrário, ela aglutinou todo mundo. Ocupar o espaço da política institucional gerava certo estranhamento. Vereador, até então, era aquela coisa meio distante. Havia o Arnaldo Godoy, com quem mantínhamos um diálogo, mas era só. Mas as experiências dos mandatos da Áurea foram interessantes, foram um exercício concreto e produtivo de ocupação desse espaço político. .
É importante destacar, por fim, que o Fórum das Juventudes tem na arte e na cultura duas forças fundamentais. Afinal, as experiências artístico-culturais têm uma relação intrínseca com o próprio sujeito jovem. As pesquisas desde o final dos anos 90, início dos anos 2000 e até hoje, constatam esse quase lugar comum sobre o diferencial do jovem ser exatamente a dimensão simbólica, por meio da qual ele se representa e se constitui. Então, a cultura se tornou um grande elemento aglutinador e de construção de identidades num sistema extremamente desigual.
Nessa sociedade desigual, de pouco acesso a tudo, a cultura tem sido r um espaço mais democrático. Há uma certa dissociação. Quer dizer, há uma democratização maior da cultura, mas pouca efetivação na sua consequência econômica, na sua viabilização real. Mas, enquanto uma linguagem de corpos, ela é mais democrática. Lembro de um menino falando comigo “durante o dia eu sou lixeiro, mas à noite eu sou como o Mano Brown, canto rap”. Ele percebia que a cultura era um espaço em que ele poderia se expressar, mesmo num contexto de uma sociedade desigual. Ou seja, ela é um elemento que garante uma certa equivalência, um mínimo espaço de horizontalidade de relações. Isso ocorre porque você está dizendo de uma dimensão humana que não tem só a marca da origem social. Um pobre, pode cantar bem para caramba, pode produzir uma pintura lindíssima, fantástica. É uma expressão do humano, que possui um aspecto fundamental de horizontalidade que viabiliza relações.
Isso impacta no reconhecimento também. Em uma sociedade que nega ao negro e ao pobre o reconhecimento enquanto ser humano, enquanto gente, ele pode se colocar nesse lugar e ter uma resposta à altura a partir da cultura. Ela abre possibilidades. Por exemplo, quando criamos o Formação de Agentes, o que fazíamos era potencializar algo que já estava acontecendo entre os jovens participantes, e criar condições para que esses meninos conseguissem ter uma visibilidade que eles não teriam nunca se não fosse através da arte. Então, acho que falar em jovem é falar em cultura. Isso está muito intrínseco e a cultura está presente no Fórum na medida em que quem está presente no Fórum é o jovem – e que para o jovem a cultura é uma dimensão essencial do humano.
Falo em cultura não só como a expressão concreta de uma determinada linguagem, mas como uma dimensão simbólica que constitui a própria humanidade em cada um de nós. Essa perspectiva antropológica eleva em outro nível o próprio diálogo. Você pode dispor de pessoas de origem sociais diferentes, mas elas estarão dialogando em um nível de horizontalidade na produção cultural. Nesse sentido, a arte e a cultura se tornam um grande espaço de produção: de produção simbólica e produção de subjetividades positivas, de reconhecimento de humanidades. Isso tem um peso muito significativo.
Acredito que as matrizes constituintes do Fórum, como a cultura popular, implicam necessariamente na construção coletiva, então essa dimensão da solidariedade também está muito presente, muito forte. Outra matriz é a educação popular que, na minha visão, possui uma dimensão da amorosidade e da solidariedade. É parte constituinte da educação popular o reconhecimento do outro como sujeito, sujeito de sentimentos e de afetos. Acredito, portanto, que essa trajetória define parâmetros de atuação, como essa dimensão da amorosidade, que é algo constitutivo do Fórum. Lembro que lá no início do Formação de Agentes essa dimensão já estava posta. Além disso, acho que a amorosidade, a construção de vínculos afetivos, estão relacionadas com o próprio sujeito jovem. Há uma disponibilidade do jovem para o coletivo, para o grupo.
Com os pés fincados na arte, na cultura e na amorosidade, o Fórum veio se constituindo organicamente e hoje podemos dizer, com tranquilidade, que ele não é uma realidade para o jovem, é uma realidade construída com e pelos jovens. Isso foi se estabelecendo naturalmente, mas o interessante é que a amorosidade se tornou uma matriz. Tanto que as situações de conflito que já ocorreram geram perplexidade, já que não são parte desse cotidiano; são algo que causa estranheza. Penso ainda que isso tem uma relação com o tipo de gente que é atraída. Quem quer uma carreira solo, sucesso individual, não se encontra no Fórum, não está ali.
Nós não temos a dimensão da profundidade dos efeitos disso, mas é muito interessante ver o quanto a experiência no Fórum marca a vida das pessoas, que incorporam valores que levam para vida inteira. Quando encontramos aqueles antigos, do início dos anos 2000, vemos que as pessoas sempre têm uma referência muito forte. Acho que o Fórum marca a formação dessas pessoas muito mais do que podemos imaginar.