Vivi Coelho – Viviane Coelho Moreira
MINHA EXPERIÊNCIA NA REDE MÃES DE LUTA
Cheguei à Rede Mães de Luta a partir da AIC. Meu papel na instituição é, entre outras coisas, pensar pautas que são prioritárias para a organização e para grupos, coletivos e redes que ela apoia, compõe, faz parte e/ou contribui na articulação. É o caso da Rede Mães de Luta, na qual a AIC atua como articuladora da secretaria executiva, de ações de incidência política, do acompanhamento a casos de violência e da comunicação estratégica do grupo.
Minha primeira relação com a Rede Mães de Luta foi quando eu trabalhava na Prefeitura de Belo Horizonte, como diretora de políticas para as mulheres, em 2019. Naquela época, por conta da vinculação que tive com a Fórum das Juventudes, eu já tinha uma proximidade muito grande com a AIC, um vínculo que se fortaleceu ainda porque, desde 2018, eu passei a ser colaboradora de um dos projetos da instituição, o “Desembola na Ideia” (que realiza ações de atenção psicossocial e promove atividades artístico-culturais e de mobilização junto a jovens ligados ao sistema socioeducativo de BH).
Tendo em vista todo o vínculo que já existia, a Rafa me convidou para conversar com algumas mulheres que tinham uma atuação forte de liderança em territórios periféricos de Belo Horizonte. Eram mulheres que guardavam diversas histórias de violências que deviam ser vocalizadas. Uma delas era a Elizete, que fazia parte do coletivo “Mães que Choram”, um grupo de mães que tiveram seus filhos assassinados por conflitos ligados ao tráfico e à guerra às drogas.
A, partir do convite, fui me conectando às lutas de tais mulheres, que é muito árdua. Embora as principais vítimas de assassinatos sejam homens negros, o luto constante é algo que perpassa a vida das mulheres negras, que também se tornam vítimas deste crime cometido pelo Estado, seja de forma direta, ou de forma indireta, através da necropolítica que relega às populações negras uma condição precária nas periferias. Elizete (de forma direta) e Ednéia (na lida com a comunidade do Taquaril) são algumas das mulheres que vivenciaram este luto e fizeram dele uma luta em seus territórios, se tornando lideranças que se articulam através de movimentos como o “Mães que Choram”, do bairro Paulo VI, e o Temperando Vidas, do Taquaril.
Os grupos que denunciam situações de violência e precariedade também agem na formação política de mulheres que enfrentam situações semelhantes em suas famílias. Dessa forma, o empoderamento proporcionado pelos movimentos, além de político, também é econômico, pois estas mulheres se organizam em feiras que promovem a economia solidária, conferindo autonomia para essas agentes ativas nas comunidades. Nesse sentido, territórios como o Taquaril, onde Ednéia vive e atua, são impactados positivamente, em vários sentidos, por essa organização de mulheres. Elas geram efeitos multiplicadores que, de certa forma, reduzem um pouco os danos causados pela necropolítica incidente no território e nas demais periferias de Belo Horizonte.
As potencialidades e os desafios de grupos como os da Elizete e da Ednéia são enormes. Por isso, naquele ano de 2019, diante dos gravíssimos índices de letalidade juvenil nas periferias, e ao mesmo tempo da percepção que as mulheres se movimentavam no enfrentamento ao problema, nasceu a ideia de reunir várias mulheres que vivenciavam esse tipo de violência e criavam – ou tentavam criar – ações para enfrentá-la. A ideia era reuni-las entre si e com órgãos do Estado, outros grupos da sociedade civil e lideranças de espaços e movimentos periféricos de Belo Horizonte e de outras localidades.
Para viabilizar essa ideia, diversas instituições se juntaram para realizar, em maio de 2019, um Seminário no PlugMinas, que reuniu representantes de várias periferias e organizações de vários locais do Brasil, e que inclusive trouxe a BH uma representante do coletivo Mães de Maio, de São Paulo, e duas da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência do Estado na Baixada Fluminense (RJ), para contribuir com a discussão sobre os crimes cometidos pelo Estado.
Foi a primeira vez que fui em um evento com aquela temática e foi ali que entendi com plenitude o que é a necropolítica. Foi muito impactante estar ali com elas, mulheres com filhos e maridos mortos ou encarcerados pelo Estado, de diferentes lugares do Brasil. Pudemos ter um entendimento de que as várias violências cometidas pelo Estado são de fato uma política de genocídio.
O encontro de maio de 2019 já terminou com a rede articulada. Desde então, muita coisa aconteceu, e a Rede Mães de Luta vem se articulando em torno de três eixos: 1) a responsabilização jurídica do Estado; 2) a promoção do acesso a direitos, para que famílias vítimas dessa violência possam refazer as suas vidas; e 3) a dimensão do cuidado para com essas mulheres que nunca foram cuidadas. Percebemos um sentimento de abandono ao ouvir a fala delas, tanto por parte do estado, quanto das próprias famílias, muitas vezes.
A Rede Mães de Luta é uma construção que reúne mulheres diretamente afetadas pela ação de encarceramento e assassinato em massa do Estado, e mulheres de outras lutas, que se juntaram a elas. Sou uma dessas aliadas que ajudam a construir a rede. Queremos estar junto com elas na luta para que, além da indenização e da responsabilização pelos crimes cometidos, essas mulheres tenham atendimento adequado, tanto psicológico quanto psiquiátrico. Também buscamos estar junto delas na identificação de interesses e na promoção de atividades que façam sentido para elas como um caminho para ressignificarem o luto, antes que elas morram. Ninguém quer ter um familiar preso, ninguém quer ter um familiar morto e ninguém quer ter um familiar assassinado sem que haja identificação e punição do(s) “culpado(s)” disso. É preciso que haja legislações que assegurem essas coisas e que a impunidade, que costuma ser regra, seja contestada. Por isso, a gente faz uma articulação grande com a Assembleia Legislativa e parlamentares que defendem a pauta do desencarceramento, do reconhecimento e da reparação das violências cometidas pelo Estado, como a Andréia de Jesus. Fazemos articulações também com promotorias, como a dos Direitos Humanos. Admito que são articulações bem desafiadoras, mas persistimos.
A AIC contribuiu com a articulação da Rede Mães de Luta fazendo contatos institucionais, dando assessoria, elaborando projetos e mobilizando profissionais para acompanhar essas mulheres em diferentes tipos de situação, pois o modus operandi do poder público é muito frio e desumaniza as relações. São de vidas que estamos falando, vidas queridas e importantes para aquelas mulheres que têm de lidar constantemente com suas perdas. Cabe ressaltar que a atuação da AIC com a Rede não depende só de mim pessoalmente. É um apoio institucional e faz parte da política da AIC essa abordagem mais humana e sensível à dor do outro e da outra.
Eu vejo que a maior mensagem que as mulheres da Rede Mães de Luta trazem, para além de falar de uma necropolítica, para além de falar de um encarceramento em massa, para além de falar de uma precarização de acesso a direitos básicos, da naturalização dos territórios periféricos como territórios criminosos em que as pessoas que estão ali têm menos valia do que outras pessoas; essas mulheres, elas estão mostrando que elas existem! Que seus filhos, irmãos e maridos existem! Estão falando que tudo aquilo que elas vivenciam existe e é grave, e que resistem cotidianamente a tudo isso.
Elas afirmam que a luta não morre quando os parentes delas são mortos. Que essa luta não é presa quando os parentes delas são encarcerados. Que isso inclusive faz com que elas gritem mais alto, dizendo “acontece e é importante que toda a sociedade veja isso, porque a cada hora, a cada minuto, esse grupo de mulheres aumenta”. Essa é uma mensagem importantíssima, trazida em todas as ações realizadas pela Rede, desde reuniões que são feitas com a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, com defensorias públicas, com a Assembleia Legislativa de Minas Gerais, com a Prefeitura de Belo Horizonte, com redes de profissionais que buscam compreender essa situação nefasta que as mulheres vivenciam, com a sociedade como um todo, em atos públicos realizados em praças, em pontos turísticos, em pontos simbólicos – como, por exemplo, o Tribunal de Justiça – que representam esse poder arbitrário presente na sociedade.
Então, essas mulheres transformam a dor, o luto, em luta, mostrando para a cidade que esse luto não vai fazer com que a luta delas deixe de existir. E a cidade e a sociedade precisam saber disso, e precisam responder a isso! É uma obrigação cidadã.
Infelizmente, a dor tem um lugar central em toda essa mobilização, é a força motriz que as une e as leva à ação. A Rede e os movimentos que a constituem se tornam um espaço de compartilhamento dessa dor. É comum escutar da boca dessas mulheres as seguintes falas: “olha, eu preciso desse espaço porque eu não consigo falar mais disso na minha casa. Eu não consigo falar mais disso na minha casa porque eu tenho outros filhos e meus filhos falam comigo: mãe! Você não morreu com nosso irmão. Mãe! Você não morreu com o nosso pai. A gente precisa de você também. Não dá para você se fechar nessa dor por conta dessa pessoa que morreu, porque a gente tá vivo. E a gente precisa de você. Então, os meus filhos não entendem que essa dor faz parte de mim, que eu gosto deles, dos que estão vivos. Mas eu sinto essa dor e eu preciso colocar para fora”.
Outras mulheres falam “o meu casamento já tá por um fio, porque meu marido não aguenta mais me ouvir falar disso. Ele tenta, às vezes ele chora, mas ele se afasta, porque também é difícil para ele”. E algumas outras falam “os meus amigos, as minhas amigas foram se distanciando, começaram a falar: ‘ah! Você fala muito disso, fica muito cansativo, fica muito pesado, sabe? Fica prolixa. Dá a volta por cima, vira a página, já ‘passou’. Mas não passa”. E elas sempre falam isso: “não vai passar”. Esse isolamento forçado, e o estigma que o acompanha, aumentam o sofrimento e tornam ainda mais urgente o cuidado e o acolhimento para com essas mulheres.
Eu me conecto com essas mães como mulher, como negra, como ativista, como feminista preta interseccional, e ao mesmo tempo isso me traz um desafio e uma responsabilidade muito grandes, porque muitas das vezes eu sou uma das únicas que não passou por essa dor diretamente, de ter alguém que foi assassinado ou encarcerado. E, em muitos momentos, elas confiam a palavra a mim… e isso é uma responsabilidade enorme, que chega a assustar. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, eu sinto uma força muito grande, porque existe uma potência dessas mulheres que me torna potente junto com elas, e penso o tempo todo em formas de contribuir para que elas enxerguem que, por maior que seja a dor, elas não são essa dor, a dor não é o que constitui a identidade delas, elas são muito maiores do que essa grande ferida.
Embora tratem de públicos muito diferentes, percebo algumas semelhança entre o Fórum das Juventudes e a Rede Mães de Luta. Afinal, ambas são redes que fazem o enfrentamento ao genocídio da população negra e à necropolítica de encarceramento, e são protagonizadas por pessoas que vivenciaram de fato as pautas políticas que levantam. Além disso, a força motriz da atuação política de ambas organizações é o afeto e a politização dessa experiência colonial e periférica cotidiana que sobretudo a população negra vive no país. São grupos que visam uma mudança profunda nas estruturas da sociedade e advogam em defesa da maioria, e não apenas de si mesmos, porque não são grupos que lutam só por “indenização” ou abertura de um “centro de referência da juventude”, mas sim por uma transformação política e cultural a nível de sociedade, a fim de prevenir que outras pessoas desta e das próximas gerações sofram as violências que são e foram infligidas no presente e no passado.
Para encerrar, gostaria de dizer a todas as pessoas que porventura tiverem contato com este trabalho maravilhoso que busquem conhecer a atuação da Rede Mães de Luta e do Fórum das Juventudes.